Capitulo 16
Capítulo 16 - Acontecimentos premeditados
FLÁVIA
Eu havia selecionado alguns casos de roubos de materiais hospitalares e assaltos a hospitais, apesar de ter bastante coisa dois deles me chamou muito a atenção. O primeiro tinha sido um roubo a uma van que transportava respiradores, material que os médicos precisam para intubação e manter o paciente vivo durante uma cirurgia. O outro foi um assalto a uma clínica, onde roubaram remédios, materiais de enfermagem, soro, essas coisas hospitalares. Quando pegamos aquele carro lá perto do matagal tinha dentro algumas caixas de fentanil e midazolam, depois de eu ler todo o caso do assalto a essa clínica, consegui encontrar os lotes dessas medicações e não é que bate? Ou seja, as caixas de sedativo que estavam no carro com corpos vazios foram roubadas dessa clínica. Eu só não encaixei ainda o roubo dos ventiladores, não achei nada que ligava um ao outro, mas o meu sexto sentido fala pra eu cutucar que tem, que estão ligados.
A minha cabeça já está explodindo, a dor está tão grande que cheguei a colocar o óculos, uma coisa que eu detesto fazer. Isso acontece quando eu não durmo direito, e claro se eu não durmo era porque eu fico tendo pesadelo com a Fabi, sempre assim, na verdade está até ficando um pouco pior, antes quando eu tomava a medicação eu conseguia dormir, agora mesmo com a medicação eu tenho pesadelo com ela. Enfim, mesmo com essa dor estando absurda eu tenho que continuar vendo essas imagens. A cena chega a ser no mínimo cômica, estou sentada na minha mesa, no computador da delegacia está rodando o vídeo do assalto a clínica, no meu notebook rodando o vídeo do assalto a van de respiradores. A cabeça dói tanto que estou tendo escotomas até, sabe, aquelas estrelinhas na visão.
A construção da parede da casa ficou finalmente pronta, na verdade nem foi tão problemático assim, mas fez bastante sujeira. No final de semana a Bia me ajudou e conseguimos pintar a parede da sala que só faltava isso, o lado que ficou para a cozinha o pedreiro já tinha colocado azulejo. Enfim, a casa por si já está pronta, mas agora falta comprar os móveis adequados e ir trocando os velhos. As primeiras aquisições assim que der terá que ser uma TV pra sala e um sofá, depois uma geladeira nova e mais pra frente ir trocando cada coisa. Minha ideia era de mudar para o apartamento só quando estivesse tudo pronto, mas nem sempre a vida nos permite seguir os planos.
A Bruna já está há uma semana nos Estados Unidos, hoje ela volta e eu vou buscá-la no aeroporto. Nesse tempo que ela ficou lá conversamos por mensagem, achei ela um pouco estranha ou até distante, mas como eu não sei bem o que ela faz lá, não vou questionar, pode ser que esteja super cansada por causa do trabalho ou estressada pela sobrecarga. Enfim, não sei. Ainda é tudo muito novo, as vezes ainda não sei nem o que conversar, mas estou achando que já me soltei bem, aos poucos estou me adaptando a essa vida diferente, de mensagens, de me preocupar com outra pessoa.
Uma das coisas que estou tentando fazer hoje além do simples fato de sobreviver até o final do dia é conseguir correlacionar esses dois assaltos, algo que estou quase chegando a conclusão que não tem ligação. Eu já juntei os nome dos funcionários dos dois lugares e nada, nome dos acionistas dos dois e nada também, se duvidar eu já correlacionei o nome do pintor das duas fachadas e nada, a única coisa que encaixa é que os dois assaltos foram pela mesma quadrilha, mesmo jeito, mesmo entra e sai preciso, mesma marcação, eles sabiam exatamente o que levar de cada crime. Eu acordei cedo hoje para tentar ir na academia, eu realmente achei que fazer exercício físico iria ajudar na minha crise de enxaqueca, mas acho que errei feio, estou nauseada de novo.
Levantei rápido, com o estômago embrulhado, em jejum praticamente e sai correndo. Não deu nem tempo de ir no banheiro dos funcionários no subsolo, teve que ser no do público mesmo. O vômito veio em jato, por sorte consegui chegar ao vaso, quase cai no caminho. Levantei cambaleando, me apoiei na pia do banheiro, lavei o meu rosto, olhei rápido no espelho eu estava branca, pálida, suando frio. Passei mais uma água na nuca e nos pulsos. Preciso voltar para a minha sala, preciso analisar a merd* das gravações. Levantei a cabeça mais uma vez, abri a porta do banheiro. Dei de cara com a Bia.
