Capitulo 7
Capítulo 7
Luciana andava a passos apressados para fora do convento. Os saltos tamborilavam estridentes no chão decadente e derrapante. Segurava o celular ao ouvido enquanto uma pessoa do Instituto lhe passava algumas informações importantes. Tinha decidido que não voltaria a trabalhar naquela tarde, no entanto, nem sempre o poder de controlar os planos feitos estaria em suas mãos. Logo ela uma mulher tão regrada. Odiava acasos. Um dos médicos que trabalhava para ela havia, por pura irresponsabilidade e imperícia, deixado um paciente ir a óbito.
Luciana respirou fundo já imaginando a dor de cabeça que aquilo causaria a ela. Já imaginava por antecipação as reclamações da ex-sogra Patrícia.
O motorista avistou a patroa e já se adiantou em abrir a porta do carro.
— Doutora Luciana. — Fez um breve gesto de reverência com a cabeça.
— Para o Instituto, Pedro, por favor. — Pediu apressada e adentrou o veículo.
— Sim senhora.
O funcionário entrou no carro e deu uma rápida partida. Pôde notar que a sua chefe estava preocupada e com bastante pressa. Mas mão era de se estranhar. Pois para uma mulher como elas as responsabilidades eram deveras.
Conforme o automóvel descia a BR íngreme deixando para trás o convento Nossa Senhora de Alexandria, Luciana observava com desinteresse a paisagem bucólica que se desenhava ao seu redor a cada rolagem dos pneus do carro no asfalto seco.
Apoiou o braço na janela e mais uma vez respirou fundo.
Imaginava o tanto de problemas que teria pela frente.
Uma vida fora perdida por um profissional que trabalhava para si.
Era um jovem médico recém formado. Com pouca experiência no currículo. Sequer tinha um Lattes decoroso. Entrara em seu Instituto por apadrinhamento, não por meritocracia.
E pensar que erros grotescos como aqueles costumavam ser cometidos o tempo todo, principalmente por políticos que visavam apenas seu próprio bolso e sua reeleição. Isso acontecia porque uma sociedade sem educação política jamais evoluiria mesmo que mil anos se passassem.
Umedeceu os lábios com a língua e olhou uma última vez para o convento.
Recordou-se da jovem freira...
Há muito tempo tivera o prazer de partilhar de uma conversa agradável com alguém e, no entanto, isso acontecera com aquela moça desconhecida.
Aquela misteriosa moça de olhos tão bonitos e inesquecíveis.
Fez um ar de riso.
“Como se chamava mesmo?”
“Ah...”
“Maria Clara Spitzner.”
“Esse era o seu nome. Combinava com ela.”
Pensava Luciana.
***
Clara ainda ficou um bom tempo sentada sobre a rocha, abraçada aos próprios joelhos. Os olhos fixos no oceano azul exibiam uma inquietude em relação a Luciana Ferrazza e as pesquisas dela.
Com certeza ela deveria entender muito bem sobre várias doenças, como câncer e HIV. Precisava se aproximar dela de algum jeito. Quem sabe ela poderia lhe ajudar. Pensou numa euforia grandiosa, mas essa logo foi por água abaixo, quando pensou que não havia esperanças ou escapatórias para si. Melhor mesmo seria permanecer dentro do convento. Só assim estaria protegida de verdade. O preconceito das pessoas era muito grande. Se dentro do convento a irmã Bárbara já vivia a lhe demonizar, ela que era uma freira e conhecia bem das palavras da bíblia, imagine as pessoas lá fora que não davam valor a dogmas e fé cristã.
Triste, levantou-se devagar. De pé, passou as mãos pelo hábito amarrotado, numa tentativa de ficar mais apresentável. Passou pelo meio das duas rochas e voltou para o convento. Seguiu para o salão. Precisava ajudar as outras irmãs.
***
No Instituto, os funcionários estavam em polvorosa.
Só se ouvia os cochichos exagerados de um lado e outro.
Por ali não se falava em outra coisa a não ser no óbito causado pelo filho de um dos médicos mais renomados daquele lugar.
Era o assunto do momento.
Fofocas e falácias não eram dignas de atenção das pessoas inteligentes, mas de algumas sem caráter e sem cérebro, sim, eram.
Um repórter do jornal local já sabia da notícia.
Essa fora vazada!
Luciana desceu do carro e já foi interceptada pelo microfone do repórter e pelo câmera.
