NARA SHIVA

Minha  mãe entrou no quarto sem bater. Ela nunca batia, nem mesmo quando eu passei a morar com Amkaly. Se eu falasse qualquer coisa, começava um falatório de não ter nada que ela nunca tenha visto, que limpou meu bumbum e que eu devia parar de frescura… Era melhor não dizer nada, só ouvir.

― Continua assim, minha filha! Seu pai está uma pilha de nervos. Já a neta parece não dar a mínima importância para os acontecimentos do dia. ― Dona Nádia tentava disfarçar, mas também estava inquieta, as mãos não paravam, toda hora alisando o vestido floral impecável. Me aproximei, de costas para que fechasse os últimos botões da minha blusa.

― Credo, filha, está mais alta do que seu pai. Aliás, você e as guerreiras todas estão acima da média de altura. Você tem o que, dois metros? 

 ― Não sei... Não tenho tempo para me medir. Mas com a quantidade de exercícios que eu e as lobas praticamos diariamente, tinha que dar nisso: lobas enormes.

― A Nalum só tem catorze anos e está mais alta do que eu, quase da altura do Ziam. ― Tagarelou, passando a mão nas duas asas disfarçadas em tatuagem nas minhas costas, herança da minha parceira quando completei o laço. ― Suas asas são tão lindas. Se parecem muito com as da Nalum e da Nyxs, a cor é a mesma. São asas de quê? Gavião?

― A Aldra acha que são de águia.

― Sua companheira também tinha asas? Ainda lembra muito dela? ― Dona Nádia é dessas mães que fazem muitas perguntas de uma vez só e te fazem dizer o que não deve.

― Eu nunca falo porque de nada adianta, mas isso não quer dizer que não pense nela a cada segundo. ― Durante o dia, eu não tinha tempo para pensar, devido aos treinos intensos, mas à noite, quando tudo se acalmava, a dor queimava no peito, a saudade me afogando. Nos últimos dias, essa saudade vinha diminuindo. Nyxs aparecia a todo momento e me distraía, seu cheiro diminuía minha saudade. Nos dias em que não a vejo, é Nalum que me derruba no cansaço. Mesmo cansada, eu acabava indo treinar mais umas ou duas horas. A garota estava ficando melhor do que eu com a espada. Seus ataques eram precisos, quando chegasse na fase adulta seria absolutamente letal.

― Narinha, filha, eu estou falando com você. ― Minha mãe bateu no meu braço de leve, chamando minha atenção.

― Eu sei, mamãe. Estava tentando lembrar. Não lembro de ter visto ou tocado em asas antes. Mas como eu recebi essas na hora do ritual, acredito que ela tenha de nascença ou ganhou de presente junto comigo, assim como as alianças que ganhamos após nossa filha nascer na prisão.

― Esse anel lindo que você tem no dedo é uma aliança de compromisso? ― Desta vez mamãe parou de respirar, segurando minha mão com delicadeza e girando a aliança de ródio negro, ouro e prata. No centro, havia a letra N e uma data. ― É linda, nunca achei que fosse de união, é bem diferente dos anéis que conhecemos. Sua companheira também tem uma?

― Sim, eu trouxe comigo. Deixo sempre no cofre, no dia em que Nyxs lembrar da nossa história eu devolvo a aliança dela. Ela ainda tem a marca em seu dedo, bem fina, não sei se sabe a história.

Nalum nunca viu. Tenho medo que ela se lembre de que, na hora que estava sendo forjada, ela tinha acabado de nascer e estava mamando, recebendo vida através do leite da mãe e junto recebendo as informações no DNA. As lembranças. Quando ela olha a minha aliança no dedão, acha intrigante e fascinante. Por isso, permanece trancada.

Minha mãe acompanhou o gesto que fiz olhando para o cofre, curiosa. Por isso mesmo digitei a senha, abrindo a caixa de aço embutido na parede. Dentro a única joia era a aliança.

― Posso pegar? ― Ela olhava para a joia com devoção.

― Claro, qualquer um pode pegar e colocar no dedo. Não vai ter o mesmo efeito que teria nós duas usando o anel.

Passei a caixa dourada em forma de coração para minha mãe. Ela parecia um comprador de joias, examinando cada detalhe do anel que complementava o meu.

― É perfeita. Se não fosse o tamanho eu diria que eram a mesma, até a inicial é igual. ― Ela examinou as runas, a letra, a data… Estava tentando ver algo, entender coisas que estavam escondidas. De repente, guardou o anel de volta na caixa e o devolveu ao cofre.

