Capitulo 1 - O anúncio
O que parecia ser um domingo comum, tornaria-se um marco dentro da vida dos Gutierrez. Mas, se pensar bem, nada era corriqueiro e comum para os donos de um dos maiores conglomerados do terceiro setor econômico. O que iniciou como uma empresa de radiotáxis nos anos 80 pelas ruas da capital paulista, lideradas pelo hispano brasileiro Muñoz Gutierrez, em menos de dez anos, quadruplicou a rota. Sempre um passo à frente, Muñoz utilizou parte dos lucros para investir em um setor que crescia exponencialmente na época, o de telefonia celular, além de ampliar sua frota para táxis aéreos também. Seus investimentos em diferentes esferas se tornou o Grupo Gutierrez Ltda. Desde cedo, Muñoz ensinou Cecília sobre como funcionavam os negócios da família. A jovem, aos poucos, foi criando responsabilidade, principalmente quando iniciou um relacionamento estável, ainda não interposto por lei na época, com Magdalena Mancini, uma jovem designer de moda começando sua carreira como assistente de ninguém menos que Alexander Mcqueen, um titã do mundo dos estilistas e amigo próximo de Cecília. Magdalena ficou por um tempo fazendo a ponte São Paulo - Londres, onde lançou sua própria linha de roupas de grife e, enquanto se concretizava no universo da moda, dirigia diversas ONGs pelo Brasil afora. Sempre muito participativas, o casal fazia recorrentes visitas às organizações que financiavam, e dentre diversas causas, havia uma que lhes chamava a atenção por se tratar de uma iniciativa que abrigava crianças órfãs. Dentre essas crianças, três irmãos roubaram o coração das magnatas: Lorenzo, na época com 10 anos, Ana Beatriz, com 7, e a recém-nascida Luiza. Os pequenos haviam acabado de perder os pais biológicos em uma enchente no interior de Minas Gerais no ano de 2003. Como não havia nenhum familiar ou parente próximo, as crianças foram abrigadas por um dos orfanatos apoiados pelo Grupo Gutierrez. O casal utilizou todo seu capital de influência para agilizar o processo de adoção, e em questão de semanas as três crianças já estavam morando com as novas mamães.
Vinte anos de memórias se passaram. Cada filho tomou seu rumo como a vida costuma ser. Entretanto, de volta ao fatídico domingo, os três filhos de Magdalena e Cecília Gutierrez foram convidados para uma reunião de família na mansão das matriarcas, e estranharam o pedido. De qualquer modo, toparam.
Ana Beatriz, a filha do meio, foi a primeira a aparecer. Com o cabelo preso em um coque mal-feito e as roupas amassadas, havia acabado de sair de um plantão finalizado com uma cirurgia de três horas e meia. Era médica formada pela Universidade de Boston, fez residência em Yale, mas quando retornou para férias no Brasil, ao comparecer a um congresso por puro hobby, apaixonou-se por Dennis, um médico coloproctologista e livre docente pela federal de São Paulo, o que a fez retornar ao país de origem para o fellowship em coloproctologia.
O filho mais velho, Lorenzo, foi o segundo a chegar. De gravata, gel no cabelo e barba aparada, formado em Direito pela Universidade Georgetown, com pós graduação em Direito Constitucional Brasileiro pela Universidade de São Paulo, foi, por um ano, parte da equipe jurídica do grupo Gutierrez, até que resolveu se candidatar a deputado federal. Com o dinheiro investido em campanha, saiu-se muito bem nas eleições, e vinha todo final de semana para a capital paulista, retornando, geralmente no domingo à noite com um dos bimotores da frota de taxi aéreo do Grupo Gutierrez. Dessa vez, entretanto, adiaria a viagem por algumas horas a pedido das mães.
Ao redor da mesa, Cecília, trajando um blazer social Balmain marfim, com botões dourados que combinavam com a cor de seu cabelo Pixie emplumado clássico, situava-se em uma das pontas da mesa de refeições. Tal mesa, no referido cômodo, era específica para o núcleo familiar, menor e mais aconchegante. Na outra ponta, Magdalena trajava uma saia midi e uma blusa de corte acinturado da Chanel. Os quatro jogavam conversa fiada sobre política e atualidades até Lorenzo interromper:
- Estamos celebrando alguma coisa? Geralmente nos reunimos assim quando alguém está para anunciar algo.
- Temos sim algo a anunciar. – Avisou Cecília. – Mas vamos esperar a irmã de vocês chegar.