- O que estava fazendo aí nesse banheiro? - usando Bia, claro.
- Vomitando, estou com bastante dor de cabeça.
- Você está pálida. Ontem você já não estava bem, vou com você até sua mesa. - dei dois passos pra frente, em seguida meia volta e voltei para dentro do banheiro, vomitando novamente. Dessa vez assim que eu entrei a Bia entrou atrás, intimidade desnecessária ela me vendo nesse estado. - Vamos ao hospital Flávia.
- Não precisa - respondi quando consegui falar
- Vem, levanta daí, lava a boca e o rosto - fiz todo o processo novamente, eu realmente estava pálida - Vou pegar uma água pra você. Vamos sentar lá na sua mesa - a Bia passou a mão pelo meu braço, segurando firme, acho que para me estabilizar, mas não era necessário. Sentei na minha mesa com ela me auxiliando. - Senta aí, vou pegar uma água.
Concordei com a cabeça, acho que é melhor mesmo. Liguei as duas fitas para rodar. Mas a tela preto e branco passando na minha frente estava me dando mais ansia de vomito. Parei os dois vídeos e encostei a cabeça na mesa, com os braços cruzados, tentando simular um escuro. Só levantei a cabeça quando a mão leve da Bia me chamou
- Água gelada Flávia, toma - eu estiquei a mão e peguei a caneca de metal, a minha no caso, estava realmente gelada. Encostei os lábios e virei o copo, bebendo um gole gelado. A água desceu rasgando, bateu no estômago. Entreguei a caneca de volta para ela, quando ela colocou na mesa, eu corri para o lixo da sala e ejetei tudo na mesma velocidade - Vamos ao hospital.
- Não precisa Bia, eu vou tomar alguma coisa, já já passa.
- Não tem já já não Flávia. Senta a bunda aí e me espera, vou avisar o Gabriel e vamos.
- Bia, estou bem.
- Não vou discutir - ela estava ríspida, firme, confesso que achei bonitinho, por mais que eu realmente ache que não preciso de hospital. Ir para casa deitar quieta e ficar é mais que o suficiente. A Bia saiu da minha sala e voltou uns 5 minutos depois, acompanhada do delegado, que me olhava com uma cara de “eu avisei”
- Que porre foi esse sapatão? Tomou 51 pura?
- Nem faz piada mozi, ela está mal. Vou levar ela pro hospital.
- Não precisa Bia, sério.
- Para de ser chata Flávia, leva ela sim Bia. Depois só traz o atestado para eu colocar nos relatórios. Vai com ela Bia, não dá pra deixar a cabeça dura sozinha por aí. E você dona Flávia, vê se toma jeito nas coisas que eu já te falei ou vou ter que te suspender pra você fazer o que precisa?
- Não precisa de nada disso mor, ela só não está bem. Vou dando noticias pra você ok?! - eu apenas fiquei observando os dois conversando, a Bia completou com um toque no rosto dele, que o Cantão retribuiu com um sorriso. Já comigo ele bateu a mão no meu ombro, com uma cara de “resolve logo”.
A Bia pegou minha mochila, jogou nas costas e me ajudou a levantar. Descemos a escada da delegacia que parecia uma bêbada carregando outra, uma cena no mínimo cômica. Ao chegar no térreo ela me deixou sentadinha na escada do DP enquanto chamava o uber.
- Em qual hospital você quer ir?
- Vamos pra casa. Eu deito e melhoro.
- Vamos nesse aqui de baixo então, o convênio atendê lá.
- Pode ser - eu não iria conseguir mesmo me livrar do hospital, então fechei os olhos, quietinha, rezando para não vomitar mais nenhuma vez. Quando o uber chegou ela me ajudou novamente, eu me mantive em alfa, completamente alheia ao universo. Passei pela triagem e segui para o pronto atendimento, após uma médica me atender e passar algumas medicações, a Bia me acompanhou para a sala que iriam dar os remédios. Ela entendeu a minha necessidade de silêncio e só trocamos algumas palavras um bom tempo depois, quando consegui acordar do efeito da medicação.
- Bom dia bela adormecida.
- Nossa, apaguei, que horas são?
- Quase uma da tarde, você dormiu uma hora.
- Acho que eu estava cansada mesmo.
- Estava cansada, com dor e tomou remédio. O corpo dá uma acalmada depois do estresse todo. Está melhor?
