Capitulo 2
- Diego foi lá pelas bandas da plantação de milho, patroa. Deve demorar ainda para voltar.
Marina suspirou antes de perguntar:
- E Santiago?
Saulo coçou a cabeça e só então respondeu:
- Teve que tomar o lugar de Nestor lá no curral.
Sem ter muita alternativa, optou pela praticidade que sempre a acompanhava:
- Então manda chamar Sininho. Só preciso de alguém para ficar tomando conta do cavalo e das coisas se eu tiver que entrar muito pela mata. Ela serve.
Viu no rosto do empregado que ele não achava uma boa ideia, Saulo nem precisaria ter perguntado:
- A patroa não prefere que vá eu?
Respondeu já se dirigindo ao curral para selar os cavalos:
- Preciso de você aqui para ajudar a colocar os latões nas carroças. Eu dou conta lá sozinha.
Com vários homens doentes, os outros que estavam trabalhando tiveram que remanejar as tarefas, então Marina resolveu ela mesma ir atrás de uns gados que arrebentaram a cerca e passaram para o pasto do vizinho. Estava no curral, terminando de apertar a sela do seu cavalo quando ouviu o barulho dos pingentes atrás de si. Era a forma que Sininho usava para anunciar sua presença, já que não falava. E foi daí que os homens arrumaram o apelido que todos usavam para a moça, uma vez que ninguém sabia seu verdadeiro nome.
- Seu cavalo já está pronto, só preciso que você leve essas cordas na sua sela.
Marina recebeu um aceno de cabeça como resposta, antes da empregada montar no animal. Seguiram pela estrada em direção ao pasto, com Marina um pouco mais à frente, em silêncio. No começo até tentou perguntar umas coisas, mas era difícil a comunicação e se sentiu uma idiota falando sozinha.
Já Sininho se sentiu aliviada quando Marina enfim parou de falar. Nutria por ela uma mistura de ódio e rancor. Via em Marina a culpada por sua vida se transformar no que era agora. Em todos aqueles anos que passou naquela fazenda, não teve um dia em que não planejou uma vingança. Imaginava, até hoje, a forma com que acabaria com ela. A princípio queria matá-la da maneira mais sádica possível, depois achou que a morte seria um presente, era melhor deixá-la viver para ver tudo que construiu, às custas de dor e sofrimento alheios, desmoronar. Queria que ela sentisse na pele o que era perder absolutamente tudo e todos e ter que continuar existindo.
Marina parou o cavalo e apontou para a cerca arrebentada à sua frente:
- É aqui, Sininho. Vamos entrar.
Seguiram pasto adentro, enquanto procuravam por algum sinal dos animais, até os avistarem pastando. Marina desceu do cavalo devagar, seguida por Sininho.
Antes de ir em direção aos animais, deu a ordem:
- Amarre os cavalos e depois volte aqui para cercar os gados, enquanto eu toco os bichos de lá.
Sininho assentiu, obedecendo a patroa. Marina foi vagarosamente dar a volta, chegando por trás dos animais, levantou os braços enquanto fazia barulhos com a boca. Dois animais correram enquanto ela os cercava de longe, até passarem pelo vão da cerca arrebentada e voltarem ao lado certo do pasto. Apenas um animal estava mais arisco, dando mais trabalho. Quando correu para cercá-lo de um lado do barranco, Marina escorregou no chão molhado, se segurando nas raízes que haviam no solo, enquanto parte do corpo ficou pendurado em um pequeno precipício.
Em um primeiro momento Sininho ficou completamente paralisada diante daquela cena, mas, inversa ao corpo estava a mente, trabalhando a milhão. Ouviu Marina dizer, demonstrando no tom de voz, a força que fazia para se segurar:
- Pega o cavalo e me joga a corda. Rápido!
Para Sininho pareceu que minutos se passaram sem que ela movesse um único músculo. Começou a ponderar todos os prós e contras. Era a chance que havia esperado por anos, ninguém desconfiaria dela, pois era consideravelmente menor e mais fraca que Marina, não teria força física para ganhar dela e derrubá-la de um precipício. Todos achariam que foi um acidente infeliz. E era mesmo. Esse foi o motivo que a fez se mexer e correr até o cavalo, lançando a corda para Marina e, assim que a patroa conseguiu segurar o objeto com as duas mãos, deu o comando para que o cavalo andasse. Voltou e a ajudou a sair completamente do precipício. As duas ofegantes e com os corações acelerados pela adrenalina do momento. Marina por ter visto a morte de perto. Sininho por ter visto a vingança. Mas não era assim que queria, não um acidente idiota. Queria que Marina soubesse que era ela quem iria acabar com sua vida. Queria a olhar nos olhos e que ela visse nos dela o prazer que carregava ao destruí-la.
De volta a fazenda, Marina contou aos homens o que havia acontecido, até exagerando na narrativa. Depois disse, olhando para a empregada que tentava sem sucesso não ser o centro das atenções:
- Quem diria, não é mesmo? Sininho salvou a minha vida.
Os empregados soltaram gritos e assovios. Um deles tentou levantar Sininho nos braços, mas ela rapidamente se esquivou, com cara de poucos amigos.
