Capítulo 23
Quando Marina chegou à fazenda, a energia elétrica já havia retornado. O barulho dos cascos do cavalo trouxe para fora da cozinha, Saulo, Marta e alguns peões. Sem nenhuma intenção de dar satisfações para nenhum deles, apesar do semblante aflito de todos, desceu do animal, entregou as rédeas para João e disse já entrando na casa:
— Ela está bem.
Foi direto para o quarto, entrou na suíte e abriu as torneiras para que enchessem a banheira. Parecia um animal enjaulado dentro daquele quarto. Andou de um lado para o outro, passando as mãos nos cabelos e no rosto, tentando tirar a aflição que trazia por dentro.
Não podia ter deixado que aquilo acontecesse. “Eu e Sininho... Ela é... Uma menina”. Para desmentir o que tinha acabado de pensar, o cérebro repetiu as imagens de Clara sentada no colo dela, os gemidos que ela deixou escapar, a forma que ela se movimentava, rebol*ndo nos seus dedos, o rosto levemente corado, a boca entreaberta, os seios em sua boca...
Rapidamente balançou a cabeça: “Não, não, não...” Outro pensamento a invadiu como uma flecha atravessando seu peito: “Alice”. O que diria para ela? Como explicaria aquilo? O que ela pensaria?
Arrancou as roupas com pressa e mergulhou na banheira, que só tinha enchido até a metade, querendo que a água inundasse os próprios pensamentos.
*****
Clara demorou alguns minutos, depois que Marina saiu, para enfim se levantar do chão. Pegou a blusa e se vestiu lentamente. Sentia-se confusa e um pouco envergonhada com o que acabara de acontecer. Não conseguia entender como foi capaz de permitir que chegassem aquele ponto.
Saiu do celeiro e cavalgou lentamente em direção à casa. Assim que chegou, encontrou Marta e outros peões preocupados com ela. Tentando esconder a expressão de seu rosto, e querendo ficar sozinha o mais rápido possível, tratou de acalmar Marta:
— Está tudo bem... Eu estava no celeiro esperando a chuva passar.
Quando enfim conseguiu tranquilizá-los e ir para seu cubículo, se livrou das roupas molhadas e se secou. Sentia-se perdida com seus próprios sentimentos em relação a Marina. Tirar a roupa não ajudou muito, pois parecia que o cheiro dela estava impregnado em sua pele.
Como se o fato de ter se relacionado com Marina, por si só, não fosse horrível, pensou em Alice. Não podia ter feito isso com ela... O que ela pensaria? Acharia que Clara era uma aproveitadora, que se deitava com qualquer pessoa, se tivesse a chance.
Deixou o corpo cair na cama e cobriu o rosto com o travesseiro. Queria ter o poder de desaparecer naquele momento, deixar de existir, tamanha era a apreensão do que seria dali para frente.
*****
Marina segurava o telegrama que Sebastião tinha acabado de trazer da cidade. O olhar estava completamente perdido, permaneceu imóvel assim que acabou de lê-lo. Se tivesse chegado três dias atrás, estaria saltitando de alegria. Mas agora, depois do que aconteceu entre ela e Clara, não sabia como conseguiria falar novamente com Alice. Se sentia uma criminosa.
Olhou novamente para o papel em sua mão: “Me ligue às 16h”.
Ainda tinha duas horas para organizar os pensamentos antes de atender ao pedido de Alice. A primeira coisa a fazer era conseguir vencer a apatia que a tomou e levantar daquela cadeira. Quando finalmente o fez, seguiu para o quarto, tomou um banho rápido e se vestiu. Cada movimento foi executado automaticamente, pois a mente estava absolutamente distante dali. Enquanto executava roboticamente cada atividade, pensou e repensou várias vezes no que deveria fazer. Não queria mentir para Alice, a hipótese de não contar nada só lhe ocorreu quando saiu do celeiro, após ter se relacionado com Clara, mas antes que chegasse até a casa, já havia desistido. A relação que tinha com a médica era completamente diferente de todas que tivera antes. Tudo que compartilharam até ali, o amor, o cuidado e a confiança, eram diferentes de tudo que já havia vivido. Por outro lado, não queria abordar aquele assunto por telefone. Aquela era uma conversa para se ter pessoalmente.
