CAPITULO 08
NARA SHIVA
Eu e minha mãe fomos conversando, pulando de assunto em assunto até que chegamos nas minhas irmãs gêmeas. Discutimos o quanto Calíope dava dor de cabeça a meu pai e como somos diferentes.
― O que o papai não deve estranhar… Eu mal completei dezoito anos e já estava cheia de compromisso, em uma relação séria com uma fêmea. Ao contrário das minhas irmãs, eu não saio em busca de alguém, e às vezes me pergunto se estou agindo certo.
― Aí está, seu pai usa você como exemplo quando repreende as meninas. A Cassandra até que fica calada, mas a Calíope tem pavio curto é rebelde. Tem uma sede de liberdade e vontade de viver no meio dos humanos que eu nunca vi. E tem mais alguma coisa, que só seu pai sabe. Ele guarda um segredo da Calíope que nunca contou para mim. Quando eu insisto, ele diz que não conta para não começar uma guerra e que está tudo sob controle. — Minha mãe reclamou, passando a mão nos meus cabelos arrumando como se eu fosse uma criança. Me dava uma sensação de preenchimento, me sentia plena de amor maternal. Eu queria ser uma mãe para minha filha tão incrível quanto Dona Nádia era para mim.
― O papai não pode me usar como exemplo para nada, até porque minha vida é uma bagunça. Vivo com medo de não dar conta de tudo e falhar com meu povo, de decepcionar eles, a Nalum… Perco o sono só de imaginar que algum louco possa aparecer aqui, sequestrar minha filha e fazer as barbaridades que fizeram com a família da Amkaly. Nem como alfa eu sou perfeita, não cuido de tudo isso sozinha, tenho muita gente que me ajuda. ― Nunca contei a meus pais do meu pavor em fracassar, era a primeira vez que me permitia essa fragilidade.
― É isso que faz de você a maior líder que já vi por esse mundo. ― Meu pai interrompeu. Dona Nádia olhou para mim, com um sorriso de desculpa por deixar as barreiras derrubadas para o meu pai participar da nossa conversa. ― Foi para seguir esse líder que abandonei minha reserva e levei junto minha família, porque acredito em você. E o medo de falhar vai estar com você por toda a vida, faz parte do cargo.
― Mas papai, o senhor não deve exigir que elas sejam iguais a mim. Somos diferentes e pensamos diferente, mesmo tendo sido criadas do mesmo jeito.
― Eu não quero que elas sejam você, mas não custa nada ter um pouco da sua maturidade. Com menos idade do que elas, já liderava um povo. A Nalum só tem catorze anos e é muito mais adulta do que a Calíope.
― Outra vez comparando, deixe elas serem quem quiser, vão acabar se encontrando. A base da educação foi bem feita, elas não vão fazer coisas erradas mas tem que dar um voto de confiança, da mesma forma que confiou em mim.
Mamãe deu uma gargalhada estrondosa quando ouviu o que eu dizia, e pela ligação eu ouvi meu pai pigarrear em aviso. Parei e esperei que ela me contasse, confusa, o motivo da risada.
― Quando você chegou trazendo Amkaly, a ordem que ele deu foi de colocar você para dormir, Esther limpar a cabeça da humana e devolvê-la para cidade vizinha. Quando você acordasse, os dois iriam para Grécia de férias, assim você esqueceria.
Encarei minha mãe, incrédula. Ela ria de mim e dos planos mirabolantes do marido, mas eu não vi graça nenhuma.
― Entenda, você era uma criança que brincava em poça de lama quando chovia, andava nua correndo na floresta e pulava a janela à noite para fugir com seus primos só para apreciar a lua no alto do morro, e de repente chega toda bichona com uma humana no lombo e ainda enfrentando os lobos.
― Tá legal, papai, eu entendo, até porque eu sou mãe e acho que faria coisa pior se a Nalum trouxesse alguém montado nela. Mas falando sério, dê um voto de confiança às meninas, deixe elas se encontrarem. Assim que sobrar um tempinho vou conversar com as duas. ― Eu amava minhas irmãs e realmente estava um pouco afastada delas, nunca participei de suas noitadas e estava sempre ocupada.