- Que os céus proíbam algo ser feito sem a presença da Luiza. – Ana Beatriz revirou os olhos.
- Anabê! – Magdalena chamou sua atenção. – Sua irmã atrasa, mas é a que mais nos visita.
- Vou ligar para ela. – Ana resolveu agir antes que o assunto se voltasse contra ela. - Se duvidar, deve ter dormido o domingo inteiro.
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Em um quarto do tamanho de um chalé de tamanho médio, decorado com tapetes e quadros que equivaleria ao PIB de pelo menos três estados brasileiros, repousava em uma cama queen size a caçula do império Gutierrez – Luiza, uma moça que entrava no início do que dizem ser a melhor década da vida, dos 20 aos 30 anos. Com seu cabelo em corte short bob de cor acastanhada, realçado por uma mecha loira que cobria seu rosto adormecido, a garota se encontrava ao no meio de duas outras garotas, cujos nomes mal sabia, que conhecerá na noite passada e com quem dividirá um número variado de pílulas, produtos em forma de pó e orgasmos múltiplos.
Seu sono logo foi cortado pelo som de seu celular tocando inúmeras vezes. No início, Luiza pensou que fosse o despertador, então o desligava achando que estava ativando o modo soneca. Quando finalmente olhou para tela do aparelho, observou o identificador de chamada constando “AB”, de Ana Beatriz, sua irmã mais velha. Quando eram crianças, Luiza costumava venerá-la. Conforme foram crescendo, a amizade se manteve até Ana entrar na faculdade de medicina. Ana acabou se mudando para os Estados Unidos, tal qual seu irmão mais velho, enquanto Luiza terminou seu ensino médio em um internato em Londres.
- Que foi? – Luiza atendeu de mau humor, enquanto colocava seu roupão de cetim e caminhava em direção à varanda de seu quarto para obter mais privacidade.
- Luiza, você estava dormindo até agora?! Já está todo mundo aqui te esperando para o jantar!
- Oi? Que jantar?
- Você só pode estar de brincadeira. A reunião que nossas mães agendaram para nós!
- Eu sei, eu estava brincando. Eu já estou de saída, não se preocupe. - A caçula mentiu, enquanto retornava às pressas para dentro do quarto a fim de escolher uma peça de roupa.
- Nós temos responsabilidades a cumprir, Luiza! Não podemos viver à sua mercê. Eu tenho dormir cedo para estar amanhã no hospital e o Lorenzo tem que ir para Brasília.
- Eu sei, que saco! Já estou indo, já estou indo.
Luiza revirou os olhos e encerrou a chamada. Foi até seu closet, escolheu uma regata branca, um colete, uma calça de couro preta e deixou as garotas nuas dormindo em sua cama.
Antes de sair, seu mordomo, um senhor no qual Luiza confidenciava suas desventuras, a abordou:
- Bom dia, Srta. Luiza, o motorista já está lhe esperando em frente ao prédio.
- Muito obrigada, seu Alceu. Viu, tem duas meninas no meu quarto, se elas acordarem, pode dar um jeito de dispensá-las? Por favorzinho…
- Não precisa falar duas vezes, senhorita Luiza. - Alceu sorriu. Já estava acostumado com o protocolo.
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Luiza chegou com quase meia hora de atraso, atraindo olhares furiosos de seus irmãos.
- Mãe, mamãe, agora que a pessoa mais importante da “festa” chegou, pode começar logo essa reunião e nos dizer o assunto? - Ana Beatriz comentou.
Cecília e Magdalena se entreolharam. Foi quando Cecília começou:
- Magdalena e eu chamamos vocês aqui porque gostaríamos de conversar, ou melhor, dar um comunicado antes de liberarmos para a imprensa. Magdalena e eu estamos casadas há cerca de duas décadas, e criamos as três pessoas mais preciosas desse universo para nós, que são vocês. Foi uma parceria regada a muito amor e carinho, mas como nem tudo é eterno, essa parceria chegou ao fim. Conversamos muito a respeito e-
- Espera, você e mamãe vão se separar?! - Luiza interrompeu.
- Sim, filha. - Cecília respondeu.
- Por quê? – Os olhos de Luiza se tornaram como os de uma criança quando recebe uma má notícia.
- Foi como sua mãe explicou, minha querida. Nem tudo é eterno... – Magdalena complementou.