— Doutora Luciana, gostaríamos de saber se é verdade o óbito de um paciente...
— Agora não. — Disse seriamente os ignorando e andando a passos largos para dentro do Instituto. Fora para a ala hospitalar. — Onde está Olavo e o filho? — Perguntou a uma enfermeira que ao vê-la se assustou.
— Estão na sala do doutor Olavo, doutora Luciana. Não saíram de lá desde que o pior aconteceu.
Luciana apenas fez um aceno positivo com a cabeça e já foi logo caminhando na direção da sala do médico Olavo e do filho.
Bateu à porta de sala e a abriu em seguida.
Do lado de dentro observou as expressões alarmados dos médicos — pai e filho.
O doutor João Olavo Brandão era um homem pomposo de seus quase 65 anos de idade.
O filho, João Pedro Brandão, era um rapaz jovem, de 27 anos. Um rapaz vistoso, muito bonito, bem-educado como o pai, no entanto, nada profissional.
Achava que a medicina era para amadores.
Luciana meneou a cabeça.
— Luciana. — Olavo disse se levantando e comprimindo os lábios de maneira decepcionada. — De antemão, peço desculpas pelo ocorrido. Foi um descuido de João Pedro.
— Este Instituto, bem como o hospital Agnello Ferrazza admite ações culposas, Olavo, mas nas últimas das últimas das opções. Um óbito dessa fatalidade é inadmissível. Esse rapaz deveria estar acompanhado do senhor, já que a cirurgia do paciente era de um quadro de periculosidade avançada. Somos profissionais há muitos anos, por esse motivo sabemos a cautela que devemos tomar em cada cirurgia que fazemos, desde a mais simplória até a mais complexa. — Verbalizou bastante séria.
— Desculpe, doutora Luciana. Isso não vai mais se repetir.
Ela encarou o rapaz de cima a baixo de uma maneira intimidadora.
— E não vai mesmo, João Pedro, pois a partir de hoje você não trabalha mais neste hospital. — Disse severamente. — Procure o setor de RH para que assinem sua carteira. Não precisa cumprir aviso prévio, já que sairá por justa causa.
— A demissão está ao rigor da tipicidade médica cometida, Luciana.
Concordou Olavo.
— Receio que procure um advogado penal muito bom, Olavo, o seu filho irá precisar. O hospital não agirá com omissão. Mandarei apurar os fatos do ocorrido agora mesmo.
E saiu ouvindo o choro do rapaz dentro da sala do pai.
Seguiu para sua sala no último andar.
***
Maria Clara, Ester e as irmãs estavam bastante cansadas.
Haviam trabalhado a tarde inteira até a noite.
Tudo o que desejavam era tomar um banho e se recolher em seus aposentos.
— Ai, meu Deus, estou morta de cansada.
Reclamava Ester.
— Eu também.
Clara concordou.
— Como foi o passeio com a chefe de papai?
— Hã? Quê? — Encarou Ester desconfiada.
— A doutora Luciana, amiga, como foi o tour com ela pelo convento? Ouvi dizer que ela nunca veio aqui, apenas os pais dela costumavam vim.
— Ah...— Soltou um suspiro. — Até que ela não é o monstro que você dizia, Ester. Você tem horas que é muito exagerada, garota.
— Hum...então a minha amiga estar querendo me dizer que gostou da assustadora chefe de papai? — As palavras vieram acompanhadas de uma aguda e sonora gargalhada. — Sério mesmo, Clarinha, para gostar daquela mulher intragável tem que ter estômago de aço. O que tem de linda tem de escrota. — Outra gargalhada.
Clara estava muito séria.
— Por que diz isso, Ester? Hoje não a achei nada desse monstro como você a descreve.
— Ela é muito bonita e cheirosa, Clarinha, por isso te passou uma imagem de boa samaritana, mas se um dia você tiver a oportunidade de a conhecer melhor saberá que a doutorazinha é uma mulher terrível. Ouvi até dizer que a ex-sogra, dona Patrícia Ricci, a culpa pela morte do marido. Até hoje ninguém realmente sabe qual a causa da morte dele. Essa gente rica é tudo estranha. Parece que tem pacto com as artes das trevas.
Ester fazia, literalmente, a caveira de Luciana.
— Ai, meu Deus, Ester. Não seja exagerada. A doutora Luciana foi muito gentil comigo.
— Agora deu, amiga! Não me diga que já se apaixonou? Já vou logo avisando que ela é hetero!
