Nunca Te Amarei -- Capítulo 6

Todos se viraram e os olhares recaíram sobre elas.

-- Faz muito bem, eu no seu lugar faria o mesmo -- Kristen levou o copo aos lábios e saboreou um gole de sua bebida.

Tonhão jogou a franja para o lado.

-- Eu vou quebrar a sua cara.

-- Olha Totonha, não gosto de brigar. Sou adepta ao Budismo Tibetano e a paz é um dos principais fundamentos. Sou zen, zen, zen...

Adriana lançou um olhar desesperado em direção à Tonhão.

-- Por favor, Tonhão, não bate nela. Ela é a minha chefe.

A boca larga de Tonhão se curvou, debochada.

-- Vou quebrar essa magrela insonsa no meio.

Kristen se engasgou, cuspindo a bebida na roupa da Tonhão. Uma mistura de gim e suco de laranja encharcou sua camisa preta.

-- Ops, foi mal -- ela passou a mão pela camisa da moça, aumentando ainda mais a mancha -- Pronto. Está tudo resolvido.

-- Sua, sua, sua... -- disse a moça, erguendo os punhos e colocando-se em posição de combate.

-- Oi amor, até que enfim! -- uma moça apareceu do nada e a agarrou pelo pescoço -- Sabe que tem mais de uma hora que estou te esperando? 

A moça ficou observando a reação de Kristen, que não conseguiu controlar a expressão de surpresa que passou por seu rosto -- Vem, vamos dançar.

Ela pegou sua mão e segurou-a com força, puxando-a para a pista de dança.

Kristen tocou-lhe o rosto de leve e sussurrou em seu ouvido:  

-- Quem é você?

-- Vamos conversar lá fora -- disse ela, caminhando em direção a porta dos fundos que dava para a varanda envidraçada.

Luciana estava tão nervosa que mal conseguia falar. 

-- Mamãe, a Kiss deu "sovete pa" mim -- contou o menino, abrindo os braços para ser erguido. Luciana se inclinou e tomou o filho nos braços, abraçando-o bem apertado, os olhos assustados enquanto o segurava.

-- Meu amorzinho não chorou? -- perguntou ela, tentando não deixar o medo transparecer. Sabia, sem olhar, que Matilde e Laura observavam a cena com lágrimas nos olhos.

-- Não, mamãe, eu fui "colajoso" -- disse a criança num tom adulto. 

Luciana teria rido, mas aquela não era hora para humor.

-- Você é o homenzinho da casa -- Luciana olhou para o filho com a face tão pálida quanto uma folha de papel. Sentiu uma estranha sensação de fraqueza, colocou o garoto no chão e de repente, tombou desfalecida. Laura correu até a irmã com uma preocupação óbvia. Matilde sentiu-se culpada. Havia cometido o grave erro, não ousava pensar nas consequências de seu ato ou enlouqueceria! 

-- Meu Deus, filha! -- Matilde estava desesperada.

Laura então sentou-se ao lado da irmã, sua tensão interior aumentando a cada segundo que os olhos de Luciana permaneciam fechados. Pegou-lhe a mão fria na sua -- Lú, Lú, acorda -- Chamou e nada, bateu nas faces pálidas da irmã e nada. Percebendo que o sobrinho estava observando-a assustado, Laura chamou a atenção da mãe com um gesto da mão.

--Tira o Dudu daqui mãe. 

-- "Quelo fica" com a mamãe, tita -- o menino tinha lágrimas nos olhos e estava muito assustado.

-- A mamãe está bem querido, vai lá para dentro com a vovó.

-- Vamos Dudu, quando a mamãe acordar, a titia chama a gente -- disse Matilde, levando o menino para o quarto.

Quando Laura se virou de volta, Luciana já estava com os olhos abertos.

-- O que aconteceu?

-- Você desmaiou, minha querida -- disse Laura, com tom afável -- Isso pode acontecer após um choque. 

-- Eu nunca desmaiei antes.