- Mas vocês têm o casamento perfeito! Nunca houve um escândalo na mídia, nunca nem vi vocês duas brigarem! – Luiza contestou novamente.
- Filha, não importa o motivo, o que importa é que um dia acordamos e percebemos que o casamento não existia mais.
- Não pode ser. Não acredito nessa desculpa. Anabê, Lorenzo, vocês não vão falar nada?!
- Mãe e mamãe são adultas, Lu. Elas decidem o que é melhor para elas. – Ana Beatriz analisou friamente.
- Estou com a Anabê nessa. – Lorenzo complementou.
- E como vamos celebrar natal e outras comemorações juntas? Vocês vão continuar aqui em São Paulo?
- Você não é criança, Lu. – Ana Beatriz interveio. – Nós podemos ver nossas mães em feriados diferentes. Podemos até vê-las no mesmo dia ainda que elas estejam em países diferentes, dependendo da localização.
- Respondendo à pergunta, eu ficarei na mansão e Magdalena comprou uma cobertura no Rio de Janeiro, lá no Leblon.
- E quanto a divisão dos bens? – O lado jurídico de Lorenzo despertou.
- Já conversamos sobre isso também. Magdalena continuará com as ações dela no Grupo Gutierrez, e vai gerenciar o setor de moda Mancini-Gutierrez lá na sede do Rio.
- Nada será fracionado então? Nem o hospital? – Anabê questionou.
- Nem o hospital. Pode ficar tranquila.
Nisto, uma das governantas abordou uma das matriarcas da família.
- Dona Cecília, o jantar está pronto para ser servido.
- Pode mandar trazer, obrigada.
- Eu vou embora, perdi a fome. – Alegou Luiza.
- Mas pedimos para fazer um dos seus pratos favoritos, filha! Camarão empanado com queijo brie! – Cecília argumentou.
- Eu estou sem fome mesmo, mãe. Obrigada mesmo assim.
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A caçula então retornou para seu apartamento, encontrando sua cama perfeitamente arrumada e vazia. Ligou seu sistema de som - que não atrapalharia ninguém, uma vez que seu quarto possuía isolamento acústico para nenhum barulho prazeroso vazasse daquele ambiente - e ficou escutando uma estação de rádio de músicas antigas tentando pegar no sono.
Sem conseguir, foi até a cozinha, onde encontrou seu mordomo terminando de organizar a dispensa. Desde pequena, Alceu escutava cada birra ou reclamação de Luiza e tentava lidar da forma mais pedagógica possível, quando era mordomo na mansão de Cecília e Magdalena. A pedido da própria caçula, mudou-se para a penthouse e continuou aconselhando-a mediante dificuldades que apareciam. Esta última não seria diferente.
- Minhas mães vão se separar, Alceu.
- Desculpe-me por isso. A senhorita está bem?
- Na verdade, não. Para mim, o casamento delas era perfeito. Nenhum relacionamento meu chegaria aos pés delas. Foi uma quebra de realidade imensa para mim.
- Sempre temos a visão que mães e pais são super-heróis. Nosso mundo pode desabar quando descobrimos o contrário. Mas tenho certeza que o amor delas por você e seus irmãos nunca mudará.
- Eu sei disso, mas é estranho. Eu via as duas quase todos os dias na empresa, agora a mamãe Magdalena não vai mais, pois vai ficar somente na sede do Rio. É muito estranho.
- Leva um tempo para se acostumar, senhorita.
- Eu sinto que elas se amam ainda. Algo aconteceu, elas não quiseram nos falar. Será que alguma das duas tem outra?
- Não cabe a mim dizer, senhorita.
- Você as acompanhou durante todo o casamento, Alceu. Você viu minhas mães se casarem. Nunca viu nada durante o casamento delas que desse algum indício que não durariam para sempre?
- Nunca vi, senhorita. Para ser sincero, eu as considerava almas gêmeas.
- Tem algo de errado, eu sei que tem. E vou descobrir.
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Com a chegada da segunda-feira, Cecília e Magdalena emitiram a nota de divórcio por meio de sua equipe de relações públicas, então já no café da manhã as notícias percorriam as redes sociais.
Já no hospital, Ana Beatriz se paramentava para entrar em uma cirurgia de colostomia transversa, no qual se exteriorizaria o colon transverso para um desvio de trânsito devido neoplasia inoperável. Ao seu lado, estava Paloma, uma colega de fellowship, que também se paramentava, enquanto, já na sala de cirurgia, o noivo e preceptor de Anabê colocava as luvas e o avental.