Clara ficou vermelha de vergonha.
As bochechas queimavam.
Que horror!
Ester às vezes era bem inconveniente. Ou então era doida mesmo.
— Não tem sentido isso que acabou de dizer.
Clara demonstrava uma grande irritação.
— Desculpa, Clara, não quis te irritar, amiga. Você parece um bicho do mato tem horas. Eu só estava brincando.
— Talvez eu seja. — Deu de ombros.
— Mas mudando de pau pra cacete, o curso vai iniciar mês que vem já lá no Instituto.
— Eu não vou poder ir. Lembra que vou prestar serviços à comunidade?
— Mas...
— A pena já foi decretada pelo juiz. Vamos deixar como está. Quanto mais mexer, mais pior ficará.
Ester fez cara de triste e arrependida.
E ela realmente estava.
— Desculpa, Clarinha. De verdade.
— Está tudo bem.
— E você já sabe onde prestará o serviço?
— Tem que ser em uma entidade pública ou público privada. Filantrópica também, sem fins lucrativos. A notificação deve chegar ainda esta semana aqui no convento. O Oficial de Justiça deve trazer. Serão somente alguns meses. Logo passa.
***
Angel e as filhas já retornariam próxima semana para a Itália.
Luciana adorava a presença agradável da prima e das filhas dela.
Pena que o tempo passava tão rápido e era tão curto para apreciar as boas companhias.
Mesmo diante de um grande problema no Instituto, Luciana decidiu sair para jantar com Natália, Angel e as duas crianças, em um restaurante de culinária italiana.
Sentaram a uma mesa. Pediram um vinho para as adultas e um suco para as crianças. Alguns petiscos também. Um pré-jantar.
O assunto da vez era o tal do “amor.”
— O meu casamento sempre tem altos e baixos, mas sempre tento sentar e conversar com o meu esposo, assim a gente consegue resolver como dois adultos sensatos, nossos entraves, não como duas crianças birrentas e mimadas.
Angel disse sorvendo um gole do vinho italiano.
— Nessa história de relacionamento, eu sempre sou aquela que sofre, porque só gosto de pessoas comprometidas. — Natália gargalhou olhando para Luciana e Angélica. — Mas o que eu sei é que certas pessoas — fazia gestos direcionados a Luciana — está na lista de metade dos marmanjos desta cidade.
Luciana olhou para Natália de maneira séria.
— Refere-se a mim, Nat?
— A senhorita mesma.
— Ah, Nat, só tu mesma, criatura, achar que a essas alturas da vida estou pensando em romance e coisas afins.
— Nossa, Lu, falando assim até parece que para você a vida perdeu o sentido faz tempo.
Luciana sorriu com vagar. Não queria estragar o jantar com suas lutas internas e extremamente particulares.
— Nada disso, Nat, pelo contrário, só acho que meu trabalho precisa bem mais de mim do que um homem ou outra pessoa qualquer.
— É nada, Lu, eu te conheço bem o suficiente para saber que não queres abrir espaço em tua vida para um amor ou coisa do tipo.
— Concordo contigo, Natália. Luciana está sozinha há bastante tempo...
— E estou muito bem assim, meninas.
— Gustavo está completamente caidinho por essa nossa garota esbelta. O problema é ela que não dá chance mesmo.
— Nat, tu bem sabes o garotão que é Gustavo, então nem me venha com essa. E até uns dias atrás não era tu que dizia dele um galinha? Homem de uma noite e nada mais?
Luciana indagava franzindo as sobrancelhas.
— Ah, mas contigo as coisas seriam diferentes.
— Por que comigo? Eu sou uma mulher igual todas as outras, Nat. Não é o fato de eu ser chefe dele que mudará em algo.
— Quando a gente ama, a gente muda, e para melhor.
— O amor por si só já não é uma mudança?
— Para algumas pessoas, sim.
— O que me parece, Natália, é que nossa amiga Luciana tem medo de se envolver com outra pessoa.
— Medo não, apenas não disponho de tempo mesmo, Angel.
— A gente arranja tempo, quando algo nos interessa.
— Se eu for atrás do que vocês dizem, meninas. — Riu balançando a cabeça e tomando um gole de vinho.
— Tia Lu, vamos ao parquinho com a gente, por favor.
Chamavam as meninas de Angélica.
— Meninas, deixem Luciana em paz. — Interrompeu Angel.
