Nunca Te Amarei -- Capítulo 20

Ao sentar em sua mesa, ainda nem tinha ligado o computador quando Jefferson se aproximou.

-- O senhor João está aprontando alguma coisa, Luciana. Eu senti isso na maneira como ele cochichou com você hoje de manhã. Ele está te assediando?

Luciana arregalou os olhos. Não tinha percebido ninguém por perto. 

-- Não se preocupe, Jeffe. Eu sei como lidar com o João Victor.

Ele se curvou para a frente.

-- Abre o olho Lú. Não se deixe dominar pelas chantagens desse imbecil.

Ela não falou nada, levantou-se e foi até a sala de João Victor buscar os demais documentos. Entrou e fechou a porta, destrancou a gaveta superior e pegou a chave do armário. Abriu e puxou a gaveta de cima. Os relatórios estavam ali como João Victor havia dito. Retornou a sua mesa e começou a digitar. Só quando estava terminando foi que começou a perceber inconsistência contábil com falta de coerência nas informações de contabilidade da empresa como gestão de documentos fiscais, pagamento de fornecedores, entregas de declarações, pagamentos de impostos, contas a pagar e a receber, entre outros. Parou de digitar e seus olhos continuaram a ler. 

-- Que estranho! -- olhando em torno, Luciana procurou por Jefferson e viu-o conversando com um colega -- Jeffe, vem aqui, por favor.

Jefferson atendeu imediatamente.

-- Fala, minha deusa.

-- Esses relatórios não podem estar certos.

-- Porque você diz isso?

-- As contas não estão batendo. Inclusive, os fornecedores não foram pagos esse mês.

-- Mas peraí, a senhorita Kristen assinou os pagamentos. O dinheiro saiu do caixa.

Os dois amigos entreolharam-se, espantados.

-- Na rotina das empresas, infelizmente, é comum ter alguma inconsistência contábil -- comentou Jefferson.

-- Você acha?

-- Sim. Porém, por mais que seja corriqueiro, não é ideal que esses erros aconteçam com frequência. É bom refazer.

-- O que eu faço, então? Falo com o João Victor?

-- É, conversa com ele. Mesmo que feito por planilhas ou sistemas, é preciso que mais de uma pessoa competente confira se está tudo certo. Conciliar esses números com relatórios é uma boa forma de verificar incoerências!

-- Não vou finalizar sem conversar com ele primeiro. 

-- Faz isso, apesar dele ser um economista experiente, pode ter se perdido em algum dado importante e comprometido todos os demais.

-- Sim, vou guardar esses papéis no armário da sala dele, quando ele voltar resolvo isso.

Luciana colocou as folhas no local de onde havia tirado, quando a porta se abriu. A primeira ideia que teve foi de que João Victor tinha retornado.

-- Senhor João! Precisamos conversar -- ela disse, trancando o armário. 

-- O que é isso? 

Luciana virou-se e se deparou com a presidente da empresa olhando seriamente para ela. Bateu a porta com força. 

-- A Jaqueline disse que a senhorita ficaria fora o dia inteiro.

-- O que está fazendo na sala do João bundão?

-- Ele deu permissão para eu pegar uns documento em seu armário -- Kristen 

estava bem perto dela e o verde de seus olhos paralisava o coração de Luciana. 

-- Quanta intimidade! -- comentou, ironicamente.

-- Que mente suja! -- disse, mas logo se arrependeu. Não seria preciso muito mais para aquele braço se levantar, apontando a porta, demitindo-a imediatamente da empresa.

-- Só porque passamos juntas o final de semana, a senhorita se sente no direito de falar dessa forma comigo? -- disse ela, colocando as mãos na cintura.

-- Isto não tem nada a ver com o que aconteceu no final de semana -- ela protestou -- É por causa desses relatórios. O sr. João Victor me deu a entender que eram urgentes.

-- Hum, entendi.

-- Como são documentos importantes não queria deixar em minha mesa, então vim guardar de onde tirei.

-- Entendo.

-- O armário é chaveado e ninguém entra aqui.

-- Já entendi, Luciana, já entendi -- ela cortou, caminhando para a mesa -- A Jaqueline vai entrar de férias.

-- Eu sei -- disse Luciana, estranhando o comentário.

