Pérola
O metrô se arrastava pelos trilhos e sentia o sacolejar hipnótico que me fazia ficar sonolenta. A noite já havia chegado e conseguia vislumbrar as luzes dos carros e casas se acendendo. Fechei os olhos encostando a cabeça no vidro me deixando levar pela música que tocava nos meus fones de ouvido, ou melhor, "fone de ouvido" porque apenas o lado esquerdo estava funcionando. Quando os acordes de "Flor e o Beija-Flor" de Henrique e Juliano com a Marília Mendonça terminaram ouvi o barulho característico que meu celular fazia quando ficava sem bateria. Praguejei mentalmente porque não poderia mais escutar minhas músicas. Queria chegar logo para conferir meus e-mails, já que internet só teria no meu quarto que ficava grudado a casa da dona Chica, a senhorinha que me emprestava seu wifi e que era avó do meu melhor amigo Fabrício.
— Moça, tem um real pra eu comprar comida? - Um homem fedendo a cachaça me chamou cutucou meu ombro.
— Tenho não, moço. – Arrumei minha máscara no rosto - Mas comprei esses pães de queijo pro lanche e sobraram alguns, você quer?
— Quero não. Mão de vaca viu! Quem não tem um real?
Recoloquei os fones de ouvido fingindo escutar uma música e não dei mais atenção ao homem que xingava até a minha última geração. Não dei bola. Até cantarolei um louvor. Estava acostumada aos pedintes que passavam o dia nos trens. Muitas vezes levando crianças. Aprendi desde cedo a nunca dar nenhum dinheiro, ou melhor, trocados, porque dinheiro mesmo nunca tive. Mas sempre tinha algum tipo de comida. O homem agora falava muito perto do meu rosto e as pessoas o olhavam feio. Calmamente, me levantei e assim que as portas se abriram na estação, saí e corri até o vagão exclusivo para mulheres. Ainda me recriminando por ter esquecido e entrado no outro, mas como eu havia parado para trocar de roupa no banheiro da 108, quase não consegui pegar o trem. Não podia me atrasar porque minha mãe me esperava na Ceilândia Norte, no mesmo horário faça chuva ou sol.
Hoje foi o último dia do curso de técnico de enfermagem. Semana que vem seria a formatura, mas não irei porque não tenho roupa para o evento. Mamãe está muito orgulhosa, meu pai dizia ser perda de tempo e que eu já tinha idade para me casar com algum irmão da congregação. Mal sabia ele que eu não tinha nenhuma vontade de namorar nenhum deles, que dirá me casar. Na adolescência até cheguei a ficar com alguns rapazes, escondida era claro, atrás da igreja, na hora da célula de oração da minha mãe. No entanto, nunca senti vontade de mais. Meu coração e meu corpo se acenderam quando Célia, uma amiga minha, me beijou. Estávamos sentadas no quarto do Fabrício e ele havia ido ao banheiro. Depois disso nunca mais vi a menina. Os pais dela a expulsaram de casa, pois souberam da orientação sexual dela.
Percebi passar pelo Park Shopping e lembrei do dia que Fabrício, meu melhor amigo, e eu fomos à sessão de autógrafos da nossa diva Penélope, atriz, cantora, influencer... tudo de bom! Na verdade, fomos ao shopping tentando vê-la, porque dinheiro para o Meet&Greet não tínhamos. Conseguimos vê-la de longe e esse foi o dia mais feliz da minha vida. Aquela mulher era tudo o que eu gostaria de ser. Ela era maravilhosa e eu... média. Lembrei do poema que fiz no terceiro ano do segundo grau como tarefa de literatura, pensando em mim como eu era e sendo a filha do meio.
"Média.
Nunca se destaca.
Não é a mais bonita ou a mais feia.
Não é a melhor amiga ou, muito menos, a pior.
Não é escolhida primeiro, mas não é a última.
É só mais uma.
Se ela é triste?
Não diria isso.
Tristeza é para os extremos e ela... bem... ela vive na média."
Já Penélope era fora da curva. Eu sabia tudo sobre ela! O que gostava, o que fazia, os namorados... tudo que saía nos sites de fofoca e as entrevistas que ela dava. Adorava tanto essa mulher, era tão fã que passava todas as horas livres nos grupos dos Fandoms dela e stalkeando toda e qualquer postagem nas redes que ela colocava. Nesses lugares era uma pessoa diferente, não era a Pérola Souza Silva. Era a PepêILovePenélope, uma menina que tinha amigos virtuais e vivia uma vida normal. Uma menina que se vestia como queria e não apenas com saias longas e blusas fechadas. Uma menina que adorava filmes, músicas e séries, e não aquela que só assistia novelas bíblicas com a mãe e o pai. Uma menina que gostava de meninas. Uma menina livre, e não aquela que era obrigada a viver sobre os dogmas da igreja e dos seus pais.