 ― Narinha, isso é muita coisa para carregar só. Eu queria saber por que não fala, não há ninguém melhor do que eu para ouvir o que te sufoca. Já passou da hora de contar a verdade toda, pelo menos para mim. Eu sou sua mãe. ― Ela pegou minhas mãos e as acariciou.

― Eu sei, mas é que tem tanta coisa acontecendo que não dá tempo de parar e ter uma conversa séria como eu fazia antes.

― Eu e seu pai sempre conversamos. Ele me pediu para ter calma e dar a você o tempo que for preciso, até já montamos uma tabela com o nome das lobas que podem ser a mãe biológica da minha neta de acordo na sua aparência. ― Dessa vez não consegui conter a gargalhada.

― Acho que meus pais estão caducando. Imagina, se até ficavam apostando na vida dos outros, aposto que passavam a noite na orgia. ― Dona Nádia não gostou da piada, a palmada que estalou em meu braço era a prova disso.

― Pois saiba que eu e seu pai ainda somos foda na cama, ao contrário da filha mais velha que temos, que não se apega a ninguém. ― Alfinetou. Ela sabia que os lobos laçados não se apaixonam.

― A senhora está certa, eu não me apaixono por ninguém, ainda amo minha companheira. Eu me lembro dela e sinto sua falta a cada segundo da minha vida. ― Confessei. ― Certa vez, quando eu trouxe a Amkaly para reserva, lembra o que a Esther disse da primeira vez que a viu?

― A sua madrinha não sentiu boas vibrações vindo da sua presença, algo a perturbava. Era isso?

― Também, mas quando eu a enfrentei para defender Amkaly, ela me disse que ia chegar o dia em que eu tinha que escolher entre defender meu povo ou ficar com o meu amor. ― As palavras da minha beta estavam tatuadas na minha memória.

― Ah! Agora lembrei. Você disse que quando esse dia chegasse ia escolher os dois.

― E foi o que fiz, escolhi os dois. Só não sabia que ia doer tanto. No final das contas, tive que escolher meu povo e meu amor não pôde vir comigo. Veio somente o sentimento e o vazio que ela deixou. ― Minha mãe me olhava daquele jeito que só quem é mãe sabe, um olhar que transbordava amor e carinho.

― E ela já desistiu de te conquistar? Eu nunca gostei daquela garota, no inicio eu até gostava do seu atrevimento depois descobri que não era um traço de personalidade ,mas sim birra e prepotência, ainda assim prefiro você com ela do que te ver sofrendo por alguém que ficou em outro mundo. Sim, a garota cometeu alguns deslizes, mas quem não erra. Vocês viviam tão bem.. E depois ela nem ficou com a Celeste, aquilo foi só fogo de palha. Pense nisso. ― Essa era minha mãe. Para ela as pessoas tinham que ter alguém do seu lado para ser felizes, era melhor não dar corda.

― A senhora pensa que eu não tento? Quando saio da reserva, cada vez fico com uma mulher diferente, com lobas diferentes. Na hora é incrível, mas depois vem o vazio, aquela coisa incompleta que só se preenche com a Ny... ― Quando percebi o que ia dizer já era tarde. Dona Nádia me olhava sem dizer uma palavra, tenho certeza que ela sabia qual nome eu quase falei.

― Me explique isso agora, e não tente me enrolar. ― Exigiu. Minha mãe já vinha catando detalhes há muito tempo. Me olhando cumprido, examinando os cabelos grisalhos da neta, comparando com os da Ameth… Há muito os neurônios dela vinham trabalhando em silêncio, e eu acabei de completar o quebra-cabeça.

Tinha chegado a hora de contar. Nunca gostei de mentir para ela, sempre fomos muito amigas e me sentia como se estivesse traindo sua confiança, mesmo que ela entendesse meu lado e nunca me questionasse.

