Capítulo 26
Todos só conseguiram se acalmar depois que Alice medicou e estabilizou Saulo. A pressão arterial dele havia se alterado perigosamente, por sorte tinham os medicamentos necessários no ambulatório.
— O que ele precisa agora é de tranquilidade.
Foi a forma educada que Alice encontrou de pedir para que todos saíssem e deixassem Saulo descansar.
Clara estava indo para seu quarto, cumprir aquilo que Marina tinha dito: pegar suas – poucas – coisas e ir embora. Não fazia ideia de como ou mesmo para onde. No fundo estava aliviada por finalmente ter colocado aquilo para fora, ter explodido e falado tudo que guardava dentro do peito desde que descobriu quem havia matado seu pai. Há algum tempo já tinha desistido de ter uma vingança, percebeu que não podia medir forças com Marina, pois isso só iria fazer com que se autodestruísse. Assim era o mundo em que viviam. Quem tinha dinheiro, tinha poder. E quem tinha poder saía sempre impune. Pelo menos, agora, todos naquele lugar sabiam quem ela própria era e, mais importante ainda, quem Marina era. Dali para frente só poderia desejar que, se houvesse alguma justiça em outro plano dessa vida, ela fosse implacável com ela.
Por outro lado, uma melancolia enorme a atingiu. Por mais que repetisse para si mesma que ali não era sua casa e que aquelas pessoas não eram sua família, não foi capaz de não sentir-se como se estivesse perdendo alguma coisa importante.
Os pensamentos e os passos foram interrompidos pela voz de Marina:
— Clara...
Se virou para ela tentando tirar do peito aquela sensação esquisita. Marina se aproximou um pouco:
— Vamos continuar nossa conversa...
Clara quase foi capaz de rir da palavra que ela escolheu. “Conversa” era um eufemismo e tanto.
— Vou pegar minhas coisas, como você mandou... E não se preocupe, vai ser rápido.
Marina suspirou e, com os dedos, apertou o ponto entre as sobrancelhas, tentando aliviar a pequena dor de cabeça que começava a incomodar:
— Eu queria esclarecer umas coisas antes... Algumas coisas que não se encaixam...
O que menos queria naquele momento era conversar com Marina, como se devesse a ela explicações. Se odiou profundamente por ser tão fraca e não ter sido capaz de vingar a própria família. Aquela mulher parada em sua frente era a mandante do assassinato de seu pai. E em vez de não ter medido esforços para destruí-la, deitou-se com ela. Sentia tanta vergonha de si mesma por isso que precisou fechar os olhos e apertá-los com força para se livrar do pensamento:
— Esclarecer? Você mandou matar o meu pai... Por ganância... Por dinheiro. O que mais precisa ser esclarecido?
Marina respondeu rápido:
— Isso não é verdade... Eu juro que...
Foi interrompida por Clara, que já tinha o dedo apontado para ela:
— Eu não quero que você jure nada... Nada do que você disser agora vai mudar o que você fez.
Marina se manteve calma:
— Não posso deixar que você saia daqui sem antes...
Clara a cortou mais uma vez:
— Fique tranquila, eu não vou tentar nada contra você. Só desejo, do mais profundo do meu ser, que um dia você pague por tudo que fez... E não só com meu pai.
Virou-se decidida a acabar com aquela conversa, mas Marina a impediu:
— Uma conversa franca... Por favor... E você pode ir embora.
Marina nunca havia falado com ela daquela forma, de igual para igual. Estava calma, desarmada, foi até gentil. Clara percebeu, mas não deixou que a comovesse:
— Eu não tenho mais nada pra falar com você.
Mas a próxima frase dela a fez hesitar:
— Saulo sabe de alguma coisa.
Marina aproveitou a atenção dela para continuar:
— Sobre a morte do seu pai... Alguma coisa que eu não sei.
*****
Alice balançava a perna direita nervosamente:
— Eu jamais imaginaria que uma coisa dessas ia acontecer.
Marina acariciava as mãos dela, tentando acalmá-la:
— Não foi culpa sua, meu amor.