- Você está bem? - Paloma perguntou, enquanto terminava de lavar as mãos e antebraços.
- Por que não estaria? - Ana retornou a pergunta.
- Ouvi algumas enfermeiras comentando sobre suas mães.
- Não tem muito o que eu possa fazer. Elas resolveram entre si. - Ana deu de ombros.
- Você parece estar lidando bem com a notícia. Quando meus pais se separaram, entrei em uma crise sem tamanho. Passei metade da minha adolescência em uma fase completamente rebelde por causa disso.
- Na vida adulta fica um pouco mais fácil. Digo, nem sempre. Quem parece se afetar é minha irmã. - Ana comentou, enquanto, com as mãos erguidas, entrava na sala de cirurgia, seguida de Paloma.
- Doutora Ana. Doutora Paloma. - Dennis as cumprimentou com um aceno de cabeça, já completamente paramentado e em campo, aguardando as residentes para auxiliá-las.
- Doutor Dennis. – Ana o cumprimentou de volta, pois mal se viram no final de semana, e Ana Beatriz decidiu dormir no hospital na noite passada.
- Doutor Dennis. – Paloma também acenou, estranhando o clima de frieza entre os dois.
O preceptor manteve a compostura e a cirurgia ocorreu sem conversas paralelas, apenas restrita a perguntas relacionadas ao procedimento e anatomia. Ao final, Dennis aguardou Ana Beatriz no corredor enquanto ela deixava tudo pronto para Paloma terminar as suturas.
- Por que não me falou sobre o divórcio de suas mães? – O noivo a seguiu pelo corredor do centro cirúrgico.
- Você nem quis ir ao jantar delas. – Ana Beatriz continuou andando, sem olhar para trás.
- Ana, você sabe que eu não sou de eventos familiares. E toda refeição vocês passam a maior parte do tempo falando de negócios.
- Você queria que falássemos o tempo todo sobre o quê? Só Medicina? A vida não gira em torno desse hospital.
- Não vamos discutir. Você está afetada por causa do divórcio delas. Mulher quando fica nervosa assim nem adianta discutir ou argumentar. Duas mulheres se divorciando deve ser dor de cabeça em dobro.
Neste momento, Ana parou e se virou para o noivo:
- Dennis Ludwig, você acabou de fazer um comentário misógino sobre mim e minhas mães? Foi isso mesmo?
- Não! Eu...eu só fiz uma brincadeira de mal gosto. Perdão por não ter te acompanhado.
Bastava uma expressão facial de “cachorro arrependido” e um olhar de piedade, que Ana Beatriz se derretia.
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Lorenzo, que resolvera dormir na mansão de suas mães naquela noite de domingo, ficando até tarde da noite conversando juridiquês sobre as implicações do divórcio, pousou em Brasília no início da manhã e, antes de ir ao congresso, sentiu-se nostálgico, o que lhe motivou a passar em uma cafeteria que costumava frequentar no início de seu mandato. Lembrou-se que lá conheceu seu primeiro namorado após ser eleito, um relacionamento que durou poucos meses.
O jovem parlamentar pediu o latte que outrora seria degustado na companhia de Apolo, o jovem arquiteto por quem Lorenzo um dia se apaixonou. O divórcio de suas mães o afetou de modo subconsciente ao ponto de procurar o contato de Apolo no celular e digitar três a quatro rascunhos de mensagem, perguntando como estava ou como andava a empresa de arquitetura e design. Desistiu de enviar e resolveu olhar nas redes sociais. Fotos com amigos, fotos na empresa, fotos de eventos. Lorenzo suspirou. Viu que em todas as fotos mais recentes, um mesmo perfil sempre comentava algo com um emoji de coração. Um tal de Fred. Checou nas fotos marcadas, aquelas que perfis de outras pessoas postam. Uma foto dos dois juntos na praia. Um comentário aparentemente romântico de Apollo na dita foto. Lorenzo suspirou. Apollo provavelmente seguiu em frente. Talvez fosse esse o segredo. Seguir em frente.
Na empresa, apesar da notícia, o fluxo não teve grandes alterações. Nas últimas semanas Magdalena já estava sutilmente fazendo a transição para o escritório carioca. Enquanto isso, Cecília, como de costume, chegava sempre às 8 da manhã, em uma pontualidade semi britânica.