― Não vou prometer nada, agora parem as fofocas e venham rápido, já vai começar a luta da minha neta. ― O orgulho que sentia de Nalum podia ser sentido até mesmo através da ligação
Dava para ouvir de longe as conversas paralelas da multidão que se concentrava na lagoa próxima aos ginásios. Todas as mães e jovens guerreiras que seriam testadas ficavam na área destinada à família, aguardando serem chamadas. Como seria testada apenas a arte de manipular armas brancas, a escolha foi entrar para a disputa por ordem alfabética.
― Mãe, a Esther está me dizendo que suas gêmeas estão numa luta de vida ou quase morte.
― Antes da senhora chegar Esther me pediu para agradeceu a meu pai pelo esforço em localizar as instrutora. Ela falou toda satisfeita, afinal a ideia das amazonas estarem aqui hoje partiu dela. Papai fez as buscas e eu pedi para Nahemah fazer o convite em meu nome.
As duas instrutoras viviam e trabalhavam na Grécia, mais precisamente na ilha de Lesbos, onde nasceu Safo de Mitilene, a maior escritora lésbica de todos os tempos. País este onde o tempo não passa e em algumas ilhas a tradição das amazonas ainda é mantida nos tempos modernos.
Quando dona Nádia sugeriu, não pensei duas vezes em estender o convite ao casal de lobas que aprendi a admirar ao longo dos anos. Hoje, a julgar pelos gritos da plateia, a dupla de feiticeiras filhas da minha beta estavam em vantagem na disputa. Mesmo eu não as vendo, dava para perceber que estavam ganhando.
Fiquei próxima à minha irmã Cassandra, que como sempre estava sozinha. Depois de ter sido severamente castigada no passado devido à sua gêmea, se criou uma rachadura na sua relação.
― Para onde a desmiolada da Calíope já foi? Seu pai há muito tempo perdeu a confiança nela e já não tem paciência. ― Minha mãe perguntou, ficando na ponta dos pés para procurar por minha irmã. Aproveitei para escanear rapidamente o local.
No final da multidão embaixo de uma árvore frondosa, Nalum e Nyxs conversavam e riam despreocupadas. As duas estavam lindas, usavam roupas das guerreiras medievais iguais à minha. Nyxs vestia uma veste feita da pele do Middengard e uma tiara presa na testa, o cabelo trançado com alguns fios soltos. Estava idêntica ao modo que se vestia mundo paralelo, fisicamente igual à guerreira que me assediava com seu cheiro e sorriso e me deixava fora do eixo. Angel, Heloise e Ingrid se vestiam da mesma forma. As meninas se levantaram e foram em direção ao campo de batalha, meus olhos estavam presos em Nyxs. A brisa suave que circulava por ali dançou no meu nariz, trazendo um cheiro de canela crua, selvagem e apimentada. Eu sabia a quem esse cheiro pertencia e de onde vinha.
― Narinha, se continuar olhando minha linda nora ass… ― Tapei a boca da minha mãe com a mão para fazê-la se calar.
― Para com isso, mamãe, alguém pode ouvir e ligar os pontos. ― Ela só fazia rir. Minha mãe gostava mesmo de me deixar sem jeito.
― Bobagem, ali vem duas lobas lindas, e todos vão achar que estou falando da minha neta.
― E desde quando a senhora chama a Nalum de “norinha”? ― Retruquei, fazendo minha mãe rir ainda mais.
― Como estava dizendo, se continuar olhando assim, vai ser difícil para você esconder o brilho que está estampado nos seus olhos. Olha lá, vão anunciar as vitórias e parece que todas vocês estão usando a mesma roupa. ― Deu tapinhas no meu braço para chamar minha atenção, a voz de Nahemah ecoou no microfone.