Tinha ido até o ambulatório ver como Saulo estava. Sabia que estava sendo insensível, mas precisou perguntar:
— Quando você acha que ele estará bem? Para uma conversa, por exemplo...
Alice a olhou sem entender:
— Não sei, vai depender de como ele irá se recuperar... Mas uma conversa não teria problema.
Marina tentou escolher as palavras da melhor forma possível. Tinha convencido Clara a não deixar a fazenda antes que os três pudessem conversar cara a cara, pois tinha certeza que Saulo estava escondendo alguma coisa:
— Digamos que... Não será uma conversa tranquila.
Alice a olhou apreensiva:
— O que você quer dizer?
Marinou contou a ela a história de como comprar as terras da família de Clara havia sido difícil, pois o pai dela estava convicto a não vender. Que chegou a encontrar com ele pessoalmente, mas sem resultados. Depois disso, Saulo e Osmar – um antigo empregado da fazenda – ainda continuaram as tratativas, pois as terras eram realmente muito boas. Alguns meses depois, Osmar voltou da viagem que tinha feito até a casa deles dizendo que, assim que chegou lá, ficou sabendo que Carlos havia tido um infarto fulminante e que a esposa havia aceitado vender as terras. Osmar então retornou para levar o dinheiro e pegar a assinatura da viúva nos documentos. Marina pagou um preço que considerava justo pelo o que as terras valiam, por isso não estava entendo a história que Clara estava contando. Algo estava errado e ela percebeu, pela reação de Saulo, que ele sabia o que era.
— Você acha que... Saulo mentiu pra você durante todos esses anos?
Essa era a dúvida que estava acabando com ela. Confiaria sua própria vida a Saulo. Saber que ele havia mentido e a traído daquela forma seria como levar um tiro no peito:
— Não sei o que pensar... Não quero tirar conclusões precipitadas. Clara aceitou esperar até essa conversa acontecer.
Alice sentiu a culpa voltar a preenchê-la:
— Eu não deveria tê-la pressionado pra dizer nada...
Marina a consolou novamente:
— Talvez tenha sido bom... Assim tudo isso veio à tona de uma vez.
Alice foi tomada por um pavor súbito:
— Meu Deus, Marina, se essa história for verdade... É uma coisa horrível...
Marina compartilhava do sentimento dela. Se o que Clara contou fosse verdade, era uma história terrível. E ela estava, querendo ou não, envolvida naquilo até o pescoço.
*****
No dia seguinte, Clara acordou cedo e seguiu sua rotina normalmente. Se ainda estava na fazenda, ainda era uma empregada e iria cumprir seus afazeres como sempre fez. Almoçou mais tarde, sozinha, pois não queria ter nenhum tipo de interação com ninguém. Passou o restante do dia trabalhando e indo atrás de tarefas. Não queria deixar a mente vazia, nem dar brecha para que alguém se aproximasse querendo conversar.
Tinha aceitado esperar que Saulo se recuperasse o suficiente para que a conversa com ele e Marina acontecesse. Porém, estava resoluta em deixar a fazenda. O que quer que fosse que Saulo estivesse escondendo, não mudaria sua decisão de recomeçar a vida longe dali. Precisava de um recomeço, dar um novo sentido à sua vida, tomar as rédeas do seu próprio destino.
Quatro dias haviam se passado, com Clara só esbarrando com os outros moradores da fazenda de vez em quando, inclusive Marina e Alice. Todos eles pareciam perceber e entender que ela queria, e precisava, de espaço. Até que, no fim da tarde do quinto dia após a briga, Marina a procurou em seu quarto:
— Podemos ter aquela conversa agora?
Clara não hesitou nem um segundo. Estava esperando aquela conversa ansiosamente, como se sua vida estivesse em suspenso até que ela acontecesse:
— Sim. E Saulo?
— Foi ele mesmo quem propôs que conversássemos hoje.
*****
Sentada na grande mesa do salão principal pela primeira vez, com Saulo na cadeira em sua frente e Marina na cabeceira entre eles, Clara sentiu-se uma impostora. Como se aquele lugar não lhe pertencesse, como se fosse indigna de estar ali.