A CEO do grupo Gutierrez diariamente contemplava, em seu escritório, uma vista privilegiada do horizonte enfeitado pelo Monumento à Independência. A sua volta, paredes revestidas com efeito de madeira de lei transmitiam um ar rústico, porém moderno, e uma cadeira cujo design fora concebido minuciosamente por um designer italiano e primo de sua ex-esposa demonstrava a grandiosidade e poder exercidos naquele cargo.
Já fazia algumas semanas que, durante todas as manhãs, Luiza passava no escritório entre 8:10 e 8:20, trazia dois cafés e conversava com sua mãe por alguns minutos, atualizando-se sobre a empresa e eventos cotidianos. Entretanto, naquela manhã, Luiza não apareceu. Cecília aguardou até 9 da manhã e nada. Enviou uma mensagem, mas não foi visualizada. Pediu para sua secretária ligar no ramal em que Luiza costumava ficar na maior parte da manhã de seu estágio, mas ela não havia comparecido. Lhe ocorreu a ideia de ligar para o mordomo, que finalmente atendeu, mas afirmou que Luiza saiu logo pela manhã em direção ao heliporto.
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A cerca de 400km da sede paulista do Grupo Gutiérrez, Luiza fez uma rápida viagem ao Rio de Janeiro. Imaginou que se houvesse algum motivo obscuro, encontraria as respostas na sede carioca.
O escritório de Magdalena ficava no 12º andar, com vista para a Praia do Leblon. A magnata se surpreendeu quando o segurança lhe avisou que Luiza estava no prédio. Com a liberação da secretária, a filha caçula adentrou o escritório ligeiramente desconfiada, olhando todos os detalhes do ambiente. Algo que fugia completamente da decoração habitual de mamãe: tons e padrões vibrantes, quadros da era pós moderna, algo que destoava da antiga Magdalena, amante da renascença.
- Bastante coisa mudou aqui desde a última vez que visitei.
- Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, filha. Fico muito feliz com a sua presença, mas preciso perguntar: você avisou sua mãe que viria para cá? Ela me mandou mensagem agora pouco perguntando se soube de notícias suas.
- Pode falar para ela que tirei o dia de folga. Mas não se preocupe, volto em tempo para a faculdade à noite. – Luiza continuou observando atentamente aos quadros de arte.
- Gostou das obras? São de um artista relativamente novo, é de Duque de Caxias. Foi uma amiga que o recomendou.
- Amiga? – Luiza arqueou uma sobrancelha. Arte era um tema extremamente importante para sua mãe. Não era qualquer pessoa que faria uma indicação de artista ou quadro, ainda mais para algo tão pessoal quanto a decoração de seu próprio escritório.
Magdalena sorriu, entendendo a perspicácia da caçula.
- Aonde você quer chegar com isso, filha?
- Lugar nenhum, lugar nenhum. Como está a agenda hoje, mamãe?
- Daqui a pouco tenho uma reunião para uma parceria com um novo designer de scarpin. Quer participar?
- Sua amiga da indicação dos quadros vai estar presente?
- O que você está insinuando, Luiza?
- Nada não, nada não. Como chama essa amiga?
- Claudia é uma amiga aqui do Rio de Janeiro. Cecília já a conhecia há anos também. Quer perguntar algo mais?
- Quero sim. Por que você e a mãe se divorciaram?
- Nós já explicamos.
- Não explicaram não. Deram uma desculpa fajuta e a imprensa comprou a história porque vocês também mandam nela.
- Luiza, eu amo sua mãe. Amo de verdade. Mas há coisas que nem o amor consegue sustentar por si só. Um dia você vai entender.
A filha caçula não se conformava com aquilo que não conseguia compreender. Em sua cabeça, suas mães foram feitas uma para a outra. Não imaginava um cenário diferente. E era justamente esse cenário que se solidificava em sua frente.
No início da noite, já de volta à capital paulista, Luiza chamou seu chauffeur para levá-la à faculdade, na saída da cidade. Originalmente, a caçula iniciou o curso na Inglaterra, mas como repetiu o primeiro semestre por faltas, Cecília e Magdalena decidiram trazê-la de volta ao Brasil. De perto poderiam monitorá-la melhor.
A Universidade parecia um Forte isolado próximo a um dos condomínios urbanos mais caros da cidade. Apenas um quinhão da nata elitista conseguia acesso às limitadas vagas oferecidas, e o acesso era apenas por indicação e uma série de outras burocracias além do vestibular ou da prova de transferência. Outro modo de entrada seria por demonstração de excepcional inteligência, a ponto de determinados estudantes advindos de faculdades públicas almejarem editais de ingresso naquele lugar pelas oportunidades dentro e fora da graduação.