― …Lutaram com dignidade e sem utilizar de magia. Porém, não saíram vitoriosas. As instrutoras Melanipe e sua consorte Antiopa, com o nosso consentimento, usaram de um método nada ortodoxo para avaliar a capacidade de controle das guerreiras ao enfrentar alguém que não respeitava as regras. E as duas conseguiram controlar o mau gênio não se descontrolaram ou atacaram, obedeceram às regras e isso faz de vocês grandes lutadoras. Ganharam o direito de usar seus machados.
A amazona Antiopa, nomeada dm homenagem às filhas de Otrera, esposa do Deus Ares, chegou montada no seu belo cavalo negro ornado com medalhas de ouro. O pelo lustroso brilhava como uma estrela cadente. Antiopa vestia trajes típicos de sua ilha na Grécia, roupas de guerreira da era medieval. Desceu do cavalo e entrou no local trazendo duas caixas de madeira. Ela entregou os machados a Iara e Inaê. Enquanto a primeira o recebeu em silêncio, a outra o ergueu e saiu correndo, dando a volta no ginásio de forma escandalosa e mostrando a todos seu machado labris de duas faces e dois gumes.
Minha beta abraçou a sua companheira, ambas nadando em lágrimas. Pensei em ir lá e oferecer felicitações, mas a próxima a ser chamada seria minha filha, e de onde eu estava a visão era melhor.
― Com o pleno direito a usar suas armas, a ordem que recebi é de declarar Inaê e Iara, filhas de Esther e Sandy Nadum Lakshmi, a se tornarem uma só alma, um só corpo e um só pensamento quando estiverem na batalha. Foram escolhidas na hora que nasceram e em outras vidas a serem uma dupla perfeita. Porém, com a nova ordem de guerreiras se formando, Iara lutará com sua dupla formada pela Deusa enquanto Inaê lutará com outra ainda não designada. Fiquem cientes que vocês duas receberam uma nova guerreira e juntas as três serão uma só. Quando chegar a hora, o nome será revelado. Boa sorte.
Quando as gêmeas se viraram para agradecer a instrutora que lutou com elas, encontraram um olhar frio. A instrutora deu um passo para trás, e quando as gêmeas sorriram, ela foi apressada para sua montaria.
Esther e Sandy entraram e abraçaram as filhas, que ainda olhavam a instrutora em agradecimento silencioso. Esta colocou a mão no peito, curvando a cabeça para baixo em cumprimento, e saiu com sua companheira e consorte montadas nos cavalos, elegantes.
― Gente... Lobas, silêncio, por favor! ― Nahemah se esgoelava, lá do palanque, ninguém parecia querer escutar o que ela dizia. Ela pegou um pedaço de pedra lisa e raspou as unhas grandes, fazendo um barulho estridente e doloroso, fazendo todos ficarem em silêncio. ― Obrigada pela compreensão. Como eu estava dizendo, houve algumas mudanças na escolha das duplas e monitoras. Todas as guerreiras vão estudar a parte relativa à história das civilizações juntas e só haverá separação na hora do treinamento com as armas escolhidas.
O silêncio foi cruel, todas pensando mil e uma maneiras de rejeitar a ordem. As lobas matriarcas detestavam entrar em sala de aula, todas já lecionaram em faculdades antes e não gostariam de voltar à vida acadêmica, principalmente ocupando o outro lado da mesa. Israfil pediu a palavra.
― As duplas aqui escritas nesta ficha foram dessa forma definidas: Iara e Inaê. Suas armas serão o machado labris, forjados no mundo paralelo com ligas de metal e magia e moldados com as chamas do caldeirão particular de Lúcifer. Terão como instrutora Gunnr, a valquíria que recebeu o sopro para voltar à vida e deve como pagamento treinar a quem aparecer.
Depois, Nahemah continuou.
― Esther e as filhas, Agatha e Manon, se especializaram em magia negra. A instrutora será Rebeca, que viveu na antiga Salém no ano de 1620, descendente de baba Vanga da Bulgária.
Israfil novemente pediu a vez.
― Sandy e Jana, se especializaram em magia branca. A instrutora será Zambieli, da Normandia.
