Capitulo 4
Marina estava acabando o almoço quando Diego chegou da cidade com o telegrama. Ela abriu e leu em voz alta para que os homens também ficassem cientes:
— “Arranjado. Chega em três dias. Condução das dez.”
Um animado Saulo disse ao lado dela:
— Eita patroa, que o doutor vai chegar mais rápido do que a gente imaginava.
Já se levantando da mesa, respondeu apressada:
— Por isso mesmo vocês tratem de terminar a arrumação lá do ambulatório. Quero que esteja tudo em ordem quando ele chegar.
Depois se virou para Lena e disse:
— Preciso que você arrume umas coisas no meu quarto.
*****
No dia em que o médico chegaria, Marina deu ordem para que Saulo fosse até o centro buscá-lo no automóvel, que quase não era usado. Todos, inclusive a própria Marina, preferiam usar os cavalos. Mas como se tratava de um doutor, achou mais prudente usar o veículo.
Marta já havia deixado o almoço pronto, o ambulatório estava limpo e organizado, embora ainda faltassem alguns ajustes e objetos. Marina pediu que, assim que o médico chegasse, o levassem até o escritório. Ela queria se apresentar e conversar antes que fossem comer. Não demorou muito até que ouviu as batidas na porta, segundos antes de Saulo entreabri-la, revelando apenas seu rosto, que parecia confuso:
— Patroa, a senhora pediu que eu trouxesse... bom...
Ele olhou para trás, antes de dizer para a pessoa que ainda não estava no campo de visão de Marina:
— Pode entrar...
Quando a porta se abriu completamente, Marina levou alguns segundos para entender: O senhor Luiz não havia lhe mandado um médico, mas sim uma médica.
A moça sorriu e agradeceu a Saulo antes de entrar no escritório. Se aproximou de Marina, que já havia se levantado do outro lado da mesa, e estendeu a mão, enquanto se apresentava:
— Dona Marina, meu nome é Alice de Azevedo, a médica que a senhora solicitou.
Marina hesitou antes de estender a mão e apertar a da moça, que continuava estendida à sua frente. Analisou a mulher vestida elegantemente, com uma camisa de botões, uma saia que ia até a altura dos joelhos e sapatos de salto. Ela parecia um quadro colocado em uma parede por engano, completamente destoante de tudo ao seu redor.
Algo na troca de mensagens com o senhor Luiz saiu errado. Algum erro de comunicação. Ela havia pedido por um médico, um homem. Na verdade, não havia especificado o gênero, mas achava que estava tacitamente entendido que seria um homem, até porque poderia dizer tranquilamente que nunca havia conhecido uma mulher médica.
Tentando recuperar-se, finalmente apertou a mão estendida em sua frente:
— Muito prazer, doutora. Espero que tenha feito uma boa viagem até aqui.
A resposta veio acompanhada de um sorriso:
— Absolutamente! Aproveitei a vista maravilhosa por todo o caminho.
Ainda sentindo os efeitos da surpresa, Marina demorou alguns segundos apenas olhando a mulher parada à sua frente, imaginando como desfaria aquele mal-entendido:
— Por favor, sente-se.
Apontou para a cadeira em frente à sua mesa, e sentou-se em sua própria, antes de continuar:
— Doutora Alice, vou ser bem franca com a senhora...
Foi interrompida pela moça, que disse gentilmente:
— Por favor, pode me chamar de Alice. E também dispenso o “senhora”.
Marina voltou a analisá-la: a médica aparentava ser alguns anos mais nova que ela e matinha um pequeno sorriso no rosto, parecendo bastante empolgada em estar ali.
— Alice... Eu não sei bem qual foi a proposta que chegou até... você... mas acredito que devemos deixar tudo às claras e evitar mal-entendidos. Eu pedi ao senhor Luiz que me mandasse um médico. Um homem. Por favor, não me entenda mal, apenas achei que... uma mulher não...
Alice não a deixou completar:
— Uma mulher não seria competente para o serviço?
