Capitulo 8
Enquanto escrevia, foi inevitável para Alice deixar que a mente trouxesse de volta os acontecimentos que mudaram sua vida. O questionamento que sempre surgia era: “Se eu pudesse voltar no tempo, faria diferente?” E era neste ponto que sempre se continha, balançava a cabeça, como se assim pudesse se livrar do tormento, e procurava fazer alguma coisa que demandasse sua atenção integral. Mas ali, naquele momento, resolveu encarar a pergunta. Racionalmente faria diferente, jamais teria aceitado tomar aquele café com Patrícia, naquela tarde de quinta-feira. Nem aceitaria o convite para jantar na casa dela na semana seguinte. Muito menos corresponderia ao beijo roubado, enquanto as duas descansavam no intervalo entre um paciente e outro, naquele plantão.
Voltou sua atenção ao papel à sua frente. Até o momento só havia conseguido escrever um “querido amigo”. Não sabia por onde começar, como contar para Carlos Eduardo que novamente havia sucumbido ao desejo que a arruinara? Respirou fundo, começou algumas frases, sempre desistindo no meio, amassando o papel e o jogando fora. Já estava na quarta tentativa quando resolveu que seria honesta e direta. Não tinha porque ser diferente com o amigo. Na verdade, ele era o único que a aceitava e a incentivava a ser como ela era. Alice tentava muito ser um pouquinho como ele, mais leve, se preocupar menos com o que os outros pensavam, mas quando se permitiu, se entregou para Patrícia e no fim arruinou sua própria vida. É verdade que foi muito feliz naqueles meses ao lado dela, com a adrenalina do amor proibido, a atração desmedida que sentia por ela, as loucuras que fizeram juntas... E de novo a pergunta que rondava a cabeça dela: “Eu faria diferente? Ao menos conseguiria fazer diferente?” Sinceramente não saberia dizer se algum dia teve essa opção.
Escreveu para o amigo, primeiro, como tinha sido sua adaptação na fazenda: a nova vida, os animais, tudo era diferente. O ar era diferente, os sons eram diferentes. A tranquilidade da noite, a rotina sossegada do dia. Deixou para falar das pessoas por último, contou do trabalho dos peões e da cozinheira que tinha um tempero divino. Só então começou a escrever sobre o que estava acontecendo entre ela e Marina. Narrou tudo, desde o começo, de como percebeu que a patroa mantinha uma relação íntima com uma das empregadas, como Marina percebeu que ela, Alice, também gostava de mulheres, como as duas se envolveram e agora mantinham uma coisa que Alice ousava chamar de relação. Descreveu também os olhares e esbarrões que passou a receber de Lena sempre que a encontrava pela casa. Quando pensou em Sininho, novamente se conteve, pois não sabia o que escrever. Deveria apenas dizer que era mais uma empregada da casa, que tinha como peculiaridade não falar, e que ninguém ali sabia se ela era realmente muda ou se havia alguma outra coisa por trás daquele silêncio ininterrupto. Deveria dizer que todos a chamavam de Sininho porque ninguém sabia seu verdadeiro nome. Deveria dizer que era uma menina e que, assim que a viu, Alice sentiu um enorme carinho por ela. Deveria, mas depois daquele atendimento em que fez o curativo, começou a repreender alguns pensamentos ousados que teimavam em aparecer. A imagem que antes construiu da menina, parecia agora anuviada, como se a imagem de mulher tentasse se sobrepor a qualquer custo.
Seguindo o que se comprometera a fazer naquela carta, foi sincera e também narrou tudo isso para Cadu. Ao terminar, tinha três folhas completamente escritas nas mãos. As dobrou, colocou no envelope com o endereço do amigo no Rio de Janeiro e o guardou para que Saulo postasse no dia seguinte.
*****
— Merda!
Sininho sussurrou o palavrão ao se cortar pela segunda vez com a faca que usava para descascar as batatas. Odiava aqueles afazeres da cozinha, preferia estar lá fora, cuidando dos bichos, varrendo o quintal ou qualquer outra função que fosse. Mas, como Alice havia determinado que ela não fizesse grande esforço com o braço machucado, Marta a estava vigiando de perto, enquanto lhe atribuía mil afazeres que considerava leves. Até sabia que estava realmente ajudando, pois, nas últimas semanas, Lena só aparecia quando tinha vontade, dormia fora da fazenda e não dava satisfações para ninguém. Marta já havia reclamado com ela e até mesmo diretamente com Marina, mas nenhuma das reclamações surtiu efeito. Lena não estava mais acatando ordem nenhuma e Marina parecia até aliviada em não ter a empregada o tempo todo na casa.
