Pérola

— Posso me sentar aqui? – Eu estava de boca cheia, entre uma mordida e outra, quando paralisei. Aquela voz... Olhei para cima e a vi. Penélope, de óculos escuros, em carne e osso na minha frente sorrindo para mim. Notei estar sozinha na mesa e ela em pé esperando uma resposta.

— Pérola, né? – Agora vou infartar... ELA SABIA MEU NOME! – Cacau disse que você estava aqui. Preciso fazer o teste, mas já que você está lanchando ainda, se importa que eu coma algo também? – Percebi que ainda olhava embasbacada e de BOCA ABERTA para ela.

— Se você quiser posso ir fazer o teste em você agora. – Engoli em seco o pedaço de biscoito que ainda estava  na boca antes de falar. Parecia que uma bigorna passava pela minha garganta. Ela me olhou com um sorriso de lado.

— Precisa não. - Tirou os óculos escuros e pude ver seus olhos claros. Acho que o barulho do meu coração poderia ser ouvido lá em Caldas Novas. - Eu que cheguei mais cedo. Fica tranquila. Vou pegar um suco. Você me indica qual?

— Não sei. Do que você gosta?

— Então, lá no Rio não tem essa variedade de frutas não. Eu estou a fim de experimentar algo novo. – Me deu um lindo sorriso. Petrifiquei. O vento soprou e senti o seu perfume. Estremeci. – Algo nativo mesmo.

— Você já provou cajá-manga? É o que eu tô tomando.

— Posso? – Perguntou e entreguei o suco a ela. Nem me liguei do Covid. Apenas dei o copo a ela. – Nossa, delicioso! – Disse soltando um gemido. Morri. MORRI, mas PASSO BEM. Eu tremia. Estava louca para falar com Liz e Fabricio para contar, mas teria que esperar a noite na pousada.

— Penélope, por que você não me esperou? – Um rapaz que reconheci como noivo dela, Cauê Duarte, chegou falando rispidamente. Minha antipatia ficou maior ainda.

— Não estava a fim. Queria vir logo. – Penélope disse sem se dar ao trabalho de olhar para ele.

— Pê, por que você não responde o WhatsApp? – Neto chegou correndo. – O resto do elenco chegou, e antes de qualquer coisa precisa testar. Bora?

— Ah! Desculpe, eu tinha colocado crédito, mas acabou tudo e agora tô sem internet... – falei baixinho envergonhada.

— Neto, arruma um chip para ela. Ou um rádio. – Penélope falou.

— Beleza..., mas não sei se tem como o Aloísio aprovar.

— Arruma que eu vejo isso. – Penélope disse. O rapaz concordou sem dar mais um pio. Aí que me lembrei de ter lido que nos últimos filmes e séries que fazia a atriz sempre fora uma das produtoras executivas. Cauã e Penélope começaram a discutir e me levantei sem os dois notarem e me dirigi rapidamente para o meu posto. Meu coração só faltava sair pela boca.

Penélope. PENÉLOPE. A mulher mais maravilhosa do mundo. Meu CRUSH ETERNO! A mulher que fez com que eu descobrisse a minha sexualidade. Iria estar os próximos 60 dias no mesmo lugar que eu.  Não estava aguentando a emoção.

Penélope

Troquei de roupa umas 100 vezes. Cacau, minha assistente, olhava para mim, rindo e balançando a cabeça.

— O que? Tô cagada por um acaso? Tá rindo porque? - Perguntei irritada.

— Nunca vi você tão nervosa por um primeiro encontro. Ainda não sei porque você não fala pra menina quem você é. - Cacau era minha melhor amiga e trabalhava comigo em todos os meus trabalhos como produtora assistente. Nós nos conhecemos desde criança, ela também foi atriz mirim, mas deixou a carreira.

— Não consigo, cara! Te falei! Com ela é diferente! Com ela parece que tô com 14 anos beijando uma menina pela primeira vez. Sabe a parada que falam de borboletas no estômago? Cara, são várias pombas no meu estômago… sacas? Por causa do tamanho! 

— Tá agora você me fez pensar em um monte de pomba voando e saindo da sua boca tipo filme de terror. Ou pior, pelo cu!!! - Começou a gargalhar e joguei uma almofada nela.

— Palhaça! Tá, mas fala de novo, o que você achou dela? Ela contou algo?

— Te disse que quando chegamos ela tava com um garoto e só isso. Depois entrou na van e mesmo com o Lipe sendo Lipe, ela não falou nada…

— Deve tá morrendo de vergonha… ontem conversei com ela.