Seu Pedro, meu pai, era fiel da Igreja Evangélica Sol Nascente ultraconservadora. Então fui criada em um ambiente super rígido e com muitas dificuldades, já que o dinheiro que meu pai trazia para casa com o emprego de auxiliar de pedreiro não era suficiente para as despesas. Mesmo assim, todo mês dava o dízimo para a igreja. Podia faltar comida, mas o dinheiro para o pastor era sagrado.
Por essa causa minha mãe começou a fazer faxinas. Então, fome a gente não passava mais. Desde muito cedo cuidava da casa e dos meus dois irmãos. E aos 12 comecei a fazer faxinas com a minha mãe. E com os trocados que economizei nesses anos, aos 15 comprei meu primeiro celular, lógico que era de segunda mão. E aí um mundo novo se abriu para mim. Fiz amigos virtuais e comecei a seguir a Penélope sonhando com uma vida que não tinha. Sorvendo cada gota de atenção que a atriz dava aos fãs. Sendo uma pessoa diferente do que eu era na vida real. Pensei em outro poema que fiz:
"Ela olha e não vê.
Ela ouve e não escuta.
Ela toca e não sente.
Olhos, ouvidos e dedos procuram a tela.
Ela vive no virtual, porque no real ela apenas sobrevive."
Percebi estar próxima à estação Ceilândia Norte onde minha mãe me esperava para irmos para casa. Teríamos ainda uns 20 minutos de caminhada até a minha casa. Mas geralmente, esse percurso, era feito comigo, contando à mamãe o que havia aprendido e como fora meu dia.
— Oi, minha filha. – a senhora com semblante cansado me beijou.
— Benção, mãe! – Beijei a jovem senhora roliça à minha frente.
— Deus te abençoe e guarde. – Segurou a minha mão – Tem roupa pra lavar? – Mamãe sabia que eu trocava de roupa sempre que saía.
— Tem sim, mamãe, mas eu lavo amanhã quando papai estiver trabalhando. - Fomos conversando pelo caminho.
Ao chegar em casa corri para meu quarto para colocar meu celular para carregar. Assim que vi uma barrinha abri meu e-mail. Há dias esperava notícias da agência de empregos que havia colocado meu curriculum por insistência de Liz, uma amiga virtual que conheci em um dos grupos da Penélope.
"Boa tarde, Pérola,
Você foi selecionada para uma vaga temporária (dois meses) em técnico de enfermagem com o salário de R$1500,00 mais ajuda de custo. No entanto, esse emprego requer viagem para Pirenópolis – GO. Gostaria de saber se você tem interesse. Favor responder o mais breve possível."
Ai, meu DEUS! Meu coração retumbava dentro do meu peito. Precisava contar a novidade para o Fabrício e a minha amiga virtual. Queria tanto ir!! Mas sabia que precisava convencer ao meu pai que certamente iria colocar todos os empecilhos para a minha ida.
Liz: Oi! Já chegou em casa?
Eu: Miga!! Me chamaram pra um emprego! Eu tô sem chão!!!
Liz: Aeeeeeeee, eu sabia que você iria conseguir! Me conta mais. É em Brasília mesmo?
Eu: Pior que não! É em Pirenópolis, sabe? Cidade aqui do Goiás. É histórica e tem várias cachoeiras.
Liz: Sei sim. É onde tem uma procissão, né? Onde uns vaqueiros fantasiados vão nas casas e tal...
Eu: kkkk mais ou menos isso, é a Festa do Divino Espírito Santo.
Liz: Você já foi?
Eu: Menina nunca saí daqui do quadradinho. Uma vez meu pai ia nos levar em Águas Lindas de Goiás para assistir o culto de um pastor importante da nossa igreja, que ia vir lá se São Paulo. Mas como o ingresso era muito caro não deu pra ir.
Liz: Pena... E seu pai, como vai fazer?
Eu: não sei, tô morrendo de medo... Ele não vai deixar eu ir. (emoji triste).
Liz: e sua mãe?
Eu: ela deixa, mas não vai contra ele.
Liz: e se você falar que vai cuidar de um bebê de uma família evangélica? Sua mãe não te ajudaria nisso?
Eu: Mas mentir, Liz...
Liz: Linda, é para um bem maior Pê...
Eu: Vou ver... aí... vou falar com ela. Ai, desculpa! E como tá a briga com a sua mãe? Você já saiu de casa?