— Ainda não terminou com isso?
A cozinheira quase gritou da beirada do fogão a lenha, com a habitual agitação que lhe tomava quando cozinhava.
Levou até ela as batatas que já estavam descascadas e voltou a se sentar com a bacia das que ainda faltavam. Foi nesse momento que Alice entrou na cozinha à procura de uma xícara de café. Os olhos das duas se encontraram por alguns breves instantes, Alice deu um pequeno sorriso, depois voltou sua atenção para Marta. Nas últimas semanas aquilo tinha se tornado rotina. Sempre que se viam, trocavam um breve olhar que Sininho não sabia decifrar. A atenção que Alice antes a dispensava, não existia mais. Agora só recebia um rápido “bom dia” ou “boa noite” da médica quando se cruzavam, mas aquele olhar sempre estava lá. Todas as noites, antes de dormir, repassava os acontecimentos do dia, e se convencia de que estava imaginando coisas, pois agora tinha certeza que Alice estava com Marina e aqueles olhares não significavam nada demais, apenas que a médica era educada e gentil. Dormia com essa falsa sensação, de que nada estava acontecendo, que durava até os olhares se encontrarem de novo no dia seguinte.
Mais tarde naquele mesmo dia, precisou ir até o quarto de Marina trocar a roupa de cama, função que cabia à Lena, mas, mais uma vez, ela não estava na fazenda. Ao chegar no andar de cima da casa, sempre parava para ouvir e se certificar de que não havia ninguém. Como não ouviu nem um mínimo ruído, bateu na porta de Marina, o que sempre fazia, mesmo quando a patroa não estava em casa, depois esperava alguns segundos, em que não teria resposta, e então entrava no cômodo. Ia girar a maçaneta quando foi surpreendida por Marina, que abriu a porta do outro lado. A patroa estava vestida apenas com um robe levemente transparente, e tinha os cabelos desalinhados. Atrás dela, pôde ver Alice, vestida da mesma forma, sentada na cama. Quando enfim se recuperou da surpresa, apontou para os lençóis que trazia nas mãos e Marina respondeu a encarando:
— Pode entrar.
A resposta que Sininho esperava era “volte depois”. Tentando não mostrar o constrangimento em que se encontrava, entrou no quarto olhando para o chão, foi em direção à cama, de onde Alice se levantou e se afastou, e começou a tirar os lençóis usados. Diferente das outras vezes em que esteve ali, agora parecia que sua presença não apenas era notada, mas também observada. Tanto Marina quanto Alice ficaram de pé olhando para ela, em silêncio. Se atrapalhou um pouco para finalizar a tarefa, as mãos pareciam não obedecer, e quando enfim conseguiu, se encaminhou para sair o mais rápido possível daquele lugar. Mas antes de cruzar a porta, ouviu Marina dizer num tom debochado:
— Obrigada, Sininho.
Deixou o quarto de Marina, passou pelo tanque para deixar os lençóis que carregava e foi direto para o próprio quarto, não parando nem mesmo quando Marta a chamou ao passar pela cozinha.
Deixou o corpo cair na cama, enquanto tentava controlar a respiração e os pensamentos. Por que estava se sentindo daquela forma? Ou melhor, de que forma estava se sentindo? Era ciúmes? Mas sempre via Lena - por quem era apaixonada, com Marina, até em momentos mais íntimos e nunca havia se sentido daquele jeito. Já sabia que Marina e Alice estavam juntas, então qual era o problema? A confusão dentro de si aumentou ainda mais quando percebeu que não sabia se o incômodo maior foi ver Alice com Marina ou Marina com Alice. A imagem da patroa parada na porta, vestida com um robe que deixava as curvas de seu corpo desenhadas, ficou gravada em sua cabeça. Naquele momento não conseguiu fugir das lembranças de sonhos que já tivera com ela, desde que fora trabalhar naquela fazenda. Se odiava, assim que acordava, pelo fato do cérebro ter sido capaz de gerar um sonho inconfessável com Marina.
Pegou o travesseiro velho, afundou o rosto nele e abafou um grito que continha uma mistura de raiva, confusão e desejo.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 14/05/2023
Vixe! que rolo você está se metendo em Sininho.
AlphaCancri
Em: 18/05/2023
Autora da história
Acho que nem ela sabe o tamanho kk
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
AlphaCancri Em: 01/09/2023 Autora da história
Se nem elas se compreendem, não é?