Um diferencial particularmente peculiar era que, exceto cursos integrais, os demais funcionavam apenas no período noturno. Provavelmente tentaram se adaptar às corujas burguesas que ora queriam aproveitar as madrugadas, ora seriam chamadas por seus pais para estagiar em suas empresas. De qualquer modo, uma vaga na faculdade de administração significaria uma cadeira na diretoria de uma grande multinacional logo nos primeiros dois a três anos como egresso.
Tudo que Luiza precisou foi de Cecília cobrar um ou dois favores do reitor da Universidade, e assim a jovem herdeira teve sua vaga garantida. O mesmo não aconteceu com a mais nova aluna, que também ingressara por transferência e com quem acabara de topar na lanchonete, completamente perdida com uma bolsa que, segundo os olhos precisos de Luiza e o instinto de designer que vinha de criação, sabia dizer que aquela edição havia saído pelo menos 7 ou 8 anos atrás, no mínimo. Seu cabelo castanho claro caía em cachos bem definidos e a suave maquiagem dava um ar de business casual com toques de inocência.
- Com licença, você precisa de ajuda? - Luiza abordou a garota.
- Preciso sim! Sala 105, sabe onde fica?
- É a minha sala! Já estou indo para lá. Você é aluna nova?
- Sou sim, acabei de ser transferida. - A garota sorriu, finalmente encontrando alguém para lhe ajudar. - Prazer, Daniela.
- Luiza. O prazer é meu!
A jovem Gutierrez a guiou até a sala, e se sentou atrás da moça, na segunda carteira, o que era incomum, pois geralmente ficava ao fundo da sala com seus amigos. No início do intervalo, um funcionário chamou Daniela para algumas assinaturas que faltavam finalizar no contrato, deixando Luiza sozinha mexendo no celular.
- Não sentou lá com a gente por quê? - Filipo, um de seus colegas mais próximos, e filho do reitor, questionou.
- O professor dessa matéria pega no meu pé, sabem como é…
- Não é por causa da nova aluna não? - Liara, outra colega, suspeitou.
- Vocês viram o currículo dela?! - Filipo perguntou, como se todos já soubessem.
- Depois que o professor pediu para ela se apresentar na frente da sala, Filipo já correu nas redes sociais e o lattes dela para ver quem era. - Liara revirou os olhos. - Weirdo.
- Hey, não sou weirdo! Foi curiosidade, só isso. Ela entrou com 17 anos em relações internacionais, formou-se com 21, pelo visto resolveu mudar de carreira, passou em primeiro na federal e agora se transferiu para cá. Pelo que andei pesquisando, ela foi uma das poucas pessoas na história que gabaritaram o exame nacional. No currículo que eu vi, ela é fluente em DOZE idiomas.
- Doze?!? - Liara e Luiza perguntaram ao mesmo tempo.
- E eu mal falo quatro. Estou simplesmente abismado e encantado com essa garota. - Filipo comentou.
- Cuidado que a Luiza vai ficar com ciúmes… - Liara brincou.
- Ciúmes de mim? Aw, Lu, não sabia que você me amava. - Filipo também brincou.
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Ao final da aula, Daniela terminava de guardar seus materiais em sua bolsa, enquanto Luiza tentava se aproximar mais uma vez:
- Hey, eu e alguns colegas vamos beber em Angra dos Reis agora, é aniversário da irmã da Liara. Quer vir conosco?
- Angra? - Daniela se assustou. - Você diz Angra dos Reis, Rio de Janeiro? Agora? Dez da noite de uma segunda feira?
- Sim, nós vamos de taxi aéreo.
- Para o Rio de Janeiro? – Daniela continuava inconformada.
- Sim, qual o problema? Estive lá hoje cedo. E agora não vou ficar muito, tenho que acordar cedo amanhã. Até às duas estaremos em casa.
- Não sei… tenho que trabalhar amanhã. Comecei hoje no novo emprego, não sei se seria uma boa.
- Onde você trabalha?
- Estou por enquanto como assistente administrativa em uma empresa de turismo, Travel-Tier.
- Travel-Tier? A antiga Travelenzr?
- Isso!
- É perto do prédio que eu faço estágio… - Luiza riu. - No Grupo Gutiérrez.