-- Você vai substituí-la.

Luciana arregalou os olhos, sem acreditar no que tinha ouvido.

-- Porque eu? Devem ter uma dúzia de secretarias loucas para substituir a Jaque.

-- Mas eu quero você -- falou como uma criança birrenta.

Esforçando-se para manter o rosto impassível, Luciana pensou melhor a respeito. Sentiria-se mais tranquila com Eduardo por perto. 

-- Eu aceito. Agora, só falta explicar porque é que resolveu me levar para trabalhar na sua sala e não a Letícia?

-- Porque eu sou extremamente profissional -- ela respondeu, sorrindo aliviada pela resposta simples.

-- Pode apagar esse sorriso -- disse Luciana -- Só aceitei porque sou uma simples funcionária da empresa, vou aonde me mandarem.

-- Ótimo, então pegue as suas coisas e vá se acomodar em minha sala.

-- Mas já?

-- No máximo até o final do expediente. Quanto mais cedo ficar a par da rotina de trabalho, melhor para nós.

Dito isso, Kristen saiu da sala. Depois que ela se foi, Luciana olhou para o armário, pensativa.

-- Vou levar uma cópia desse documento. Seria muito legal se encontrasse os erros contábeis deste relatório -- ela abriu o armário, pegou os papéis, xerocou, guardou novamente e saiu.

Bufando de raiva, João Victor saiu do elevador, com passadas rápidas e decididas, caminhava pelo corredor como um tigre enfurecido. Era inacreditável! Era realmente inacreditável que um homem experiente no mundo dos negócios, respeitado e admirado por todos os outros diretores da empresa, estivesse sendo simplesmente ignorado por uma garota brincando de ser presidente.

Nos últimos dias, sofreu uma sequência de enfrentamentos que tiraram a sua autoridade sobre Luciana. Sabia que ela estava mais interessada em suas qualidades como possível parceira de cama do que em sua capacidade como secretária. Quando parou diante da sala da presidência e abriu a porta, estava ofegante. Não só pelo esforço físico, mas, principalmente, pelo desgaste emocional. Ele tinha um problema. E a experiência ensinara-lhe que a única forma de solucioná-lo seria conversar como adulto, calmo e inteligente. Deixar-se levar por uma explosão temperamental não resolveria nada. 

Tão logo João Vitor ultrapassou a porta, Jaqueline atendeu-o, surpresa.

-- Bom dia, senhor João. 

-- Bom dia, Jaqueline. Quero falar com a senhorita Kristen.

-- Ela está ocupada -- a secretária respondeu de imediato.

-- Fazendo o que?

Jaqueline fez um breve silêncio.

-- Não vou nem responder.

João Victor passou pela secretária, que olhou-o atônita e entrou sem bater.

Kristen, que jogava Dream League Soccer no celular, estranhou vê-lo entrar de modo tão intempestivo.

-- Espero que seja algo muito importante, senhor João Victor. Estava no meio de uma das melhores partidas que já joguei -- ela suspirou, depois indicou-lhe uma cadeira -- Pode falar.

João Victor a olhou sério. 

-- O que a senhorita fez hoje é inadmissível.

-- Fiz tantas coisas inadmissíveis hoje, por favor, especifique qual. 

-- A Luciana estava no meio de um trabalho muito importante, a senhorita não pode simplesmente tirar um funcionário de um setor e colocá-lo em outro, sem solicitar à chefia imediata.   

Kristen teve vontade de rir, mas encarou-o com um ar de desdém.

-- Não posso? A empresa é minha e eu transfiro os funcionários para o setor que eu quiser.

-- Não é assim que funciona. Temos normas internas a seguir.

-- Ah, então é isso -- Kristen ligou para a secretária -- Jaqueline, Acabei de criar uma nova norma interna, anota aí: A presidenta Kristen Donati tem autoridade de transferir os funcionários de um setor para o outro quando ela bem entender. Inclusive demitir diretores que se meterem em suas transferências. Anotou? Obrigada!

Jaqueline desligou o telefone e ficou olhando para o aparelho, com um ar pensativo.

-- Eu, hem!

-- Falando sozinha? -- perguntou Luciana, parada a porta.

Jaqueline levantou a cabeça para encarar a amiga e fez uma careta.