- Estou, quase sem dor. Ainda tem um pouquinho ainda, mas perto de hoje cedo estou zero.
- Bom, vai dar pra você voltar pra casa e descansar hoje.
- Eu vou aproveitar que estou melhor e ir buscar a Bruna no aeroporto.
- Não é melhor você descansar Fla? Ela pega um taxi hoje, qualquer coisa eu busco ela. Não sei se é seguro você dirigindo nesse estado.
- Acho fofo esse cuidado que você tem comigo Bia. - sorri pra ela, ela ficou sem graça e vermelha.
- Ah, é que eu quero seu bem, não quero você batendo o carro por estar com dor de cabeça.
- Bi, prometo que só vou se eu estiver bem. De todo modo ela só chega a tardinha, quase 7 horas. Se eu não estiver bem eu ligo pra ela e aviso. Pode ser?
- Você quem sabe. Só não dirige se estiver com dor, por favor. Quem eu vou encher o saco se você bater o carro.
- Você não enche o saco Bia, até me ajudou naquela zona toda do apartamento. Preciso voltar no médico né?!
- Sim, precisa passar lá para ele ver se você melhorou e se precisa de mais alguma coisa.
- Tá. Vamos indo - ela me ajudou a levantar da cadeira e fomos em direção ao consultório da médica que havia me atendido. Nos sentamos na porta, aguardando ser chamada, nesse meio tempo fomos conversando mais um pouco.
- Você precisa de um descanso Flávia, não vejo você parada nenhum minuto. Claro que essa cabeça iria dar pau algum momento. Eu admiro sua determinação, mas precisa de um descanso.
- Eu vou entrar de férias da faculdade essa semana, na verdade só preciso ir lá buscar duas notas. É cansaço de final de semestre.
- Eu quero ver, vou ficar no seu pé. Tem dia que você entra naquela sua sala de investigação, não come, não respira. Não tem como ser saudável assim, vou mesmo pegar no seu pé - ela falou brava, seria.
- Fala sério, você está com medo de não ter quem levar o lixo lá pra fora - sei que não é isso, mas não quis insistir na bronca dela.
- Não é isso Flávia, precisa se cuidar. Quero seu bem.
- Claro que quer, vem cá - Passei meu braço pelo pescoço dela, trazendo ela pra perto. Criamos esse hábito de carinho desde que ela começou a morar lá no apê. A Bia fez uma resistência com o corpo, mas eu puxei. Tasquei um beijo na cabeça dela. Acabamos dando risada da situação.
- Ainda bem que você melhorou. Fiquei assustada lá no DP, você vomitando.
- Acho que juntou tudo, cansaço, fim de semestre, esse caso que não ata nem desata. Estou assistindo filmagem dos assaltos a clínica e ao carro dos respiradores, parece que não sai nada de lá.
- Já cruzou os nomes?
- Já sim, já bati o nome dos sócios, nome dos caras presos, nome até dos advogados.
- Você está com as filmagens? Se estiver deixa comigo em casa, eu bato o olho também, as vezes vejo algo a mais. Sei lá um olhar diferente.
- Tem no meu note. Eu agradeço, normalmente eu peço pro seu namorado me ajudar, mas ele também está com mais casos que consegue segurar.
- Está mesmo, o Gabriel está ficando doido com as respostas da investigação do caso da criança na mala.
- Dá pra ver, ele está acabado também, mas até que bem feliz pro habitual dele. Como vocês estão?
- Estamos bem, ele é gente boa.
- Eu vi que ele passou a noite lá em casa no sábado. - Ela voltou a ficar corada.
- Eh, hum, é que..
- Bia, só comentei.
- Achei que você não tinha reparado. Mandei ele embora cedinho, antes de você acordar.
- Eu vi, fiquei quieta dando risada no meu quarto. Ele pode ir lá quando ele quiser, ainda se ele te faz bem.
- Eu gosto dele, é um pouco estranho, ele me trata bem. Sabe, as vezes eu acho que falta um pouquinho de romance, mas deve ser o jeito dele.
- Bi, vocês estão se conhecendo, você precisa falar com ele. Ele estava todo perdido esses dias porque você estava triste e ele não sabia o que falar pra te ajudar. Às vezes a gente quer algo, mas só nós sabemos desse algo, se o outro não sabe que você gosta, como pode te dar?
- Mas eu vou fazer como? Tipo, eu gostaria que ele me desse umas flores às vezes. Eu não posso chegar nele e falar me de flores.