Saulo estava visivelmente abatido, parecia que tinha envelhecido cinco anos nos últimos cinco dias. Não olhou diretamente para nenhuma das duas, manteve o olhar baixo desde o momento em que se sentou.
Foi Marina quem falou primeiro, diretamente para Clara:
— Eu gostaria de saber sobre aquela história que você me contou antes... Sobre sua família...
Clara foi direta. Não tinha porquê esconder mais nada:
— Era mentira. Bem, a maior parte... Minha mãe realmente morreu quando eu tinha dezessete anos. Depois que o meu pai morreu, ela se entregou, adoeceu e alguns meses depois...
Marina apenas meneou a cabeça. Não saberia nem o que dizer. Depois, olhou para Saulo e perguntou:
— Você mesmo sugeriu essa conversa... Quer começar?
O homem continuou com o olhar baixo, limpou a garganta, esperou alguns segundos e finalmente começou a falar:
— Sininho... O que você disse sobre o assassinato... É verdade. Mas a patroa não sabia de nada.
Como nenhuma das duas disse alguma coisa, ele continuou:
— Seu pai não queria se desfazer das terras de jeito nenhum, mas eu e Osmar sabíamos o quanto a patroa queria aquele lugar...
Marina demonstrou seu desconforto, ajeitando o corpo na cadeira. Saulo a olhou de relance por um breve instante, antes de continuar:
— Depois que a gente tentou algumas vezes que ele vendesse, a patroa já tinha até desistido... Mas Osmar quis ir uma última vez tentar a sorte... Eu fiquei na fazenda porque falei pra ele que não tinha jeito, seu pai não iria vender nem por nada.
O senhor suspirou profundamente, coçou a cabeça e continuou devagar:
— Ele voltou dizendo que estava tudo resolvido e que tinha conseguido fechar o negócio. Eu achei estranho e perguntei como... Ele se enrolou um pouco, mas falou que Carlos tinha morrido do coração alguns dias antes dele chegar lá... E que a esposa tinha concordado em vender porque não queria mais ficar naquelas terras que lembravam o marido.
Clara encostou as costas na cadeira e fechou os olhos tentando conter a emoção que falar da família ainda a acometia.
Marina percebeu seu estado, colocou a mão sobre a dela e perguntou:
— Tudo bem?
Clara a olhou e balançou a cabeça positivamente. As duas voltaram a atenção para Saulo que continuou:
— Eu desconfiei desde o primeiro momento que Osmar tava escondendo alguma coisa. O jeito que ele contava... Às vezes as histórias não batiam... Então resolvi ir pessoalmente em Cachoeira Verde saber o que tinha acontecido. Foi aí que fiquei sabendo que Carlos tinha morrido de tiro, deixando uma mulher e uma filha. Na mesma hora liguei os pontos...
Marina falou com Saulo num tom que nunca, em toda sua vida, havia falado:
— E por que você escondeu isso de mim durante todos esses anos?
Saulo não a encarou quando respondeu:
— Eu não consegui, patroa. Você tava tão feliz que tinha conseguido aquelas terras...
Marina foi rude:
— Estava, Saulo, mas eu nem imaginava o que vocês tinham feito para consegui-las...
No mesmo instante Saulo a rebateu:
— Nós não, patroa... Eu também não sabia... Jamais ia imaginar que Osmar fosse capaz de uma coisa dessas.
Ele olhou para Clara e continuou:
— Eu jamais ia concordar com uma coisa dessas, Deus me livre carregar uma morte nas costas.
Clara olhou para o rosto daquele homem em sua frente. Ela a considerava um pai e, por ironia do destino, ele era um dos envolvidos na morte do seu pai verdadeiro:
— Mas você compactuou com ele, Saulo... Você o acobertou durante anos... Ele podia ter pagado pelo que fez.
Saulo estava desesperado:
— Eu não tinha como provar que tinha sido ele. E tinha medo de... De alguma forma, isso respingar em você, patroa.
Marina apoiou os cotovelos na mesa e escondeu o rosto entre as mãos. Aquilo era um pesadelo. Voltou a olhá-lo e perguntou:
— Então você sabia quem Clara era quando ela chegou aqui?