— Pode deixar que eu vou lá ao parque com elas, Angel, vocês duas se comportem. Não bebam demais, ainda falta o jantar. — Luciana disse se levantando e segurando nas mãos das duas meninas.
***
— Aonde estamos indo, Ester? — Maria Clara perguntava baixinho, enquanto era puxada pela mão, ou melhor, praticamente carregada pelos corredores mal iluminados do convento até o lado de fora, onde árvores gigantes balançavam e rugiam forte pela força da brisa marítima.
— Oh, amiga, relaxa, apenas iremos a um lugar especial com alguns amigos.
— Amigos?
— Eles são legais..ai, relaxa, Clarinha. Ao menos um pouco se permita ser feliz.
— Ser feliz sem passar por cima das ordens de madre Constança ou da irmã Bárbara, Ester. Se souberem que saímos do convento à noite podem nos penalizar, sabe Deus até sermos expulsas. Você tem para onde ir, eu, não.
— Ai, amiga, prometo que não seremos pegas. Voltaremos umas 22:00 h, prometo.
Ao sair do convento, Clara se viu diante de uma BMW preto que estava com os faróis apagados.
Dentro do veículo estavam dois jovens de aproximadamente 25 anos e uma jovem na mesma faixa etária de idade.
Um cheiro forte de bebida alcóolica e maconha quase embebedou Maria Clara.
O cheiro de álcool ela conseguiu reconhecer, mas não o da maconha.
Puxada por Ester, adentrou o veículo e sentou no banco de trás.
— Ooooi, gatinhasssss...
Disse um dos rapazes, já entregando uma garrafa de bebida para Ester.
— Você quer um pouco, Clarinha.
— Não, obrigada, Ester. — Disse toda assustada. Não parava de olhar para aqueles três jovens perdidos na vida e se perguntar como podiam viver daquele jeito.
— Prontas para uma noite de aventuras, gatinhas? — Perguntou o outro rapaz.
— Prontas! — Gritou a jovem que se chamava Bianca.
— Então já era, compadre! Vamos que vamos!
— Quem são essas pessoas, Ester?
Clara sussurrou no ouvido de Ester, para que não pudesse ser ouvida.
— Relaxa, Clarinha, são meus amigos. Vamos apenas até a praia ouvir uma boa música, acender uma fogueira, beber um pouco e voltar para nossa prisão religiosa.
— Mas é proibido por lei escutar som na praia à noite. Corremos o risco de ser presos pela polícia. Já basta o processo eu tenho por causa daquele dia no Instituto da chefe de seus pais.
Ester revirou os olhos.
— Todo mundo faz isso, Clara, e até agora ninguém foi preso, amiga.
***
Beirava às 22:15 quando Luciana, Angélica, Natália e as crianças deixaram o restaurante após um maravilhoso jantar e algumas garrafas de vinho.
Do lado de fora, Angel disse para Luciana:
— Lu, Natália não está em condições alguma de dirigir até o apartamento dela.
— Estou percebendo, Angel. Leva meu carro, que eu vou dirigindo o carro dela.
— E como pretendes voltar para casa?
— Eu pego um táxi ou irei no carro dela, amanhã devolvo.
— Tem certeza de que não deseja que eu te acompanhe?
— Tenho sim, podes ir com as meninas. Elas devem estar com sono já.
— E você deve estar cansada.
— Apenas um pouco, mas será rápido. Logo mais estarei em casa.
— Sendo assim, estou indo.
Luciana assentiu e caminhou para o carro de Natália, que já estava dentro e roncando. Levou-a para casa, entregou-a à irmã e avisou que amanhã devolveria o carro dela. Então seguiu de volta para casa. Decidiu ir pela avenida beira mar. De repente batera uma vontade de vagar pelas ruas da cidade para desparecer um pouco sua mente. Colocou a música de Air Supply – Making Love Out Nothing At All. Sempre gostara de músicas clássicas. E aquela era uma das suas preferidas.
Dirigia devagar e tranquilamente pela avenida.
Ao seu lado direito estava o mar e suas ondas de espumas brancas se destacando na escuridão de noite.
Apreciava as notas e melodias da bela canção, enquanto mantinha suas mãos firmes no volante e sua atenção na estrada adiante.
Tudo estava tranquilo demais.
Luciana estava até encontrando sua paz de espírito, sua conexão com as energias do universo, mas tanta paz assim foi interrompida por uma pessoa atravessando na frente do carro.