- Em geral não, apesar que o Cantão é tão tapado as vezes que vai precisar falar e desenhar pra ele. Mas você pode ser sutil, do tipo “ olha amor, que flor linda. Adoro flores” - fui falando com uma voz fininha para fazer graça - ou você pode falar “ Flor é um lindo presente pra uma mulher”. Repete algumas vezes, ele vai captar na quinta ou sexta vez.
- Hahaha, como sabe esses detalhes?
- Mentalmente eu sou quase um homem, não esqueço meu nome porque falo ele o dia todo. Caramba, que demora pra chamar. Vou passar ali na porta de espiã, vai que ela me vê.
Levantei fazendo graça, eu realmente estava bem melhor, ainda um pouco abatida, mas bem melhor. Parei em frente ao consultório onde eu havia sido atendida mais cedo, mas a médica era diferente. Educadamente bati na porta, sendo em seguida atendida.
- Desculpa dra. Eu passei mais cedo com uma outra médica que estava aqui, a senhora sabe onde encontro ela?
- Ah, pode entrar. Ela foi embora, eu fiquei no lugar - assim que eu entrei a Bia me seguiu e entrou na sala também. Olhei rapidamente a médica, sem demonstrar muito, mas posso que dizer que o que tem de linda é o que tem de triste. Olhei rapidamente no crachá para ver o nome dela: “ Caroline Braga”, fica o nome para eu não esquecer de pesquisar. - Você está se sentindo melhor depois da medicação?
- Ainda tenho dor, parece que está dolorido a cabeça, mas perto de antes quase nada. E também não vomitei mais.
- Ótimo, já teve essas crises antes?
- Sim, conforme chega final de semestre, que trabalho demais, durmo pouco - fiquei conversando com ela um período breve, ao mesmo tempo que ela me examinava. Reparei na aliança dourada na mão esquerda dela.
- Flávia, eu imagino que as crises de enxaqueca sejam mesmo pelo final do semestre, dormir pouco. Eu sou ginecologista, então dor de cabeça não é minha especialidade. Vou deixar prescrito para você algumas medicações que ajudam no controle dessa crise, mas eu quero que você procure um neurologista, para fazer um controle mais adequado, ok?! Hoje eu quero que você vá pra casa, descanse, coma coisas leves. Vai tomar essa medicação aqui para conseguir dormir melhor essa semana. Vou te afastar do serviço por alguns dias também.
- Ela pode dirigir doutora? - a Bia solta lá da porta
- Nesse momento específico é melhor não, volta pra casa de uber ou outra pessoa dirigi. Mas estando bem, não tem problema dirigir. - com a resposta da médica, a Bia apenas me olhou firme.
Aguardei para pegar os papéis que a dra fez, agradeci pelo atendimento e sai da sala, encantada por ela no mínimo. Atenciosa, inteligente. Inteligência é um adendo importante.
- Essa não é a médica que te atendeu cedo né?! - a Bia me perguntou.
- Não, a que me atendeu antes foi embora. Essa falou que entrou agora. Gostei do atendimento dela.
- Sim, firme, conversou bem com você. Segue as orientações dela e cuida disso.
- Vou sim Bia, tanto porque se eu não for, você não vai largar do meu pé.
- Não vou mesmo. Achei a médica bonita, elegante.
- Sim e casada. Tinha uma aliança na mão.
- Reparou nisso?
- Ah, claro. Sempre é importante saber como está o jardim, vai que.
- Porque? Ela deve ser casada com um homem, não tem jeito de lésbica.
- E quando lésbica tem jeito específico Bia?! Fica a dica que ela é sim.
- Mas ela é toda elegante, arrumada.
- Sim. Não é porque é sapatão que tem que ser largada, vestir xadrez e andar mascando mato?
- Fui preconceituosa?
- Um pouco, mas acho que foi mais por desconhecimento. Ela é sim sapatão, você não tem esse gaydar apurado, mas dava para pegar nos pequenos detalhes, unhas curtas, o jeito firme de falar, o jeito que ela olhou quando eu entrei, são coisinhas sutis que só quem é do ramo sabe.
- Como você pega esses detalhes?
- Ah, Bia. Acho que é uma questão de oferta e demanda, procura sabe? Imagina assim, você precisa saber que o Gabriel gosta de mulher pra poder investir nele. Você não vai conseguir determinar o que ele gosta, como gosta só de bater o olho, mas sabe que gosta de mulher. Digamos que eu preciso ter o mesmo método de rastreio, buscar os pequenos detalhes. Vou ir te mostrando com o tempo, dá pra ser bem sutil mesmo.