Saulo olhou para Clara quando respondeu:
— Na verdade, fui eu quem trouxe ela pra cá...
As duas mulheres olharam interrogativamente para ele, que continuou:
— Depois que eu descobri tudo, me senti na obrigação de ajudar a família do morto... Pedi pra uma pessoa da cidade que me mantivesse informado, que me dissesse se as duas precisassem de alguma coisa. Foi essa pessoa que me disse, meses depois, que a viúva tinha falecido e a menina tava sozinha no mundo... Vivendo da ajuda de conhecidos. Consegui levá-la pra trabalhar na outra fazenda, e quando deu, trouxe ela pra cá...
Marina inspirou profundamente e só conseguiu dizer:
— Inacreditável, Saulo.
Depois perguntou diretamente para Clara:
— Com o dinheiro que vocês receberam, ainda dava pra se manterem por um bom tempo... O que aconteceu?
Clara a encarou incrédula por alguns segundos:
— Como é? Isso é uma piada?
Marina disse realmente tentando entender:
— O valor que eu paguei era muito alto...
Clara quase gritou:
— O valor que você pagou mal deu para oito meses de aluguel.
Marina olhou para Saulo em busca de afirmação:
— Isso não é possível, nem se vocês tivessem alugado um castelo...
Saulo confirmou:
— Era um valor bem alto, eu mesmo ajudei a contar o dinheiro.
Clara olhou de um para o outro, absolutamente perdida. Marina pegou o contrato que tinha encontrado no escritório e deixado em cima da mesa, dentro de uma pasta, até então. Passou o papel para Clara que o olhou, olhou para os dois, voltou a olhar o papel e disse:
— Nós não recebemos nem a metade disso.
Saulo estendeu a mão, pedindo o papel e depois que Clara o passou, disse:
— Como não? Tá aqui a assinatura da sua mãe.
— Mas não era esse o valor... Eu tenho certeza.
Marina perguntou para Saulo como quem se esforça para lembrar de alguma coisa:
— Osmar foi pessoalmente levar o dinheiro. E alguns meses depois disso ele... Foi embora daqui.
Saulo confirmou. Os dois ficaram se olhando por alguns segundos, até ele dizer:
— A patroa acha que ele...?
— Foi muito repentinamente que ele pediu as contas.
— Aquele filho da mãe... Sumiu no mapa... Na idade que ele tinha não era tão fácil arrumar serviço.
Marina se levantou e foi até a janela. Precisava de ar. Era muita informação em um só dia, e a história toda era pior do que ela imaginava.
Clara não sabia se conseguiria acreditar em tudo aquilo. A verdade que sempre tinha carregado consigo sobre a morte do seu pai, sobre quem Marina era, sobre como ela roubou e acabou com sua família... Não era aquela?
Como se tivesse lido seus pensamentos, Marina voltou para a mesa e perguntou para ela:
— Quem foi que te disse que eu mandei matar seu pai? De onde veio essa história?
— Na época eu ainda era jovem pra entender... Mas era só ligar os fatos... Meu pai era querido por todos, não tinha inimigos. E foi justo depois que ele se negou a vender as terras pra você... Foi um amigo da família que abriu meus olhos e da minha mãe.
Marina a olhou nos olhos quando fez a próxima pergunta:
— Então você já sabia quem eu era, quando chegou aqui?
Clara confirmou apenas balançando a cabeça. Depois perguntou para Saulo:
— Por que você me trouxe pra cá? Sabendo de tudo...
— Eu me senti responsável... Era uma forma de compensar o que tinha acontecido.
Clara fechou os olhos mais uma vez. Teria que absorver tudo aquilo. Reconstruir a história que tinha tão bem gravada em sua mente até então. Era muito para entender.
Mas apesar de tudo, uma coisa não havia mudado: sua vontade de ir embora daquele lugar.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 03/08/2023
Vai embora Clara, viver deixar o passado e enterra.
AlphaCancri
Em: 09/08/2023
Autora da história
Será que ela consegue?
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