-- Há uma primeira vez para tudo -- disse Laura, sorrindo -- Vamos até o sofá, eu te ajudo -- ela enlaçou a irmã pela cintura e levou-a para o sofá.

-- Não consigo parar de pensar no que aconteceu e se... e se ele tivesse... 

-- Se, se, se. Para com isso, Lú! -- Laura segurou a mão da irmã, olhando-a nos olhos -- Graças a Deus, o Dudu está bem. O que aconteceu deve servir de alerta para nós, mas você não deve se torturar dessa forma. Tenta descansar, amanhã estará mais calma e pode conversar com a mãe de forma mais tranquila.

Sem soltar a mão da irmã, Luciana abaixou a cabeça. 

-- Tá certo, eu vou colocar o Dudu na cama, depois vou dormir.

-- Tem certeza que está bem, não quer que eu te acompanhe?

-- Não precisa, eu estou bem.

Luciana ergueu o olhar e sorriu, e a tristeza de seu sorriso afetou Laura.

-- Amanhã será um novo dia, Lú, e tudo se resolverá.

Em pé, na varanda, Kristen observava o mar além da praia deserta. O som alto de conversas e música chegava pelas portas entreabertas às suas costas.

-- Ainda não entendi o motivo da cena -- disse Kristen, uma expressão divertida nos olhos. 

-- Fiz aquilo para te livrar daquela louca. A Tonhão adora amassar a cara de garotas lindas e indefesas como você.

-- Concordo com o linda, mas quanto a indefesa, há controvérsias.

Elas riram juntas, mas as risadas logo silenciaram.

-- Pode me chamar de Kris -- ela disse, afinal. A moça era encantadora, com seus cabelos negros, a pele bronzeada e perfeita, o rosto levemente corado. 

-- Meu nome é Leticia -- murmurou, quase sem conseguir respirar. Letícia sentiu um tal fascínio por aquela garota desde o momento que a viu chegar na festa. Subitamente, parecia estar vivendo um maravilhoso sonho. Não queria acordar, queria prolongar aquela magia por muito mais tempo.

-- Letícia, Letícia. Pra onde você vai com aquele mototaxista? 

Letícia, Letícia. Eu só saio do bar com você ou com a polícia -- cantou Kristen e Letícia sorriu, animada --  Você é tão feliz como parece? -- Kristen perguntou, pois os olhos da moça brilhavam intensamente.

-- Sim. . . Sim, sou muito feliz. Porque a pergunta?

-- É que você sorri o tempo todo.

-- É que você é engraçada -- respondeu ela, com um sorriso divertido.

Kristen olhou para ela um pouco decepcionada.

-- Poxa, minha fama de mau está cada dia mais decadente. Tenho que rever meus conceitos. 

-- Vamos pegar uma bebida? -- perguntou a moça, com voz ligeiramente rouca -- Estou com a garganta seca. 

-- Vamos. 

Entraram na casa e foram atrás de um garçom, a mão de Kristen segurando o braço de Letícia, guiando-a no meio de uma multidão de gente dançando uma coreografia engraçada ao som de "Goo Goo Muck", da banda The Cramps. Kristen parou observando admirada.

-- Que dança estranha é essa? -- perguntou à Letícia.

-- Que mundo você vive, garota? Essa é a dança da Wandinha.

-- A Wandinha do Lettera?

Leticia revirou os olhos.

-- Que Wandinha do Lettera, o que! Wandinha é uma série da Netflix que se tornou um grande sucesso. Dentre as várias cenas memoráveis da série, a maior delas, provavelmente, é a cena de dança. Tá todo mundo dançando.

Todo mundo dança, menos eu. Pensou Kristen. Isso é inadmissível!

Adriana e Tonhão mostravam claramente que haviam abusado ligeiramente da bebida, assim como a maioria dos convidados que dançavam, cantavam e sorriam sem parar. Em um canto da sala, havia uma mulher sentada ao lado das mesas onde a comida e a bebida eram servidas aos convidados. Kristen e Letícia pediram bebidas e retornaram à varanda.