- Eu não imaginava essa médica sendo, toda delicada.
- Achei ela triste, apesar que claro, não conheço, mas achei ela com carinha de chateada.
- Mesmo assim te atendeu bem, melhor que a outra.
- Sim. Eu gostei do atendimento. Até marquei o nome dela, vou stalkear.
- Desnecessário Flávia.
- Só para ter pesquisar mesmo, nunca se sabe o dia de amanhã.
- Aff, sem comentários. Você não sossega com ninguém?
- Olha aí, convivendo demais com o delegado. Eu estou conhecendo a Bruna, ela já chegou na terceira semana. Digamos que é a primeira desde a Fabi a chegar nesse marco. Já é uma conquista e tanto.
- Eu não gosto dela.
- Porque não gosta da Bruna, porque ela já conhecia o Cantão?
- Tambem. Não sei, meu santo não bate com o dela.
- Eu acho que isso é ciúmes dona Bia. Mas fica tranquila, do que o Cantão te oferece ela quase foge.
- Ah, não é isso. Sei lá, não bate o santo.
- Não vou rir porque acredito nisso de conexão e de não conexão, acho que é algo de feeling mesmo.
Fomos conversando sobre qualquer coisa até chegar em casa, mas entre o hospital e o apartamento não chegou a dez minutos, são todos bem próximos, com poucos quarteirões de distância. Assim que chegamos eu tive ainda uma tontura para sair do carro, imagino que pelo tempo sentada, mas a Bia me ajudou a levantar.
- Flávia, vai subindo pra casa, vou pegar uma marmita pra gente e já subo.
- Não precisa de nada para comer Bia.
- Não precisa o caramba, não tem nada lá em cima, eu to com fome e você vai comer tambem. Sobe que vou no restaurante. - diferente esse jeito firme da Bia, mas vou dizer que combina com ela.
- Vou com você então.
- Mas que difícil Flávia. Sobe pro apartamento e vai deitar. Você nem conseguiu levantar do uber sozinha.
- De pacífico só o oceano hein Bia. Te espero lá em cima então - Fui mexer na minha bolsa para pegar o dinheiro da comida, mas ela já tinha atravessado a rua. Estou achando um barato dividir o apartamento com ela, a Bia é super organizada, não bagunça nada, as vezes nem percebo que ela está em casa. Apesar de ser tudo muito novo, ela se mostrou uma pessoa justa, confiável.
Peguei o elevador e subi para o 20o. andar, o apartamento está cada vez mais com a minha cara, no sentido de que a cozinha já mudou, já surgiu uma sala, já tem alguns objetos de decoração, mes que vem vai surgir um sofá na sala nova. Por enquanto colocamos uma TV pequena que eu tinha no meu quarto, de quando eu morava com a minha mãe, está funcionando certinho, mas logo vou comprar uma grande para colocar. Estamos sentando nas latas de tinta que foram usadas. Confesso que estou gostando dessa zona toda, parece uma república organizada.
Tempos depois a Bia chegou, carregando em uma mão um refrigerante e na outra duas marmitas, segundo ela para não misturar as coisas. Ela realmente é bem organizada. Eu levantei para ajudá-la na organização, pegar os pratos e os talheres. Foi um almoço simples, mas super gostoso. Ficamos batendo um super papo.
Depois de almoçar a dor de cabeça voltou um pouco, bem mais leve que hoje cedo, mas voltou. Eu achei melhor não trabalhar, me dar um tempo de recuperação. Para isso deitei lá no meu quarto, coloquei o celular para despertar, não vai ser legal chegar atrasada no aeroporto. Acabei pegando no sono quase que instantaneamente.
Era por volta de março, não lembro exatamente o ano. Organizamos essa viagem com muito esmero, acertamos as folgas dela, as minhas, pedi alguns dias do bico de guarda costas, esperamos os astros se alinharem e os ventos soprarem ao norte e fomos. Na época eu trabalhava com o departamento de crime organizado, e ela no controle de entorpecentes, a Fabi organizou tudo sozinha, falou que o lugar era uma surpresa, só ia dando os boletos pra eu pagar. Eu curti a ideia de uma viagem surpresa, ela nunca deixou de me surpreender.