A médica freou bruscamente. Não tivesse de cinto teria sido arremessada contra a direção. De dentro do carro, apurou a vista na esperança de ver quem era a pessoa irresponsável que se jogara na frente do carro. Não conseguiu distinguir quem era a pessoa. Perdendo o controle de suas emoções sempre tão regradas, furiosa, desceu do veículo e andou com agilidade até a fulana. Quando viu, uma garota de olhar assustado. Tinha certeza de que era umas dessas jovens baderneiras que adorava uma noitada de bebida na praia. Entregaria aquela fulana à delegacia naquele mesmo instante. Não importava quem fosse. Ela por pouco não causara um acidente.
— O que pensa que está fazendo, sua moleca irresponsável! — Sibilou furiosa. — Por pouco você não nos causou um acidente. E se eu tivesse tirado tua vida? — Segurou a jovem pelo braço sem se dar conta de que a garota era Maria Clara.
Clara tremia, estava em apuros, e ficou ainda mais nervosa quando se deu conta de quem era mulher brava que segurava seu braço, não com força, e lhe fazia questionamentos que naquele momento não conseguia responder. A polícia estava ao seu alcance, precisava fugir dali...da polícia...dos braços da chefe do pai de Ester.
— Por favor, eu não fiz nada. A senhora precisa me soltar.
— Ah, não fez nada. E o quase acidente que há pouco causaste?
— Eu... — Clara mordiscou o lábio inferior. — Por favor, me desculpe. — Ergueu a cabeça e olhou bem dentro dos olhos escuros de Luciana. Eles brilhavam, era um brilho de uma excêntrica fúria, mas logo a fúria foi substituída pela surpresa.
— És a moça do convento?
Maria Clara morreu de vergonha. Queria correr diretamente para aquele mar e se afundar dentro até o fim.
— Sim, doutora Luciana. Eu sou a freira do convento.
— Freira?
Outra vez Clara teve vontade de correr em direção ao mar, após perceber o olhar de reprovação de Luciana ao fazer o último questionamento.
— Bem, sim. Mas se lhe serve de consolo, eu não estava bebendo, até porque sou proibida de beber, apenas fui praticamente arrastada até essa praia junto com alguns jovens que nunca vi na minha vida. Queria apenas fazer companhia a minha amiga Ester. Eu juro por tudo o que é mais sagrado.
— Ela outra vez.
— Ela não tem culpa...
— Pelo visto essa tua amiga só te mete em problemas. — Afastou-se um pouco de Clara. — E onde ela está?
— A uma hora dessa, deve estar tentando se safar da polícia.
Luciana balançou a cabeça negativamente.
— E aí foge com os amiguinhos dela e te deixa largada às traças a uma hora dessa. Estamos no Brasil, lugar em que as mulheres sequer têm o direito de sair à noite. Será que me compreendes?
— Sim.
— Venha comigo. Vou levar você para o convento.
— Mas...ficará muito tarde para a senhora voltar para casa. O convento fica longe e a estrada até lá é bem esquisita.
Luciana a fitou demoradamente.
Achou engraçado o modo como ela se preocupou com a sua segurança, quando não sabia sequer cuidar dela mesma.
— Já sou bem adulta, sei me cuidar, ao contrário dessas jovenzinhas sem juízo que existem por aí.
Luciana tinha um modo calmo de falar, uma voz tão forte e profunda, que deixava Clara totalmente embevecida.
— Eu tenho juízo, doutora Luciana. — Falou baixinho.
— É bom saber que tens, menina.
Olhavam-se nos olhos, de maneira profunda, intensa. Como numa busca por conhecimento de almas.
— Não precisa se incomodar comigo. Eu sei me cuidar sozinha.
— Estou vendo. — Ironizou fazendo um ar de riso discreto e gostando de deixar a jovem freira desconfiada. — A madre superiora sabe que você e sua amiga saíram do convento?
— Bem...não.
— Bom, então mais um problema para sua vida, mocinha. Agora vamos, pois está ficando tarde.
— Como eu disse, a senhora não precisa se incomodar comigo. — Disse abraçando a si mesma.
Luciana a observou. Viu naquela moça uma fragilidade tão grande que foi incapaz de não se comover por dentro. O mínimo que poderia fazer era levá-la ao convento.
— Isso não é incômodo para mim. Teu bem-estar é bem mais importante. Vamos? — Começou a caminhar na direção do carro.