― Abra a mente para o papai, quero que ele escute, mas nada do que eu disser pode ser comentado. ― Aguardei minha mãe se conectar. Quando senti a respiração do meu pai, eu comecei. ― Quando eu estava na outra dimensão, forjando as espadas, a Nyxs apareceu, já na fase adulta é muito parecida com essa de agora. Ela apareceu como uma guerreira linda, alegre e cheia de atitude. Nyxs flertava comigo sem receio de ser rejeitada, e eu gostava do sentimento. Cada vez que ela aparecia, meu corpo entrava em combustão, e eu me culpava por achar que estava traindo Amkaly. Então eu fui atingida com uma flecha de freixo e estava morrendo. As guerreiras todas surgiram, também adultas. Angel me levou para a gruta e Heloise cuidou de mim, as filhas de Esther me deram um antídoto para o veneno e prepararam tudo para o ritual. Elas sempre souberam que eu era a companheira da Nyxs e que ela queria me conquistar. Nyxs cortou o pulso e me fez beber seu sangue angelical. Eu desmaiei e só acordei quando ela começou a pronunciar as palavras. Eu a aceitei e completei o laço, toda dentro dela, e foi insano, a coisa mais mágica que já vi em toda a minha vida. ― Parei, esperando uma reação. O silêncio se estendeu, a única coisa que eu podia ouvir era a respiração entrecortada dos meus pais. Meu pai foi o primeiro a quebrar o silêncio.

― Essa foi a única vez que trans*ram? ― A pergunta soou como se ele estivesse ao meu lado e sabia que ele estava me vendo através dos olhos da minha mãe. Continuei contando das lembranças que me davam forças para continuar de pé.

― Depois disso, sempre estávamos juntas. Uma vez, eu já havia andado por muito tempo sem descanso e estava tão cansada que não tinha forças nem para tomar banho. Ela apareceu do nada e fez questão de me banhar e lavar meus cabelos. Foi ela que os cortou, depois de mais uma trans* louca. A gente conversava sem falar, eu me sentia completa de uma forma que só sinto quando olho para nossa filha. Eu sinto falta do seu olhar, de como cuidava de mim, do seu sorriso, da forma como me abraçava…

Mais uma vez o silêncio foi sentido, eu sabia da compreensão deles de não poder fazer nada para me ajudar, nem eu mesma podia, só o tempo poderia me trazer a Nyxs de volta ou tirá-la de mim de vez.

― Agora eu entendo o cuidado da Nyxs com a Nalum. É cuidado de mãe, elas se adoram. A menina não sai de perto por nada, até no treino ela faz questão de levar minha neta. ― Minha mãe comentou.

― Foi a única exigência que a Nyxs fez quando me entregou a filha que tinha acabado de parir. Ela disse a Israfil que renunciava a mim e que eu deveria ir embora. Eu também não queria voltar, mas o anjo me convenceu. Nyxs só me permitiu trazer Nalum se tivesse o direito de participar da vida dela e vê-la crescer. Foi assim que os deuses permitiram que uma criança de sete anos adotasse outra no coração. Quando elas estão a sós, junto ao grupinho delas ou na minha frente Nalum a chama de mamãe sem problema, e Nyxs sempre a olha com tanto amor.

― E se você visse a Nyxs de braços dados ou beijando outra pessoa?

  Ainda que eu tivesse consciência da possibilidade de um dia ter que ver Nyxs apaixonada por alguém que não fosse eu, a pergunta do meu pai fez meu coração errar várias batidas e o sangue fugir das minhas veias.

 Fiquei sem fala diante da possibilidade. Mesmo sabendo que não sou sua dona e que ela é livre para ficar com quem quiser, eu não estava bem com a ideia.

― Amor, também não precisava matar nossa filha. ― Minha mãe discutiu. Eles nunca concordavam um com o outro.

― Filha, você precisa estar pronta para ver Nyxs namorando. Ela  já está adulta e é muito linda, os lobos e os humanos vão disputar a tapa pela sua atenção. Acho melhor você se afastar até chegar a hora dela lembrar.

― Não posso fazer isso, papai, não vou fugir do meu destino. Se ela tiver que passar pela mão de mil pessoas para vir até mim, que passe, vou saber esperar. ― Não estava muito certa do que disse, na verdade não estava pronta para ver ela abraçando outra pessoa.

― Nara, você precisa avaliar as possibilidades. O futuro é incerto e pode ser modificado com ações do presente. Assim como ela pode querer continuar o laço de união, também pode querer romper.

― O senhor está certo, é que essa ideia nunca passou pela minha cabeça. Para mim é como se a Nyxs estivesse dormindo e fosse acordar de repente. — Eles tinham razão, eu precisava tomar uma decisão. Ou me afastava ou começava a cortejar a lobinha.

― Só quero que fique esperta, embora eu ache meio difícil. Eu e os outros machos vemos como ela te olha, tem até uns engraçadinhos criando coragem para conversar com ela.