Temendo ser mal interpretada, Marina rapidamente respondeu:
— Não! Não é isso. É só que... Uma mulher para lidar com esse tanto de homem...
Observou que o sorriso da médica virou quase uma risada antes dela dizer:
— Isso não é um problema, Dona Marina. Aliás, eu estou acostumada. Não posso simplesmente recusar os pacientes homens que chegam até mim só porque sou mulher.
Sem entender muito bem a graça, Marina forçou um sorriso:
— Certo. Eu apenas achei que você poderia ficar desconfortável.
Alice foi rápida em responder:
— Ficarei perfeitamente bem quanto a isso.
Marina precisava deixar mais uma coisa clara, ainda tentando fazer com que a médica pelo menos hesitasse um pouco sobre sua proposta:
— E está mesmo disposta a morar aqui na fazenda?
A resposta foi firme, mas gentil:
— Essa condição estava muito clara na proposta que me enviaram. Não teria vindo se não estivesse, dona Marina.
*****
Antes de almoçarem, Marina reuniu todos os empregados para apresentá-los à médica. Depois, foi com ela até o ambulatório improvisado, mandando que Saulo anotasse tudo o que Alice dissesse que estava faltando e providenciasse o mais rápido possível. Por fim, a levou até onde seria seu quarto, que ficava na parte térrea da casa:
— Fique à vontade, se precisar de alguma coisa pode pedir à Lena. Marta está quase sempre na cozinha, se tiver fome ela sempre tem algo para comer.
Alice parecia genuinamente feliz em estar ali:
— Obrigada, dona Marina. Agora só gostaria mesmo de um bom banho e descansar para amanhã.
Minutos depois, já sozinha no quarto, Alice ouviu as batidas na porta. Abriu e encontrou Sininho com toalhas e pequenos vidrinhos de sais nas mãos. A empregada apontou para dentro, em um gesto que entendeu como um pedido de permissão para entrar. Deu passagem e ela foi direto ao banheiro anexo ao quarto. Alguns minutos depois voltou, e com outro gesto indicou o banheiro. Mais uma vez teve que interpretar e chegou à conclusão de que o banho estava pronto. Agradeceu e viu a moça sair rapidamente.
*****
No dia seguinte, Alice acordou cedo, estava ansiosa para começar a nova rotina de trabalho. Nunca havia se imaginado trabalhando, muito menos morando, em um lugar como aquele. Nascida e criada na capital do Rio de Janeiro, não estava absolutamente acostumada com aquela realidade. Poderia apostar que jamais, em seus trinta e quatro anos de vida, havia visto tantos animais quanto viu naquelas últimas horas na fazenda. Porém, a vida sempre poderia surpreender: Se Carlos Eduardo, o amigo médico que lhe contou sobre o emprego em uma fazenda no interior, tivesse lhe falado sobre a mesmíssima proposta um ano antes, com certeza, diria que só um louco aceitaria. Mas a verdade é que a oportunidade não poderia ter chegado em momento melhor, foi como uma luz no fim do túnel, uma opção que poderia lhe devolver, pelo menos, o prazer que sempre teve em trabalhar.
Entrou no pequeno ambulatório e olhou ao redor. Não se comparava à estrutura dos hospitais em que trabalhava na capital, mas ficou satisfeita com o que viu, pois imaginava, antes de chegar ali, que seria tudo bem mais precário. “Terá que trabalhar de chapéu e galochas”, foi o que ouviu em tom de brincadeira de Carlos Eduardo. O amigo, único que ficou ao seu lado quando o escândalo veio à tona, foi seu porto seguro nos últimos meses. Alice tinha certeza que, não fosse ele, teria ido até o fim com a ideia de tirar a própria vida. Claro que o fato de Cadu também sofrer na própria pele do que ela sofria, fazia com que fosse o único capaz de compreendê-la. Mas, ainda assim, muitos outros que sabiam do seu desvio e se diziam amigos, deram as costas quando tudo se tornou público.
— Bom dia, doutora. Os homens já tão tudo aqui, é só a senhora mandar que a gente começa.