Quanto à Clara, sabia que ela não tinha como se comunicar com Alice, pois não tinha o endereço, nem o número de telefone, do hotel em que ela estava hospedada no Rio de Janeiro. Além disso, duvidava que ela quisesse contar aquilo para Alice. Marina apostava que o arrependimento das duas era idêntico... Não por ter sido ruim, mas por tudo que significava.
Chegou na mercearia com antecedência, pagando pela hora do telefone. As mãos estavam trêmulas quando discou o número que agora já estava gravado na memória.
Quando a ligação foi passada para Alice, tentou fingir uma naturalidade que não possuía:
— Oi... Como você está?
A voz dela soou animada do outro lado da linha:
— Bem, mas morrendo de saudades... E tenho ótimas notícias!
Marina tentou imprimir um pouco mais de ânimo na própria voz:
— Que bom...
Alice quase não conseguia se conter:
— Estive com o advogado ontem, assinei tudo que precisava assinar, e adivinhe só?
Ia responder, mas Alice foi mais rápida:
— Não preciso mais ficar no Rio de Janeiro. Agora é só esperar a resolução do processo... Posso embarcar amanhã mesmo, meu amor.
Sentiu um frio na barriga, uma mistura de felicidade e angustia, não saberia dizer qual predominou. Só o que conseguiu responder foi:
— Que boa notícia... Que horas você embarca?
Soube que não teve sucesso em esconder a apreensão, quando Alice perguntou:
— Marina, está tudo bem?
Respondeu rapidamente:
— Sim! Claro... Por quê?
Alice ficou muda por alguns segundos, depois disse:
— Não sei, você está diferente... Tem certeza que não aconteceu nada?
Sentiu-se horrível por ter que mentir, mas estava decidida a ter aquela conversa olhando nos olhos de Alice:
— Tenho... Não vejo a hora de você chegar aqui, vou estar te esperando.
Pareceu convencer Alice, a voz dela já estava novamente aveludada do outro lado:
— E eu não vejo a hora de estar em seus braços. Chego aí no fim da tarde.
*****
Tentando não demonstrar a decepção que sentiu quando desceu na estação e percebeu que era Sebastião quem lhe esperava, Alice o cumprimentou polidamente:
— Como vai, Sebastião?
O peão tirou o chapéu:
— Tudo nos conformes, doutora. E a senhora?
Alice sorriu:
— Estou bem.
Deixou que ele pegasse a mala e abrisse a porta de trás do automóvel para que ela entrasse. Quando já estavam na estrada de terra que levava à fazenda, perguntou tentando disfarçar o próprio incômodo:
— Marina não está na fazenda?
Sebastião respondeu parecendo não notar nada:
— Tá sim, doutora.
Não era o suficiente. Precisava de mais informações que pusessem fim às desconfianças que teimavam em aparecer em sua cabeça, desde a ligação de Marina, no dia anterior. Inventou alguma coisa que fizesse Sebastião falar mais, sem despertar desconfiança:
— Ela havia me dito que me buscaria pessoalmente, pois tinha outros assuntos para resolver na cidade...
Alice olhou o rosto dele pelo reflexo do espelho retrovisor e percebeu por sua feição que ele não estava mentindo:
— Foi Saulo que me mandou vir no automóvel... Dona Marina estava no escritório.
Percebendo que ele não saberia nada mais que aquilo, se fechou novamente nas próprias suposições.
Assim que chegaram à entrada da fazenda, Alice olhou para as palmeiras que ladeavam a estrada e involuntariamente sorriu. Não tinha percebido, até então, como sentiu falta daquele lugar. Estava começando a escurecer e algumas estrelas já eram visíveis no céu. O vento que entrava pela fresta da janela, que Sebastião manteve aberta, trouxe um cheiro fresco que fez Alice fechar os olhos enquanto inspirava profundamente.