Clara ficou olhando para a elegante médica. Não entendia por que a simples presença daquela mulher a deixava tão nervosa e ao mesmo tempo impulsionada a perguntar mais sobre a vida dela. O olhar dela às vezes era tão triste, apesar de ela tentar não demonstrar isso. Num gesto impensado, correu atrás de Luciana, entrou no carro, ainda muito desconfiada, e fechou a porta, depois colocou o cinto de segurança.
— Obrigada, doutora Luciana.
— Então vieram burlar a norma municipal na praia. — Supôs ignorando o insistente agradecimento de Maria Clara.
Clara achou graça.
— Na verdade, buscávamos um pouco de diversão.
— A polícia costuma ser bem rígida com aqueles que transgridem a lei. Esse pessoal jovem não tem mesmo nada na cabeça.
— Nem todos os jovens são assim.
Luciana olhou de relance para Clara e fez outro ar de riso.
— Você, mocinha, por exemplo?
— Humm...talvez. Posso dizer que costumo pensar mil vezes antes de fazer as coisas.
— É assim com tudo em sua vida? Inclusive com a decisão de ser freira?
— Não foi uma decisão, doutora, foi uma consequência da vida.
— Não sei se me fiz entender no meu questionamento.
— Sim, fez. E eu disse que não sou freira por uma escolha minha, apesar de hoje gostar desse ofício. Fui deixada no convento ainda bebê.
— Então nunca conhecesse teus pais?
— Não. — Olhava ociosamente pela janela do carro para a estrada mal iluminada ao redor. Não conseguia entender o fato de toda aquela estranheza perto da doutora Luciana. De repente sentia uma vontade enorme de perguntar sobre ela, sobre a vida dela, sobre tudo que fazia parte do mundo dela. — E a senhora, doutora? — Ousou indagar.
— Eu...? — Luciana inquiriu franzindo as sobrancelhas.
— Sua vida...seu trabalho. É um trabalho incrível. Ajuda muitas pessoas a não morrerem tão cedo. Eu tomei a liberdade de ler o seu currículo. Doutorado em infectologia. Que incrível! O seu instituto também é incrível.
A médica sorriu e disse:
— Tu achas? Eu estou achando que vou aceitar que a senhorita cumpra a pena de prestação de serviços lá no meu instituto.
Clara arregalou os olhos. O coração já estava aos pulos.
— Sério?!
— Caso você queira, evidentemente.
— É claro que sim! É tudo o que eu mais quero na vida. — Os olhos brilhavam. — Vou adorar conhecer mais a fundo sobre o mundo da infectologia. — Dizia deslumbrada com a proposta de Luciana. Estava incapaz de conter sua felicidade interna. — Ficarei muito grata, doutora Luciana.
Luciana ainda sorria sem entender o interesse da jovem em uma área esdrúxula como aquela, que era tão dispersa aos jovens da época. Olhou-a e se deparou com aqueles olhos brilhantes, grandes e expressivos, que a si eram tão familiares. Sentiu o mesmo incômodo de a primeira vez em que a viu. Uma mistura de amargura e apatia com algum resquício de proteção e felicidade. Olhar para aquela moça era como olhar para...
— Chegamos!
Clara exclamou aliviada e interrompendo os pensamentos de Luciana assim que o carro cruzou os portões do convento, após ter subido a escuridão da rocha íngreme em que repousava as antigas e históricas paredes do Convento Nossa Senhora de Alexandria.
A jovem desceu do carro e Luciana fez o mesmo.
— Está entregue, mocinha. Mas vê lá se não vai mais se intrometer em nenhuma encrenca.
Clara gargalhou. O riso era fácil perto de Luciana. A presença dela parecia alegrar e iluminar seus dias nublados.
Olhou para a médica notando o quanto ela era linda em qualquer hora do dia. Um sorriso calmo, branco, excêntrico, cativante. Tantos adjetivos que se usasse todos não seria capaz de a definir naquele momento.
Ela era tão gentil e educada.
“Que mulher tão linda e extraordinária.”
Pensou Clara admirada.
“Será que ela era mesmo aquela pessoa boa?”
Pensava, ainda.
— Obrigada por ter me salvado.
— Ainda bem que esta noite retornarei para minha casa com o título de salvadora.
Luciana fez um arzinho de riso.
Impulsivamente Clara se debruçou sobre a médica e a beijou com carinho no rosto.