- Grupo Gutierrez? De fato, a Travel-Tier foi comprada pelo Grupo mesmo há pouco tempo…
- Sim, minha mãe comprou a agência mês retrasado…
- Espera… Luiza Gutierrez? - Daniela fez a conexão. Se ela faz estágio lá, deveria ser filha ou alguém muito bem conectada. - Nossa, como não percebi antes! Suas mães estavam nas notícias o dia todo e… desculpe! Desculpe a falta de noção, deve ser um assunto delicado e-
- Relaxa! Digo… eu desculpo se você for com a gente… - O sorrisinho esperto de Luiza despontou.
Seria loucura. Início de semana, com colegas de classe que Daniela acabara de conhecer. Mas seu jovem cérebro, em um lapso de julgamento, lembrou das célebres frases “do it for the plot” e “you only live once”. Bastaram dois clichês para tomar uma decisão.
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O pequeno grupo pousou próximo a um rancho na costa verde carioca, local onde Ayla, irmã de Liara, a esperava com outros amigos.
Daniela, não conhecendo ninguém, deparou-se com algumas fotos na parede do rancho, enquanto todos serviam-se de destilados e vinhos do século passado. Reparou em uma foto ao lado de uma figura conhecida historicamente: um homem alto se inclinava ligeiramente para um aperto de mão respeitoso com o então presidente Getúlio Vargas.
- Essa foto foi do dia que Getúlio encontrou meu bisavô. – Uma voz atrás surgiu enquanto Daniela observava atentamente.
- Seu bisavô é Geoffrey Knox? – Daniela olhou assustada.
- Sim. Conhece a história dele?
- O caso do navio Siqueira Campos? Conheço sim. Um bloqueio econômico da Grã-bretanha à Alemanha que gerou certa confusão com o Brasil porque tínhamos um acordo com uma fábrica alemã de armas. O navio com os equipamentos teve que desviar a rota para Gibraltar, mas então seu bisavô e Getúlio entraram em acordo e liberaram o navio para seguir trajeto ao Brasil, não foi?
- Você é a primeira pessoa cuja qual não preciso explicar a foto! – A garota riu. - Acho que não me apresentei. Eu me chamo Ayl-
- Ayla, a aniversariante! – Daniela a cumprimentou com dois beijos na bochecha. – Feliz aniversário, aliás. E desculpe não ter trazido nenhum presente, até o início da noite eu não fazia ideia que pararia aqui...
- Não se preocupe. Você é da sala da Liara, certo? Certeza que ela e Luiza praticamente te forçaram a vir. Conheço as duas.
- Elas foram bem convincentes. – Daniela riu.
- Não vai beber? – Ayla guiou a convidada até uma mesa com baldes térmicos e gelo. – O que você bebe? Temos Iordanov, Zacapa, Bacardi...
- Qual seria sua indicação? – Daniela olhou as garrafas e todas pareciam ser um grande contêiner de álcool folheado a ouro.
- Que tal um shot de Grán Patrón?
- É tequila?
- Exatamente.
- Alguém aí falou grán patrón? – Luiza apareceu com um copo cujo conteúdo apresentava uma mistura de cores devido a diversas bebidas diluídas.
- Vamos fazer alguns shots! – Ayla comentou.
- Só avisando que não posso beber muito, tenho trabalho amanhã. – Alertou Daniela.
- Todas nós trabalhamos amanhã, não se preocupe. – Luiza respondeu.
- Lu, você literalmente dorme em quase todas as reuniões que sua mãe te chama... – Ayla brincou.
- Hey!! Não me entrega assim na frente da novata. Você só me viu em UMA reunião.
- E você cochilou o tempo todo no canto! Caso você não esteja entendendo, Dani, a minha linha de roupas esportivas fez uma parceria com o Grupo Gutierrez uma vez, então eu tive uma reunião com as mães da Lu junto outros representantes, e ela participou, quer dizer, dormiu a reunião inteira em um canto da sala.
- Já era um negócio certo, vocês só estavam finalizando os pormenores, e eu tinha acabado de sair de uma semana de provas.
- Galera, acho que fiz uma besteira!- Fillipo interrompeu a conversa, completamente atônito, enquanto segurava o celular.
- Bebeu demais e investiu em ações erradas de novo? – Questionou Luiza.
- Lógico que não! Esse erro só se comete uma vez. Ou duas. Na verdade eu pedi para o meu dealer chegar mais cedo e ele acabou sendo pego.