Liz: Acabou que ela vai sair. Vai morar num apartamento próximo daqui.
Eu: Que sonho ter dinheiro...
Liz: Não, não... é alugado. E consegui um aumento no emprego então vai dar pra ficar sozinha.
Eu: Ai, amiga! Tô muito feliz por você!
Liz: Pê, eu que devia estar feliz por você. Você vale ouro, menina! Sempre com uma palavra amiga quando eu mais precisei. Sempre do meu lado, me ouvindo desabafar... Me dando conselhos.
Eu: Como se eu fosse muito vivida né, Liz. (emoji rindo) Vou ter que ir porque mamãe está me chamando.
Liz: Beijo te amo... amiga.
Eu: eu também.
— Filha não me ouviu chamar? – mamãe perguntou da cozinha. – Vá lá na venda e pega duzentas gramas de linguiça fiado. Diz pro seu Zé que assim que a Dona Maria me pagar a faxina eu acerto.
— Deixa que eu vou, mamãe. – Júnior, meu irmão mais velho, se ofereceu. "Aí tem, ele deve tá se engraçando com algum rabo de saia. Júnior nunca dá ponto sem nó."
— Não demora porque seu pai logo chega e vai querer jantar.
— Mamãe, preciso falar com a senhora. – Esperei ele sair. – Lembra que coloquei meu currículo na agência de emprego? Me chamaram. – Mamãe se jogou de joelho e a fiz levantar.
— Glória a Deus, minha filha! Não disse que o senhor há de prover? Deus seja louvado!
— Mas tem um problema... – e sem demora contei a ela. E falei sobre a ideia da Liz. Mamãe ficou quieta como se estivesse ruminando tudo o que disse a ela. Júnior chegou com a linguiça e a mamãe começou a preparar o cuscuz.
— Me alcance o flocão, filha, tá em cima da geladeira. – Pediu.
Papai e Dilson, meu irmão mais novo, chegaram sujos da obra e foram tomar banho antes da janta. Com a casa tão pequena, não podia conversar mais sobre o assunto que tanto me afligia.
Após a janta fui tomar meu banho. O chuveiro, muito velho, deixava cair poucos pingos de água e sempre tinha dois que eram gelados no meio dos outros. Estava acostumada com isso, mas sempre me lembrava de um clipe de música da Penélope que ela cantava e tomava banho em um chuveiro que mais parecia uma cachoeira e tinha tanto vapor, mas tanto vapor que parecia fumaça... Nesse clipe podia se ver o corpo dela, quase todo nu. Estremeci. "Para com isso, Pérola, nunca que uma mulher como a Penélope olharia para você! Sem falar que ela é hétero!"
Enquanto secava meus longos cabelos com uma toalha rala, e após colocar a minha calcinha atrás da geladeira para secar, contava por mensagem para o meu melhor amigo tudo o que aconteceu. Liz estava offline. Já era muito tarde, mas eu estava completamente eufórica. Mamãe não emitiu uma palavra sobre o assunto e não sabia o que esperar. Escutei uma batida na porta e a mamãe entrou.
— Matutei muito, filha. Muito. Demais. Esperei seu pai dormir e fui dar um dedo de prosa com a Dona Chica e ela me disse uma coisa que fiquei pensando. Ela me falou que a gente sempre deve ajudar um filho a crescer, e não puxar ele pra baixo. Então eu vou sim te ajudar, Deus há de me perdoar pela mentira que a gente vai contar pro seu pai. Mas vou sim te ajudar.
Fim do capítulo
E aíiii me contem. O que acharam desses dois primeiros capítulos?
Com quem vocês se identificaram mais com a Pérola ou Penélope?
E não esqueçam de me seguir no insta rosesaintclairwriter, comentar e favoritar a tia aqui <3
Beijo e até a próxima quarta <3
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Ester francisco
Em: 09/03/2023
Aaahhhh Pérola....que linda!!!! Me identifico....
Liz fazendo de td pra ajudar a "amiga"....rs
Eu tô amando essa história!! Muito sentimento envolvido...
Bora autora, "bagunçar" meu emocional e meu psicológico!!!
ADOROOOOOO!!!!
Resposta do autor:
kkkkkkkkkkkk bagunçar o emocional kkkk
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Rosangela451
Em: 28/02/2023
Deu vontade de comer pão de queijo rsrsrs
Adorando essa diferença toda entre as personagens. Pérola é um amorzinho né
E a mãe redondinha me lembrou a gatosa
Resposta do autor:
Simmm, a mãe da Pérola é amorzinho!
Pão de queijo com doce de leite <3
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Rose SaintClair Em: 24/03/2023 Autora da história
Pérola é nossa