Antes que o automóvel fosse estacionado, viu que estavam todos a sua espera. Foi Marina quem abriu a porta e estendeu a mão ajudando-a a descer. O simples toque da mão dela na sua a arrepiou. Os olhos se encontraram e qualquer suposição que havia criado antes, desapareceu instantaneamente. Se abraçaram brevemente, ambas cientes do quanto queriam prolongar aquele contato, mas a situação não permitia.
Marta se aproximou e a abraçou, enquanto dizia como Alice fez falta. Começou a falar de como rezou para que ela ficasse bem e voltasse logo para a fazenda, depois contou de como ela própria medicou alguns peões que pegaram um resfriado e continuaria falando se Saulo não a interrompesse:
— Tá bom, Marta… Os outros também querem cumprimentar a doutora.
Alice percebeu que só Clara não estava ali, mas achou melhor não perguntar nada. Tinha acabado de chegar e não queria chatear Marina, tocando no nome dela.
Marta havia preparado uma comida deliciosa, que fez Alice - mesmo sem muita fome - esvaziar o prato. Quando, enfim, conseguiu chegar até seu quarto, acompanhada de Marina, disse deixando claro no tom de voz o quanto estava com saudades dela:
— Preciso de um banho rápido... Você me espera?
Marina acariciou o rosto dela, depois a beijou delicadamente, antes de responder:
— Sempre.
Assim que Alice terminou, subiram de mãos dadas para o quarto de Marina, onde tinham mais privacidade. Quando fecharam a porta, Alice passou os braços ao redor de seu pescoço e sussurrou com a boca na dela:
— Senti tanto a sua falta...
Marina a beijou brevemente antes de responder:
— Eu também, meu amor...
Se abraçaram e ficaram um tempo assim, com os corpos colados, Marina com o rosto no pescoço dela. Depois a beijou... No rosto, na boca, nos olhos, na testa, fazendo Alice sorrir.
Precisava colocar para fora o que tinha acontecido, precisava contar para Alice, mas não sabia nem como começar. O medo de perdê-la a invadia e o simples pensamento era insuportável. Por outro lado, não conseguiria continuar guardando aquilo por muito tempo... Não estava conseguindo nem se portar naturalmente ao lado dela.
Quando os olhos se encontraram novamente, Marina respirou fundo.
Alice percebeu a apreensão dela... Algo não estava certo. Agora já não era mais uma dúvida, nem uma suposição. Marina estava quieta demais, passiva demais. Não foi com surpresa, mas sim com medo, que a ouviu dizer:
— Precisamos conversar.
Alice soltou-se dos braços dela e deu alguns passos para trás, antes de dizer:
— Eu sabia que tinha alguma coisa...
O que Marina estava sentindo, naquele momento, lhe doía mais do que quando ouviu de Alice que ela e Clara tinham se beijado. Era muito pior, pois não suportava ver dor nos olhos dela, ainda mais sabendo que seria a causadora daquilo. Não conseguiu a olhar diretamente quando disse:
— Me perdoe... Por favor, meu amor, me perdoe...
Alice sentiu o coração apertar. Não aguentava mais a apreensão e as inúmeras hipóteses que a cabeça criava com uma velocidade incrível. Precisava logo ouvir o que havia acontecido:
— Diga de uma vez...
Tinha pensado em tudo, feito várias suposições, imaginado milhares de cenários, desde que percebeu Marina diferente na ligação. Tentou pensar racionalmente em todas elas, em como reagiria, em como se portaria, afinal, devia isso a ela.
Mas nada conseguiria prepará-la para o que ouviu:
— Eu e Clara... Nós... Estivemos juntas.
Fim do capítulo
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Lilian Santos
Em: 14/07/2023
Caramba, como será que a Alice vai receber essa notícia, será que ela vai ficar com ciúmes da Marina ou da Clara?
Acho que vai rolar um trizal aí
AlphaCancri
Em: 17/07/2023
Autora da história
Ou será que ciúmes das duas? ????
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Marta Andrade dos Santos
Em: 12/07/2023
Vixe, e agora Alice?
AlphaCancri
Em: 17/07/2023
Autora da história
Parece que o jogo virou, não é mesmo?
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