― Não interfira, papai, e não faça comentários com os outros lobos. Ela que faça suas escolhas. ― Pedi, com o coração na mão. Minha mãe continuava me observando, examinando, com cara de quem não acreditava em nada do que escutava. Parecia sentir que estava morrendo de medo.

― Eu não vou interferir. Não nasci ontem e vi a guerreira que não pensou duas vezes antes de criar um esquema de resgate no dia que o verme de Middengard chegou, colocando a própria vida em risco para te salvar. Isso é coisa de parceiros, de almas gêmeas. A dor da nossa companheira é nossa dor, ficamos cegos e tudo que passa por nossa mente é um meio de tirar nossos parceiros do perigo. ― Explicou, e eu senti uma ponta de orgulho com o que ele afirmava.

― No mundo paralelo ela também agiu assim, quando estávamos cercadas. O tempo todo ficou na minha frente, eu estava ferida e o veneno se espalhava rapidamente. Ela, quase parindo, assumiu a frente, uma mão segurando a barriga e outra lutando para  me proteger. ― As lembranças me fizeram relaxar visivelmente. Minha mãe me abraçou, feliz por sua filha.

  ― Queria poder ver suas lembranças, mas uma nuvem surgiu cobrindo tudo. ― Falou, curiosa.D

 ― O anjo falou que seria assim. Ninguém que estava lá se lembra do que aconteceu entre nós duas, exceto Esther e Ameth. Mas as lembranças delas também estão enevoadas, ninguém pode ver. Só quando as memórias da Nyxs se restaurarem a névoa acaba.

― Filha, se a Nyxs não lembra, por que ela e Amkaly se detestam? É como se a garota percebesse mesmo sem saber de nada que Amkaly representa um perigo.

― Acho que não, papai. A verdade é que a Amkaly não consegue gostar delas e não tiro sua razão, a Nyxs é afrontosa e não deixa passar nada em branco. Minha filha não fica atrás nas brincadeiras que aprontam com ela. ― As meninas eram terríveis. No começo, Nalum tentou ser amiga da Amkaly mas do nada passou a evitar sua presença. Eu nunca interferi, elas que se entendessem.

― Papai, por que o senhor está nervoso? É só mais uma prova, se Nalum não se sair bem nessa, talvez na próxima consiga. ― Eu sabia o quanto a prova era importante para minha filha. Ela tinha perdido o sono na noite anterior de tanta preocupação, mas eu não queria que ela se sentisse derrotada caso perdesse.

― Porque, se ela sair vitoriosa, ganha o direito de treinar com sua espada. ― Foi minha mãe quem respondeu. ― Ela sonha com essa espada desde o dia que entraram no fosso, quando vocês desceram para empalar o verme. Se eu fosse do júri, entregaria as armas ali mesmo, acho que todas elas passaram no teste.

― Penso a mesma coisa. Por mim já teria entregue a cada uma. Se for mesmo isso que Nalum deseja, nada e ninguém pode desviá-la de seu objetivo. Quem vai lutar com ela?

― Ezra Scarlet. A Romena que chegou hoje pela manhã e fez questão de testar as espadachins.

― Papai, isso é um massacre. Ezra é a melhor esgrimista do mundo, ela acumulou 176.000 pontos, fora as medalhas que ganhou em todas as olimpíadas que participou. ― Comecei a ficar interessada na disputa. Se minha bebê ganhasse ou se aproximasse da contagem de pontos sem usar magia, já seria uma vitória.

― Você esqueceu que ela sozinha foi decacampeã na Copa do Mundo, prata olímpica em 2008 e oito vezes vencedora da Grand Prix. Ela veio a meu convite, e se der certo fecha uma temporada de dois anos para treinar as meninas.

Minha mãe arquejou, eufórica com a possibilidade de também treinar com a melhor. Terminei de me vestir, escondendo as asas.

― Celeste fez um trabalho divino com roupas que escondiam as asas. ― Dona Nádia examinava os detalhes da roupa, sentindo a maciez do tecido.

― Antes de morrer, ela era dona de uma confecção que herdou da mãe. O dom de tear que a mãe do Israfil deixou na oficina foi um presente para lá de oportuno, ela fez maravilha com a pele do Middengard. ― Me olhei no espelho, virando para ver todos os ângulos. ― Quem vai ser o primeiro grupo, papai?

― As meninas da Esther. Eu não sei direito, parece que houve uma mudança e a partir dessa prova já será decidido local e horário onde cada uma vai treinar.

― Então vamos andando, quero estar lá quando chegar a vez de Nalum.

Fim do capítulo