Passei de madrugada na casa dela, a comunidade estava bem calma, os jovens já tinham voltado do funk e todos dormiam. Parei em frente a portinha do corredor da casa dela, peguei o celular e liguei. Logo após atender ela veio abrir o portão, os cabelos escuros lisos, de descendência indígena, esvoaçam na brisa fria da manhã e deixava os fios bagunçados. Ela estava com uma calça jeans colada, quase isquemiando as pernas, mas eu gostava, achava sexy. A cara de sono era enorme, mas assim que desci do carro ela abriu o sorriso que sempre me manteve apaixonada.
Depois de um beijo rápido, casto, entrei na casa dela, a segunda casa do estreito corredor. Minha sogra, dona Arminda, estava passando um café, cheiroso, que eu adorava tomar, me ofereceu uma xícara que de bom grado aceitei.
- Pra onde vocês vão Flávia?
- A senhora tem que perguntar pra ela Dona Arminda, a Fabíola falou que é surpresa. Ela que vai guiar pelo GPS. - Enquanto eu tomei um rápido café, a dona Fabi, surgiu com as malas dela. É um ser incapaz de passar um final de semana sem levar pelo menos 2 malas, maquiagem , chapinha, roupa de frio, roupa de calor, roupa de piscina, roupa de banho, roupa de evento, capaz até de ter um cachorro na mala dela. Estou exagerando um pouco, mas é para comparar com a pequena mochila que levei, com três ou quatro trocas.
Ajudei ela a colocar as malas no carro, nos despedimos dos pais dela. A Fabi programou o GPS e eu fui apenas seguindo suas orientações, sem saber o destino. Todo o tempo fomos conversando, nunca faltou assunto entre nós. Ao fundo foi tocando a playlist mais eclética possível, acho que só não tinha gospel. E todo o tempo que eu dirigi as mãos dela estavam em mim, ou na perna ou no pescoço, sempre mostrando a presença, um carinho, um toque.
A viagem não foi tão longa, cerca de uma hora e meia e já estamos chegando a uma pousada no interior de São Paulo, chegamos bem cedo, dava para sentir o cheiro do café sendo passado no forno a lenha e do pãozinho saindo do forno. Depois do check in e do recepcionista nos levar até nosso chalé, ficamos em paz. Desembarquei as malas da Fabíola e as minhas coisas, enquanto ela olhava na sacada do chalé, para a mata que cercava a pousada. Ela apoiada ali na cerca, respirando com calma, era no mínimo encantador, em definitivo a Fabi era meu porto seguro, meu local de calma, cheguei em silêncio perto dela e passei meus braços ao redor do ombro. Uma das mãos puxou o cabelo dela para o lado, expondo o pescoço que eu graciosamente beijei. O cheiro dela é vivido, é real, eu te amo.
Despertador tocando, vontade de continuar dormindo, de voltar para esse sonho delicioso. Não sei o que essa médica do PS me passou, mas faz muito tempo que não consigo sonhar com a Fabi, sonhar no sentido de algo gostoso porque ter pesadelo com ela eu tenho a todo momento. Meus olhos ainda estão bem pesados, no fundo a dor de cabeça se mantém, sutil, mas sem pontadas, sem vômitos, apenas um peso na cabeça. Levantei com uma certa dificuldade, fui até o guarda roupa, o que vou colocar para buscar a Bru? A calça vai ser uma jeans mesmo, tem um sapato legal meu que vou colocar, marrom, meio de couro, um cinto para segurar o estilo e uma camiseta branca de manga comprida e fechou o rolê. Peguei minha toalha e segui para o banho.
- Flávia, você está bem pra ir? - Quase me assustei com a Bia falando da porta do meu quarto.
- Estou sim Bi.
- Mesmo? Como está a cabeça?
- Está doendo um pouco, mas nada perto de hoje cedo. Estou bem, não iria se não estivesse.
- Consegue ir sozinha, quer que eu vá junto?
- Não precisa, consigo ir sim. Vou até mais cedo para ir devagar, sem pressa. Se precisar eu paro, prometo.
- Vou confiar Flávia.
- Confia Coelho, não vou te deixar na mão - estiquei o braço e baguncei o cabelo dela. A resposta foi um “pára” com ela dando risada.
- Flávia, você está com as gravações aí? Não quer deixar pra eu dar uma olhada, as vezes capto algo.
- Não quero te dar esse trabalho.
- Eu não tenho nada pra fazer agora a noite. E quero te ajudar, não vai ser ruim uma outra visão da mesma coisa, as vezes eu pego algum detalhe que você não viu.