- Dealer? – Daniela perguntou, confusa, mesmo já conhecendo a tradução literal.
- O cara que traz o pó e as pílulas. – Luiza explicou.
- Ah. – Daniela tentou reprimir seu recuo involuntário ao entender.
- Não tem problema, acho que tenho sobrando na bolsa, espera. – Liara começou a remexer em sua bolsa e encontrou um saquinho com uma substância que definitivamente não era açúcar.
Já passava das cinco da manhã e Daniela resolveu cochilar em um canto da sala de estar, quando, já completamente alterada, Luiza a chacoalhou.
- Hey, acorda, nós vamos embora!
- Hm? – Meio atordoada, Daniela olhou o horário na tela do celular. – Caramba! Eu dormi a noite toda aqui?
- Boa parte da noite. – Luiza riu.
- Nossa bela adormecida acordou! – Ayla surgiu, também alterada. – Perdeu a melhor parte da festa!
- Mil perdões, meninas, é que realmente tenho um dia cheio amanhã, digo, hoje. Além de tudo, dormi com a perna dobrada e agora está dormente.
- Sem problemas. – Ayla ajudou a convidada sonolenta a se levantar.
Enquanto Luiza tomava à frente, Ayla acompanhou Daniela até o Heliporto.
- Hey, sexta-feira estarei em São Paulo, quer sair para jantar ou algo do tipo à noite? – Em sua cabeça, Ayla questionou em um tom absolutamente normal.
- Você falou tão rápido que eu só entendi São Paulo e jantar... – Daniela riu. – Isso foi um convite?
- Se for, você aceita?
- Ayla é old school. Jantares, encontros... – Luiza comentou.
- Você parece estar sabendo demais... – Daniela desconfiou.
Luiza e Ayla se entreolharam.
- Lu, a gente já...? – Ayla questionou, realmente na dúvida.
- Acho que já, sinceramente não lembro! – Luiza gargalhou.
- Vocês estão completamente fora de si. – Daniela também riu.
- Mas eu falei sério sobre o jantar. Topa? – Ayla insistiu.
- Pergunte-me novamente quando estiver sóbria...
- E quando vou poder te ver novamente?
Daniela piscou sorrateiramente e sorriu, logo antes de entrar no avião bimotor.
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- Você deu um fora na Ayla Knox? – Luiza questionou, incrédula.
- Não foi um fora. Ela estava completamente cheia de substâncias entorpecentes. Não vou aceitar um encontro com alguém nesse estado. E eu também acabei de conhece-la, não é bem assim.
Quando adentraram o avião, Luiza recebeu uma mensagem pelo celular.
- Ayla está pedindo seu número de telefone. – Comentou, olhando para Daniela. – Ela disse que promete só mandar mensagem quando estiver sóbria.
- Se de repente você não jogar para esse time, eu estou disponível... – Comentou Fillipo, ainda alegremente bêbado.
- Acredito que o amor seja um espectro que não enxerga gêneros. – Daniela comentou. – Mas Fillipo, você está mais bêbado do que todas as meninas juntas, vou fingir que não ouvi seu comentário.
Fillipo fez bico, segurando a risada, enquanto Luiza gargalhou ao ver a cena, o que não durou muito, pois quando a palavra “amor” lhe assentou no pensamento, seu riso se transformou em uma expressão séria, quiçá nostálgica, enquanto olhava pela janela do avião.
- A Luiza está bem? Ficou quietinha do nada. – Daniela perguntou para Fillipo.
- Ela é assim mesmo. Deve estar bolada com o divórcio das mães.
Daniela então se sentou do lado da colega de classe.
- Aceitação é sempre a parte mais difícil do luto.
- Do que você está falando?! – Luiza se assustou.
- Separações causam dores parecidas com as do luto. Aceitação sempre é o mais difícil.
- Ah, eu nem estava pensando nisso... – Luiza desviou o olhar.
- Não mesmo?
- Acho que não consigo nem me enganar. Lorenzo e Ana Beatriz, meus irmãos, ainda conheceram nossos pais biológicos. Eu não me recordo de nada, eu era apenas um bebê quando minhas mães nos adotaram. Então toda referência de família que tenho é delas.
- Mas elas vão continuar sendo sua família. Elas ainda são suas mães, só não estão mais juntas.
- Não é a mesma coisa. – Luiza suspirou. Realmente, a fase mais difícil do luto seria a aceitação.
Fim do capítulo
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