-- Isso aqui está parecendo a casa da mãe Joana. Todo mundo entra sem bater, sem pedir licença...

-- Todo mundo quem?

-- Na verdade, você e o João bobão.

Foi a vez da Luciana fazer uma careta.

-- Ele está aí é?

-- Está e, pelo jeito, levando mais paulada.

Nesse momento a porta da sala de Kristen abriu-se com uma força fora do comum e João Victor saiu esbravejando.

-- Filha da p... -- calou-se de repente, quando viu Luciana -- Ah, você deve estar adorando isso, não é mesmo?

Luciana afastou-se dele.

-- Só estou cumprindo ordens, senhor João. 

Os olhos escuros dele revelavam ódio, suas olheiras eram a máscara de um homem revoltado... 

-- Por tudo o que eu sei da tua vida, você deveria estar beijando os meus pés. Não pense que eu serei bonzinho por muito tempo. Seus dias nesta empresa estão contados.

João Victor saiu da sala batendo a porta com tanta força, que o lustre chegou a tilintar. Por um momento, Luciana fitou a luz tremulante com um sorriso de satisfação, mas durou pouco, logo, a realidade bateu forte.

-- Será que ele vai contar a verdade para a Kristen? 

-- Pode ser só ameaças, não sei. Mas o desejo de praticar alguma espécie de violência contra esse homem é muito grande -- disse Jaqueline, empurrando a gaveta com mais ímpeto do que o necessário.

-- Ele bem que merecia! -- Luciana sentou na cadeira em frente a mesa de Jaqueline -- Então, posso trabalhar aqui?

-- Dadas as circunstâncias -- ela respondeu, suspirando -- Não tenho outra saída. 

-- Ai, Jaque! Parece que não gostou.

-- Estou preocupada com você. Até alguns dias atrás estava apavorada com a presença da filha do senhor Arthur, agora está toda feliz por me substituir nas férias -- Jaqueline se levantou e foi até o armário.

-- É por causa do Dudu -- ela respondeu, apressando-se em explicar -- Será bem mais fácil com ele por perto.

-- Espero que seja só isso mesmo -- disse ela, sentando à mesa e examinando alguns papéis -- Muito bem, preciso passar algumas coisas para você. São poucas, pois, a senhorita Kristen passa o dia jogando no celular.

-- Eu não acredito!

-- Pois acredite! Alguém tem que dar um choque de realidade nessa garota.

-- Pena que o senhor Arnaldo não está mais na empresa, ele, com certeza, saberia o que fazer.

Jaqueline balançou a cabeça.

-- Verdade, mas vamos ao trabalho. Tem esses documentos que você tem que analisar e tentar enfiar na cabeça dela que são importantes. 

Luciana respirou fundo.

-- Vamos lá. 

Quando Luciana terminou de analisar os documentos, já era hora de ir embora.

Quando Kristen saiu da sala, Luciana preparava-se para sair.

-- Sem dúvida você seria uma ótima secretária -- ela disse, sorrindo, mas com os olhos sérios -- Nem precisou se formar em secretariado para saber algumas regrinhas básicas.

-- Quais regrinhas?

-- Proteger a chefe a qualquer custo, dançar de acordo com a música dela, correr quando ela chamar, correr, mesmo quando ela não chamar, visto que uma boa secretária tem que adivinhar os desejos da chefe.

-- Todos os desejos? -- Luciana riu, arqueando as sobrancelhas com ar de brincadeira.

Kristen levantou uma sobrancelha. 

-- Está dando em cima de mim? -- o sorriso dela era malicioso e provocante. 

-- Nunca! 

-- É mesmo? -- ela perguntou, guardando o celular no bolso -- Você é tão estranha. Parece que conheço várias Lucianas. 

A risada de Luciana encheu a sala e Kristen ficou olhando.

-- Essa é muito boa. Não vai me dizer qual das Lucianas  estou sendo agora, senhorita Kristen? -- ela arriscou, só para saber até onde ela queria chegar.

-- Aquela que é falante e alegre -- ela respondeu. 

Ruídos de conversas encheram o corredor. Os outros funcionários estavam indo embora.

-- Bem, está na hora de ir embora. Vejamos se aprendi direitinho: Guardar os papéis no armário, trancar a porta da sua sala, colocar a chave na gaveta da mesa da Jaqueline, trancar a gaveta da mesa e levar comigo. É isso?