- Ah, eu aceito sua ajuda então. Não quero te atrapalhar, mas vai ser bom você me ajudar. Eu não acho mais nada. - Peguei meu computador e coloquei em cima da cama, abri a tela e digitei a senha de acesso, anotei em um papel e entreguei pra ela,, vai que desliga. - São esses videos aqui, esses são do roubo aos respiradores, essa pasta do roubo a clínica. Estou tentando uma ligação cravada entre os dois, o estilo é o mesmo, mas não tenho nada que conecte.
- Certo, vou dar uma olhada.
- Mas não se prenda a isso não, faz conforme você conseguir. Sem pressão.
- Relaxa Flávia, vai curtir sua noite que eu vou ficar aqui comendo pipoca e vendo vídeos de assalto.
- Que vida balada hein. Seu boy não vem hoje?
- As mães dele chegam de viagem amanhã eu acho, enfim, hoje sou só eu e seus vídeos.
- Tá certo. Aqui está meu computador, a senha você já tem, curta sua noite de balada. Eu vou indo para dar tempo de estacionar com calma e chegar no lugar certo do desembarque antes dela chegar.
- Que horas chega o voo da Bruna?
- Às 20h.
- Ainda sobrou comida da marmita, você não quer comer antes de ir?
- Não, estou cheia do almoço ainda. Qualquer coisa pego algo pelo caminho, mas estou cheia. Mas para acalmar essa sua carinha eu levo uma fruta, como quando eu chegar lá.
- Melhor. E não come nada gorduroso, lembra do que a médica falou.
- Não vou esquecer nada, nem ela - a Bia fez uma cara de deboche e saiu dando risada com meu computador na mão. Peguei minha mochila, gritei um tchau pra ela e desci para o térreo. O carro da Bruna estava parado no estacionamento de frente com o prédio, paguei a taxa que havia combinado com o dono pela estadia de uma semana, até que nada tão exorbitante.
Cheguei ao aeroporto tranquila, mas de algum modo ansiosa para ver a Bruna, são coisas novas que estou vivendo nesse momento. Assim como foi a primeira vez que levei alguém ao aeroporto, é a primeira vez que busco alguem tambem. Ao parar em frente ao salão de desembarque comecei a reparar nas pessoas ali, algumas leves com a expressão de sempre estar ali, outras agitadas por precisar ir embora rápido, alguns segurando placas de nomes, outros com flor. Eu não trouxe nada pra ela, não sei se já é o momento de flores, de todo modo dei o chocolate na ida, já foi um agrado. Minha boca está com gosto de remédio, mesmo eu mascando um chiclete de canela, olhei rápido no relógio, ainda tenho 5 minutos até o horário previsto do pouso.
Andei alguns passos até o painel que mostra todos os voos que chegam ou que saem, conferi que o dela havia acabado de pousar. Até sair e pegar as coisa é o tempo certinho de eu pegar um café pra mim. Olhei rápido em volta procurando uma loja, isso, starbucks, sei que ela gosta do café deles. Entrei na fila, serei a quarta a ser atendida, não vai demorar muito, mas mantive o celular na mão caso ela ligue ou avise algo.
- Seu pedido senhora?
- Dois cafés americanos de 200 ml, um deles pode colocar uma medida extra de café.
- Certo senhora, só retirar ao lado - dei alguns passos para o lado e aguardei. Quando a atendente gritou meu nome peguei os 2 copos. O meu coloquei um pouco de adoçante e mexi, mas o da Bruna eu deixei sem nada, já aprendi esse pequeno detalhe dela, café ela gosta puro e sem açúcar, tirando as mil variedades gastronômicas que ela toma. Abri a tampinha do meu e delicadamente dei um pequeno gole, eita café quente. O sabor preencheu a minha boca, não retirou o gosto do remédio, mas aliviou e muito. Com cuidado e com os dois copos na mão voltei, andando, ao hall de espera do desembarque. No painel avisava que o desembarque já estava autorizado. Agora é só esperar. É uma sensação de agitação, de ansiedade que estou neste momento. Fiquei de olho no portão.
Quando a Bruna finalmente passou pela porta, confesso que parei por alguns segundos, ela estava linda. O cabelo loiro estava solto, deixando o franjão cair sobre o rosto, ela estava de moletom preto, um tênis esportivo, deixando ela em uma altura normal, mas que pra ela é baixinha. Sua expressão era de cansada, imagino que pelo serviço e pelo voo de 8 horas. Quando ela levantou o rosto e nossos olhares bateram, ela abriu um sorriso que eu me apaixonei, por ela e pelas covinhas que se formaram no canto da boca. Eu devo ter sorrido bobamente na mesma intensidade, pois ela olhou rápido pro chão e depois de volta pra mim, uma expressão de vergonha, de timidez.