Saulo estava na porta do ambulatório, com o chapéu nas mãos. Alice podia ver a fila de homens que se formava atrás dele. Ela havia pedido que todos viessem para uma primeira consulta, a fim de conhecer o histórico e as peculiaridades da saúde de cada um. Começou com o próprio Saulo, criando uma ficha cadastral e anotando todos os dados, medicamentos, doenças e o que mais achasse relevante.
Mais tarde, pausou os atendimentos para que ela e os empregados que ainda esperavam fossem almoçar. Já estava quase no meio da tarde quando terminou de atender o último homem e pediu que Saulo trouxesse também as mulheres. Já que cuidaria de todos os empregados, isso incluía Marta, Lena e Sininho.
O atendimento de Lena foi rápido, era uma mulher de trinta anos que goz*va de saúde plena, não tinha doenças crônicas nem fazia uso de medicamentos diários. Já com Marta, precisou demorar um pouco mais. A senhora, que contava com seus quase setenta anos de idade, disparou a falar de absolutamente todas as dores que sentia pelo corpo, todos os medicamentos que tomou durante a vida e todas as mortes por doença que teve na família. Apesar disso, Alice a tranquilizou dizendo que sua saúde estava boa, precisando apenas monitorar sua pressão arterial.
Quando chegou a vez de Sininho, Alice pegou o papel e já se deparou com a primeira dificuldade. Certamente “Sininho” não era o nome verdadeiro de alguém. Mesmo já tendo percebido que a jovem nunca falava, tentou:
— Qual é o seu nome?
A moça se inquietou na cadeira e olhou para o chão. Logo, Lena que esperava na porta do ambulatório, interveio:
— Ela não fala não, doutora.
— E você sabe o nome dela?
— Ninguém sabe, ela já chegou aqui desse jeito. Nunca falou uma palavra.
— E os documentos dela?
— Não tinha também não. Ela veio de outra fazenda, chegou aqui só com a roupa do corpo.
Alice olhou novamente para a moça que continuava a encarar o chão. Acabou escrevendo “Sininho” no espaço destinado ao nome. A próxima pergunta talvez a jovem pudesse responder por sinais, então perguntou diretamente para ela:
— Quantos anos você tem?
Novamente, sem esperar qualquer tipo de reação de Sininho, Lena respondeu:
— Ninguém sabe também não, doutora. Mas ela deve ter por volta de uns dezenove.
Sininho sabia. Tinha vinte e seis anos. Sempre conseguia um calendário que Saulo trazia da cidade assim que virava o ano. Acompanhava dia após dia, riscando os números antes de dormir, como uma prisioneira contando as horas para ser libertada. Ninguém naquela fazenda sabia nada sobre a vida dela. Ninguém sabia de onde ela viera. Ninguém sabia que ela já tivera uma família. Ninguém sabia que ela passava horas lendo nos fins de noite. Ninguém sabia que ela gostava de jabuticaba, tanto que se fartava sozinha no pomar quando era época da fruta. Ninguém sabia que ela falava. Estava cansada de ser tratada como uma menina, que apenas existia para trabalhar naquela fazenda. Olhou para Alice, que ignorou a resposta de Lena, e continuava a olhar para ela. Pela primeira vez em muitos anos parecia que alguém realmente estava interessado nela. Alguém queria uma resposta dela. Foi pensando nisso tudo que ergueu a mão direita e fez um sinal que indicava o número dois. Depois, com as duas mãos, fez o sinal que indicava o número seis.
— Vinte e seis?
Alice perguntou sorrindo, ao que Sininho confirmou com um aceno de cabeça.
— Ótimo, Sininho! Ótimo!
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 30/04/2023
Quem é essa Sininho e essa Doutora vai cair na cama de Marina.
AlphaCancri
Em: 03/05/2023
Autora da história
Será? hahahah
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AlphaCancri Em: 01/09/2023 Autora da história
Já já você vai descobrir sobre Alice rs
Não tem uma década exata, mas pense em algo entre 40-60.