- Que isso, Sininho, você salvou a patroa... Merece até um brinde! Pega lá, Diego, a garrafa da boa.
Aproveitando o momento em que todos se entusiasmaram com a bebida, fugiu para seu cubículo. Tirou as roupas sujas e as deixou em cima da velha cadeira de madeira que resgatou do lixo. As usaria novamente no dia seguinte e provavelmente no resto da semana, até que ficassem completamente sujas, já que não tinha muitas peças para revezar. Colocou a camisa e os shorts de pano velhos que usava para dormir, apagou a lamparina que deixava ao lado da cama, já que não tinha eletricidade no quarto improvisado, e fechou os olhos. Não demorou a pegar no sono, mas antes, imaginou mais uma vez o dia em que destruiria Marina.
*****
As semanas seguintes se passaram com a rotina massacrando cada minuto. Sininho até gostava da rotina, gostava de saber o que faria assim que acordasse até a hora de ir dormir. Trabalhar preenchia sua mente, não deixava tempo para o pensamento vaguear. Acordava antes do sol nascer, descia até o galinheiro e soltava as galinhas, aproveitando para colher os ovos que encontrasse no caminho. Depois ia ao pomar colher as frutas que estivessem maduras e levava tudo para a cozinha, onde Marta já estava preparando o café. Encontrava com alguns dos empregados pelo caminho, de alguns ela gostava, de outros não: Saulo era como um pai, sempre a ajudava e orientava no que fosse preciso. Gostava de Diego e Moisés. Não tinha nada contra Antônio, Santiago e João. Detestava Nestor e Sebastião. Mas passava rápido por todos eles, apenas meneando a cabeça. Não gostava de aproximação de quem quer que fosse. Uma vez, enquanto estava no meio das árvores do pomar, Nestor a seguiu e começou a falar coisas de duplo sentido. Logo viu a luz de alerta acender em sua mente, tentou ir embora, mas ele a cercou, sem encostar nela. O homem perguntou se alguma vez na vida ela havia se deitado com alguém, se já havia visto um homem nu, se já havia sentido prazer carnal, mesmo que sozinha. O estômago revirou, sentiu nojo e medo ao mesmo tempo. Por sorte ouviram a voz de Santiago chamando Nestor, o que fez com que o homem fosse embora. Não saberia dizer até onde ele seria capaz de ir, mas a partir daquele dia, passou a ser extremamente cuidadosa em cada passo que dava.
Depois do almoço, seguiu com suas obrigações, levou a lavagem dos porcos, varreu as folhas das árvores que caíam no quintal e tratou dos cachorros e gatos que ficavam espalhados pela fazenda. Mais tarde, estava indo ao galinheiro prender as galinhas quando Marta a chamou:
- Leva essa roupa de cama limpa para trocar no quarto da patroa. Não sei onde Lena se meteu, sumiu até agora.
Sininho tinha certeza que sabia: Ela só podia estar no quarto de Marina. Aliás, todos naquela fazenda sabiam, só Marta parecia não enxergar. Não poderia dizer se ela simplesmente se negava a ver ou se realmente a possibilidade de duas mulheres se deitarem juntas não existia na cabeça da cozinheira.
Andou lentamente até o andar de cima da casa, já que sabia que precisaria esperar. Caminhou com cuidado para que a madeira não rangesse debaixo dos pés. Ao se aproximar da porta do quarto de Marina, pode ouvir os sons baixos que vinham de lá. Não era a primeira vez que ouvia, nem seria a última, inclusive já havia presenciado vários beijos das duas, que pareciam não se importar com sua presença, por saberem que ela não poderia falar nada a ninguém. Havia muito desejado que fosse ela no lugar da patroa, mas agora já havia se conformado, colocado a paixão por Lena em um pedestal, que só poderia ser adorada e admirada de longe.
Ouviu um gemido mais alto dentro do quarto. Sabia que agora não demoraria para que a porta se abrisse e Lena voltasse para a cozinha. Subiu até o topo da pequena escada que dava para o sótão e ficou lá de cima espiando, até que Lena saiu. Alguns minutos depois, desceu e bateu à porta do aposento da patroa, que gritou lá de dentro:
- Quem é?
Em resposta, apenas sacudiu o pulso com a pulseira, o que fez Marina autorizar sua entrada. Assim que entrou no quarto, olhou para a cama bagunçada e sentiu uma dor fininha no peito. Não só por saber que era Lena, a mulher por quem era apaixonada, que estivera ali minutos antes, mas também por saber que nunca mais experimentaria algo assim. Nunca mais se envolveria com alguém. Como poderia? Vivendo naquele lugar como um animal, suja, trabalhando o dia inteiro, sem sair daquela fazenda em que era praticamente invisível. Ninguém ali a via com esses olhos, ninguém ali enxergava a mulher, só viam a garota muda que alimenta os animais: a Sininho.
Começou a retirar o lençol e as fronhas e, como para comprovar o que acabara de pensar, percebeu que Marina sequer a olhou desde o momento em que entrou no quarto. Permaneceu na mesma posição em que estava, sentada em frente à escrivaninha, de costas para ela. E assim foi até o momento em que ela saiu do quarto, com a roupa de cama usada nas mãos.
Fim do capítulo
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