- Oiiii - foi a única coisa que consegui falar pra Bruna, minhas pernas estavam moles, eu queria agarrar ela ali mesmo no aeroporto. Ela manteve o sorriso delicioso, aproximando mais nosso rosto. Me deu um selinho, prolongado. Separamos a boca, ela passou os braços por baixo dos meus e colocou a cabeça no meu tórax. Encostei o nariz no cabelo dela e respirei, respirei fundo, respirei ela. Ficamos ali, no hall do desembarque, nessa posição por alguns segundos, sem nos mexer, eu com os braços abertos segurando um café em cada mão. Nos soltamos depois de um tempo, mas ela já tinha me levado - Peguei um café pra você! Não está mais tão tão quente, mas cuidado.
- Aí, você sabe mesmo o que eu gosto. Vim no avião desejando um café gostoso. Obrigada. - mais um selinho depois de pegar o copo.
- Vamos indo? Deixei o carro nesse bolsão aqui da frente. Me dá sua mala, deixa eu levar - ela entregou a parte do puxador, mas entregou olhando para o chão, sem olhar nos meus olhos.
- Como você está? Você usa óculos? - levantou novamente o rosto, mas desviando o olhar frequentemente.
- Eu não uso sempre, tive uma crise de enxaqueca hoje, aí o óculos ajuda. Passei a manhã toda no hospital, a Bia foi comigo.
- Sério?! Não precisava ter vindo me buscar, eu pegava um táxi para ir embora. Está melhor agora?
- Eu ainda estou com dor de cabeça, mas bem mais leve. Estou sem vomitar desde o almoço, um grande avanço.
- E o que o médico falou?
- Que deve ser estresse do final do semestre, de não dormir direito. Pediu pra eu procurar um neurologista e passou algumas medicações para ajudar a controlar a crise agora. Evitar comer gordura, chocolate, coisas fortes, até me deu uma listinha de alimentos proibidos. - chegamos no local do estacionamento - Quer levar seu carro?
- Não, se você estiver bem pode levar, mas se quiser eu levo.
- Entra ai então, vou colocar sua mala aqui atras - enquanto ela entrava no próprio carro abri a porta do banco de trás e coloquei a malinha dela lá, dei a volta por trás e entrei no assento do motorista.
Enquanto ela de arrumava e colocava o cinto eu olhei atentamente para ela. O rosto bem delineado é vistoso, não consegui ficar com as mãos longe, precisei tocar. Ela se aninhou a ele, recebendo carinho, mas sem olhar nos meus olhos, mantendo-os fechados. Observei que ela tem uma pinta no queixo, sutil, que apenas os detalhistas enxergam. Da mão no rosto eu fui subindo pela lateral da cabeça, um susto instantâneo.
- Você raspou a lateral? - afastei o corpo sem tirar a mão do couro cabeludo.
- Gostou? Eu queria mudar, raspei.
- Eu gostei. Sensação diferente. Deixa eu ver, joga o cabelo pro lado - ela sorriu mais uma vez, agora olhando pra mim, com uma expressão de felicidade. Afastei minha mão dela, enquanto a Bruna jogava o cabelo de lado e deixava o undercut na lateral da cabeça. Ela ficou super estilosa, acho que combinou bem.
- jura que gostou?
- Sim, sério. Encaixou bem com você, ficou estilosa. Linda na real - passei a mão na lateral da cabeça novamente, sentindo os fios bem pequenos enquanto aproximei nosso rosto. Primeiro bati a ponta do meu nariz no dela, respirando o cheiro de sua pele, depois aproximei os lábios, em uma massagem leve com a ponta da lingua. Dava para sentir no ar a tensão daquele momento. Pedi espaço que de imediato foi oferecido e enquanto as mãos da Bruna acariciavam minha perna, eu sentada no banco do motorista intensifiquei. Lingua com lingua, mordidas no lábio, puxões sutis, minha mão encravada no seu cabelo, a vontade não era de parar, de modo algum. Assim ficamos no carro nos beijando, segurando como dava a emoção de uma semana afastada. Eu estava com muita saudade dela, de conversar, de beijar, de simplesmente ver.
Fim do capítulo
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