-- Sei lá. Está forçando demais a minha cabeça -- disse ela, esfregando a testa -- Faça como achar melhor. Parece que todos confiam em você, então, quem sou eu para contrariar.

-- E você? Não confia em mim?

-- Não sei, ainda não consigo confiar plenamente.

Luciana olhou-a com raiva.

-- Está duvidando do meu caráter? Sou tão íntegra quanto você, entendeu?

-- Entendi -- Kristen avançou para ela, os olhos risonhos, goz*dores, segurou o rosto dela com a mão -- Sua bobinha, estou apenas te provocando.

-- Sua palhaça! -- disse irritada, sua boca formou um biquinho convidativo. Kristen nem tentou resistir à provocação. Muito lentamente seus lábios foram baixando sobre os dela, enquanto os olhos de Luciana se fechavam.

-- Não! -- ela pousou as mãos nos braços de Kristen para afastá-la.  

Kristen teve de se apoiar na mesa para não cair.

-- Sua louca! -- a respiração de Kristen estava ligeiramente acelerada -- Por que fez isso?

Luciana evitou a resposta, fazendo outra pergunta. 

-- Por que me beijou?

-- Porque sou uma burra. Tantas mulheres lindas me querendo e eu aqui insistindo por algo que não vai rolar -- ela disse, friamente. 

Luciana caminhou até a cadeira, pegou a bolsa e foi para a porta.

-- Até amanhã.

Kristen abriu os braços.

-- Pronto, a Luciana deprimida voltou.

Luciana voltou-se para ela e encontrou um sorriso.

-- Eu não estou deprimida, você me deprime -- ela respondeu. E saiu. 

-- Onde é que se meteu ontem à tarde? -- Jefferson estava à espera dela junto à sua mesa, na manhã seguinte. Agia como um irmão mais velho e ela se irritou com isso.

-- Estava fazendo um trabalho externo -- ela disse, tentando mudar de assunto -- O senhor João Victor já chegou?

-- Ainda não, mas já deve estar chegando. Já terminou o relatório que ele pediu?

-- Não, primeiro vou conversar com ele sobre as inconsistências.     

-- Quando terminar a conversa, Luciana -- disse a voz seca, vinda da porta -- Quero vê-la na minha sala.

-- Sim, senhorita, Kristen -- respondeu Luciana, corando profundamente. 

Kristen saiu sem dizer mais nada.

-- Hi, lá vem confusão -- disse Jefferson, pensativo, percebendo a cor dela -- A menina do Rio mexe demais contigo. 

-- Para com isso, Jeff -- disse Luciana, irritada por ter deixado transparecer sua emoção -- Você sabe muito bem o motivo do meu nervosismo. 

-- Sei, sei. Ela é a filha do homem que até algum tempo atrás era o seu amante, você é a ex madrasta dela, ela é a irmã do seu filho. Só isso.

-- Então, não me perturbe, por favor. Já tenho problemas demais para me preocupar -- ela ajeitou os cabelos, passou batom e foi para a porta, deixando Jefferson sozinho.

Jaqueline balançou a cabeça e voltou a olhar a tela do computador.

-- Vocês duas me irritam. Não conseguem ficar meia hora perto uma da outra que já brigam. Cresçam meninas!

Luciana fez uma careta para ela, mas concordou.

-- Eu sei, mas não consigo me controlar. A Kristen me provoca.

-- E você não? Se ficasse na sua desde o começo, hoje não estaria enrolada até a cabeça. Já pensou em como vai falar a verdade sobre o Dudu? 

Luciana olhou para a porta fechada da sala de descanso em que Eduardo brincava.

-- A Letícia não está mais a fim de fingir que é a mãe dele.

-- Ela falou isso?

-- Falou. Se eu fosse você, não confiava nela.

-- Porque? -- perguntou curiosa e assustada.

-- Ela acusa você de roubar a Kristen dela.

Luciana se levantou irritada.

-- Mas que filha da mãe! Como se a Kristen morresse de amores por ela.

Neste exato momento, a porta se abriu e Kristen apareceu. 

-- Como se eu morresse de amores por quem?

 

 

Fim do capítulo