“Hummm, como ela é cheirosa”
“Que cheiro tão maravilhoso essa mulher tem.”
Pensava Clarinha, que a cada segundo se sentia mais e mais cativada pela chefe do pai de Ester.
Luciana se surpreendeu. Não esboçou nenhuma reação. Há muito tempo ninguém ousava se aproximar assim de si, de maneira tão íntima.
Há muito tempo, mas, no entanto, aquela moça...
Luciana fechou os olhos e respirou fundo. Quando os abriu disse:
— Bom eu...preciso ir. — Afastou-se da jovem.
Clara percebeu a frieza da outra e logo tratou de manter ainda mais distância. Achava que tinha passado dos limites. Censurava-se por ter chegado tão perto assim daquela mulher tão rica e poderosa. O que pensava que estava fazendo se chegando assim com tanta intimidade? O mundo daquela mulher era mesmo muito diferente do seu. Ainda mais com aquela doença infecciosa que corria em suas veias. Seu coração se comprimiu no peito de tanta tristeza e dor pela verdade dolorosa de sua amarga vida. Deveria cortar de uma vez por todas a admiração que tinha pela chefe do pai de Ester.
— Boa noite, doutora Luciana. — A amargura em sua voz era mais do que perceptível. — E mais uma vez muito obrigada por tudo. E desculpe o incômodo. — Disse com a voz embargada os olhos cheios de lágrimas. Sua sorte era que estava meio escuro. Ela não notaria sua dor.
Luciana era uma mulher extremamente esperta e observadora em tudo, era claro que tinha percebido o desconforto da jovem, diante de sua apática frieza. Seu ato fora inadmissível, mas por que deveria se importar com uma simples freira de um convento? E por que de repente aquela menina despertava em si um forte instinto de proteção e até afeto? Não era uma pessoa que andava por aí esbanjando afetos e coisas afins. Então por que aquilo agora? Em outra ocasião sequer teria levado aquela moça até ali, sequer teria se dado ao trabalho. Mas não era o tempo, não era o lugar, era a pessoa.
— Boa noite, querida. Durma bem. E juízo. — Entrou no carro e partiu tão rápido que era como se estivesse a fugir de Clara.
Fim do capítulo
Oi, meninas, peço desculpas a todas pela demora.
Tem lançamento de uma nova história lá no Amazon e no KindleUnlimited. Segue o link: https://www.amazon.com.br/s?i=digital-text&rh=p_27%3AThaa+Di+Caldarelli&s=relevancerank&text=Thaa+Di+Caldarelli&ref=dp_byline_sr_ebooks_1
Bjs e até o próximo capítulo,
Thaa, :)
Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 19/02/2023
Surpresas da vida.
Resposta do autor:
A vida tem suas nuances...rsrsrs
Bjss!
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Raf31a
Em: 19/02/2023
Adorando a história. Espero que o próximo capítulo venha em breve...
Já tenho um palpite: Clara é filha biológica de Sérgio e da Irmã Bárbara. Por isso o olhar familiar e a aversão da Irmã Bárbara por ela. Mas estou curiosa para saber quem é o doador misterioso que custeia o tratamento médico.
Resposta do autor:
O capítulo vem hoje! Rsrsrs.
Hummm! Vamos aguardar o desenrolar para tirar as dúvidas sobre o palpite! Haha
Bjss!
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Christina
Em: 18/02/2023
Ester e Maria Calra se dão bem e são opostas, uma é centrada e a outra é doida de pedra kkk
a Luciana mostrando que tem coração e não é má, apenas rígida e frustrada com a vida. Agora a Maria tem outra impressão dela.
Duas almas tristes, unidas pelo o destino... Amando essa história ousada!
Resposta do autor:
Ainda bem que alguém tem juízo nessa dupla, senão já pensou o que seria delas? Kkkk
Luciana é uma boa pessoa, só é meio desacreditada da felicidade e da vida. Será que Clara trará alguma luz? Rsrs
Bjss!
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HelOliveira
Em: 17/02/2023
Adorando essa aproximação da Clarinha com Luciana...
Tudo no seu tempo minha querida, histórias maravilhosas com as suas, sempre valem a espera.
Bjos e bom Fds
Resposta do autor:
Oi, Hel!
E vamos ter muitas aproximações. Rsrs
Muito obrigada, meu bem. Estou me esforçando ao máximo para colocar tudo em dia.
Bjss e se cuide!
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