— Ah, safada! Por isso que ela estava acordada ainda quando eu cheguei, certo que tava fazendo coisinhas…

— Acho que ela não faz isso… ainda. Quero mudar isso… - disse enquanto colocava uma blusa vermelha e um jeans claro que realçava a minha bunda.

— Mas quem vai mudar isso é a Liz ou a Penélope?

— Ai, não faz pergunta difícil a essa hora da manhã. Mas primeiro a minha meta é que ela seja com a Penélope como ela é com a Liz.

— Isso vai dar merd*… pelo que notei ela não é aquele tipo de menina que ilude uma e fica com outras. Liz te liga que ela vai ficar com a cabeça zuada…

— Ai caraca… você tem razão. Mas vou tentar mudar isso… ainda não sei como. - suspirei e dei uma última checada no espelho. - Bora, vamos lá que tô louca pra encontrar a ‘minha” Pérola… minha Pretinha…

No trajeto até o QG fiquei completamente muda. Nem respondi à mensagem do Cauê pedindo que o esperasse. “O que eu falo pra ela? Oi, eu sou a Liz,, sabe? A menina que você fala por meses… A menina que você meio que namora virtualmente.” Não, acho que não vou ter coragem.  

Chegamos no QG e Neto falou que ela havia terminado os testes do pessoal da produção e que começaria o elenco. Só que naquele momento ela estava na casa ao lado, onde era uma confeitaria chamada Dona Sebastiana. Cacau já havia me contado que o estabelecimento ao lado seria nosso catering, ou melhor, responsável pela alimentação durante as diárias. Me apaixonei pela foto da simpática senhora e amei saber que aquele casarão  antigo, cheio de recordações e objetos da dona Sebastiana, funcionava ali desde 1966. Hoje, mesmo ela já falecida, os filhos mantiveram o local e suas receitas tradicionais. Então em cada cômodo se encontrava algum objeto que pertencia à senhorinha, deixando o ambiente aconchegante, literalmente uma casa de vó.

Entrei na porta e procurei a minha Pretinha entre as mesas, em vários cômodos e por fim a vi sentada sozinha. Absorta, olhando o celular e sorrindo. Linda. Seus longos cabelos negros encaracolados estavam em um coque frouxo. Sua pele cor de canela parecia mais macia do que pelas fotos. Senti um nó na garganta e a vontade de correr e abraçá-la,  beijá-la, cuidar dela… “Caraca, Liz, você tá apaixonada mesmo!”. Passei reto e fui até o pequeno banheiro para me acalmar. Molhei um pouco meu rosto e arrumei a maquiagem… Pronto.

Fui até ela e mantive a postura de “Penélope a super-star”. A minha Pérola ficou completamente sem ação. Os olhos pareciam duas jabuticabas que iriam saltar a qualquer momento. Notei que tremia. Quando peguei o suco dela e tomei, o que eu mais queria era provar o sabor dos seus lábios. A menina não sabia o que fazer com as mãos. Tremia e gaguejava. “Melhor me distanciar um pouco para que ela se acostume com a minha presença”.

Tudo piorou quando o mané do Cauê chegou fazendo uma cena desnecessária. Que garoto mimado do cacete! Quando reparei a minha garota já havia saído.

— Cauê, para de frescura, garoto! Para de estrelismo. Tá se achando o último desodorante de bloco de carnaval? Eu hein! Se liga! Esse pode ser seu primeiro e último trabalho comigo… melhor baixar essa bolinha minúscula que você tem.

— Penélope, você tem que entender que não estou acostumado a esse tipo de lugar. - Olhou com desdém em volta.

— Não me interessa se você é playboyzinho da zona sul criado a Toddinho e Bacio de Latte. Aqui você tem que trabalhar como todo mundo e aceitar o que a produção te dá. Não quero mais ter essa conversa com você. - Estava cada vez mais irritada. Tudo porque o babaca do Cauê não aceitava andar de van ou ter que comer junto ao pessoal da graxa, como era chamada a pessoal da produção que faz o trabalho mais braçal, de carregar coisas, montar coisas, eletricistas, etc.. “Caraca, garoto que se acha! Eu hein!”

Pérola

Minhas mãos tremiam ao abrir o invólucro com o kit individual de teste de covid. Na luva, sentia as palmas molhadas de nervosismo. Penélope não perdia um movimento meu e parecia divertida com isso.

Me aproximei com o cotonete e ela prontamente ficou na posição certa. Lógico que ela deveria testar todo dia, conforme a lei exigia.  Sabia o quanto esse teste era desconfortável, então fui o mais rápido que podia. Fiquei muito perto do seu rosto e pude sentir, mesmo com a máscara, novamente o seu perfume. D E L I C I O S O. Engoli em seco, e coloquei o cotonete no líquido reagente, depois coloquei quatro gotas no artefato de plástico.