― Ananya, Heloise, Angel e Ingrid. Medicina em geral. Instrutora Charlene Darwin.
Os espectadores prenderam a respiração ao ouvir o nome de peso que vinha a convite de Ananya, a jovem cientista era nada mais nada menos do que filha legítima do homem responsável pela teoria da evolução. Mas o que causou um reboliço mesmo foi o grito de Amkaly ao ouvir o nome de quem seria sua dupla. Nahemah e Israfil se esforçavam para serem ouvidos.
― Gilles e Calíope. A filha de Héstia vem treiná-las na arte do fogo e viagens fora do corpo.
A surpresa foi geral, até mesmo para mim, mas permaneci em silêncio. A vida me ensinou que tudo tem um propósito.
― Nahemah, a Calíope não é uma guerreira. Até bem pouco tempo nem imaginava que essas coisas existiam, acho uma irresponsabilidade colocar sua vida em perigo. ― Amkaly defendeu a amiga, que balançava a cabeça em concordância.
― Antes de começar o discurso, eu fui bem clara, as ordens foram passadas para mim. Não fui eu que as escolhi e estão escritas neste envelope que veio lá de cima. Quer reclamar? Faça por escrito. ― Como sempre, Nahemah foi curta e grossa. Amkaly, se eu a conhecia bem, não era de ficar calada.
― Mas Calíope não é e nunca foi guerreira, é como colocar um gato na casinha do leão.
― Até onde sei todos que passaram pelo rio foram modificados de alguma forma. E se diz isso porque ela não foi lutar no outro mundo, você também não foi, ficou trepando com a Celeste. Isso também faria de você uma não guerreira, já que recusou a ordem de ser mãe de uma, e ainda assim este envelope diz que é para treinar. ― Celeste, que ajeitava uma tiara na cabeça de Angel, ignorou os olhares que se viraram em sua direção.
Lancei um olhar de aviso a Nahemah, ordenando que parasse por aí. Por mais que fosse verdade, ninguém ia ganhar nada cutucando velhas feridas. No entanto, ela se virou para Amkaly e falou.
― Você já falou para a sua alfa o dom que a irmã dela descobriu recentemente e que só você sabe? E que por causa desse dom vocês abriram um buraco no véu de magia e que o verme de Middengard passou por essa fenda? Que você, de forma leviana, colocou todos nós em perigo?
Amkaly baixou a cabeça. Para mim, isso bastava como confissão. Já Calíope parecia bastante nervosa, evitando meu olhar. Ela deveria estar enlouquecendo e talvez nem quisesse ter esses dons. Não preciso dizer que ela estava chorando, e minha mãe do seu lado falava baixinho.
Sem querer, meu olhar foi atraído para um certo alguém na multidão. Foi só por um segundo, mas foi o suficiente. Nyxs não olhava para ninguém que não fosse eu, como se sentisse a minha decepção e quisesse mostrar que estava do meu lado.
― Nahemah, continue o que estava fazendo, mais tarde eu converso com minha irmã. ― Procurei minha, beta que já estava vindo a meu encontro, e falei baixinho. ― Esther, quando foi que ela descobriu isso?
― Antes de começar o torneio. Ela ouviu a Calíope dizendo que não ia mais treinar, porque da última vez tinham aberto uma fenda e trazido um monstro para dentro da reserva.
― Por que ela não me falou?
― Porque já estavam começando as disputas, não houve tempo, me contou às pressas. O que vai fazer?
― Conversar com as duas separadamente.
― Eu estava pensando, Nara, tua irmã tem um poder infernal, já pensou quando ela tiver domado esse fogo?
― Não quero nem pensar. Por isso ela é inquieta, é o fogo por dentro crepitando. Vai ser bom tê-la no nosso time. Agora deixa eu ir para a minha princesa, daqui a pouco ela entra no ringue. E parabéns pelas gêmeas, por mim eu já teria entregue seus machados.
Voltei para perto de minha família e aguardei minha filha entrar no ringue.
Fim do capítulo
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