— Agora só esperar 15 minutos – disse para quebrar o silêncio. Minha garganta estava seca e sabia ser por causa da mulher a poucos passos de mim.

— Tudo bem. Faz muito tempo que você trabalha com isso? Quase não senti desconforto. Menina, você tem mãos de fada.

— Na verdade, é meu primeiro emprego. Me formei a poucos meses. 

— Garota... parece que você trabalha com isso há anos. 

— Bem... não é a mesma coisa, mas quando eu tinha tempo fazia estágio voluntário no postinho perto da minha casa, as técnicas e enfermeiras deixavam eu fazer alguma coisa. E ano passado eu já trabalhei numa ONG de cães de rua da minha igreja, e às vezes a gente precisava ajudar o veterinário. Então, algumas coisas eu aprendi.

— Tô me sentindo uma cachorra velha... – começou a rir.

— Não! Não era essa intenção... a senhora não é velha não... longe disso.

— Agora me chamou de senhora... piorou - Começou a rir e senti minha face arder. Ainda bem que a minha pele era escura, porque tinha certeza que se não fosse daria para notar.  – Fica tranquila, eu tô brincando. - Disse pegando alguns fios do meu cabelo que teimavam em sair do coque. Acho que foi impressão mas quando me afastei rapidamente ouvi um “linda”. “Pê, tá maluca, menina. Para com esses trem de imaginação. Até parece que a diva Penélope falaria algo assim para uma zé ninguém como você.” Logo o teste ficou pronto, negativando, e ela foi rapidamente para a sala de maquiagem. 

O próximo a ser testado era o Cauê. Ao contrário da atriz, o rapaz resmungou o tempo todo, dizendo estar doendo, que achava um desperdício de dinheiro já que a Covid era uma armação das grandes empresas farmacêuticas. Eu apenas sacudi a cabeça. Aprendi que com certas pessoas não vale a pena argumentar. Após, o resto do elenco veio testar. Reconheci vários atores e atrizes. Parecia que eu estava dentro de uma novela. Era muito surreal uma candanguinha como eu, no meio desse monte de gente famosa.

— Pê, agora que você terminou tá liberada. Mas a produção me pediu que eu te perguntasse se você poderia acompanhar as gravações. O bombeiro paramédico que foi contratado não vai poder estar. Ligou agora. Então tenho duas opções, ou você quebra esse galho, ou preciso correr na cidade para achar alguém. Você vai ganhar uma grana a mais. 

— Nossa, Cacau, imagina, não precisa me pagar não! Eu faria mesmo sem ganhar nada. É um sonho poder acompanhar uma gravação assim…

— Não, precisa ter tudo certinho. Vou te passar a diária cheia então. Ah, já ia me esquecendo, aqui tá um chip de celular, pode usar sem problema porque não tem limite. E… - pegou um envelope - um adiantamento para você, caso precise comprar algo, ok? E se precisar de qualquer coisa me avisa, tá?

— Cacau… nossa… eu nem sei o que dizer. Vou poder ligar pra mamãe a qualquer hora. Não sei como agradecer…

— Não precisa, menina. É seu trabalho, ué. Fica tranquila

Cacau saiu e instalei o chip novo e vi que no grupo da minissérie tinha a ordem do dia. Agora às 9 da manhã iria iniciar uma externa e que todos deveriam estar 8:30 na frente do QG. Abri o envelope e vi ter MIL REAIS nele. Nunca tinha segurado tanto dinheiro nas mãos de uma vez. Tremendo coloquei grande parte na calcinha, deixei cem reais no bolso da calça, depois iria ver onde guardar. Fui até a farmácia na esquina comprar xampu e sabonete. Tudo era muito caro e perguntei onde teria um mercadinho onde eu pudesse comprar sabão de coco. Era meio longe e estava quase na hora de sair para a externa.

Voltei para o QG e pedi para Cacau, se na volta da diária, poderiam me deixar num mercado.

— Claro, mas o que você precisa?

— Sabão de coco.

— Ah, pra lavar as calcinhas? Eu tenho um detergente próprio pra isso, te empresto.

— Não… - Falei constrangida. - É pro meu cabelo. Hoje lavei com aquele da pousada e ficou todo estranho e cheio de frizz.

— Ah, tá, a gente passa sim. Fica tranquila.

Sentei no último banco da van e logo o veículo foi enchendo. Estava entretida mandando mensagem para a Liz e o Brício contando tudo. Meu amigo respondeu na hora e estava surtando pedindo foto. Quando senti um perfume que já estava reconhecendo. Penélope sentou ao meu lado e gelei.

Fim do capítulo