-- Daqui a pouco estarão todos bêbados -- disse Kristen, olhando preguiçosamente os cubos de gelo no copo de whisky. 

-- Bêbados e irritantes -- acrescentou Letícia, que observava Kristen com interesse. Era uma mulher linda, bronzeada e com olhos verdes. Olhos que, ela suspeitava, poderiam se tornar extraordinariamente duros, se ela se irritasse.

-- Sim, você tem razão. 

Beberam em silêncio, seus olhares se cruzando de tempos em tempos. Letícia não prestava atenção às pessoas que passavam, nem ao ruído da música. A única coisa real, para ela, eram as batidas de seu coração e a sensação de uma irresistível atração física. Letícia tirou o casaco, revelando uma blusa preta, justa, que modelava seu corpo. Era uma mulher bonita. Kristen gostava do que via.

-- Então, o que você faz da vida, além de frequentar festas de lésbicas briguentas?

-- Trabalho de secretária em uma grande empresa aqui do Rio. Estou cursando a faculdade de direito, quero concorrer a uma vaga de advogada onde trabalho -- ela comentou, sonhadora -- E você?

--Tenho alguns bares espalhados pela orla.

-- Que trabalho legal! -- Letícia olhou para Kristen, fascinada. Seus lábios se entre abriram como se esperasse ser beijada, e o silêncio novamente caiu entre as duas. 

Pouco depois, Kristen falou: 

-- Que tal terminarmos a noite comendo pizza e bebendo vinho? 

-- Agora?

Kristen balançou a cabeça confirmando.

-- Você é casada? 

-- Nem casada, nem noiva, nem comprometida. E você? -- perguntou Letícia.

-- Completamente livre!

Leticia sorriu, os olhos brilhando intensamente. Mas o sorriso morreu em seus lábios e a emoção a envolveu. 

E, juntas, saíram da casa.

-- Eu vim de táxi -- ela disse.

-- Eu vim de moto. Está estacionado lá -- Kristen apontou para além dos jardins -- Vamos.

Enquanto caminhavam, afastaram-se aos poucos do ruído da música e dos gritos que vinham da casa.

Luciana acordou, mas continuou na cama. Queria se levantar, mas uma tristeza imensa roubava-lhe as energias. Por fim, levantou-se e foi para a cozinha. 

-- Está melhor, filha? -- perguntou Matilde, colocando as xícaras sobre a mesa.

-- Um pouco melhor.

-- Você vai comer pão? 

-- Vou comer um pãozinho -- Luciana cortou um pedaço de pão e o engoliu -- Mãe, o que aconteceu ontem foi muito grave, mas, quero deixar bem claro que eu confio na senhora. Poderia ter sido eu ou a Laura que estivessemos no seu lugar. A senhora nunca foi irresponsável, sempre cuidou muito bem do Dudu. 

Matilde baixou a cabeça.

-- Desculpa filha, o que eu fiz foi imperdoável -- Matilde começou a chorar -- Se não fosse aquele anjo que apareceu para salvá-lo, teríamos perdido o menino. E tudo por minha culpa! -- a senhora caiu em um choro convulsivo -- Eu estava cansada e peguei no sono. 

Luciana abraçou a mãe com força.

-- Não chora mãe -- ela afagou ternamente os sedosos cabelos acinzentados de Matilde -- A senhora não tem culpa de nada. Eu é quem tenho culpa por colocar uma carga tão pesada sobre os seus ombros.

Matilde se afastou um pouco para olhar a filha no rosto.

-- Eu quero muito ajudá-la, minha filha. Eu sei que com a morte do Arthur muita coisa mudará para pior. Prometo que vou ser mais cuidadosa daqui para frente.

Luciana voltou a abraçá-la. Sentiu um nó na garganta diante da dor da mãe, do seu sentimento de impotência. 

-- Você sempre me ajudou, mãe. O que seria de mim sem a senhora? -- ela beijou a cabeça de Matilde e voltou a sentar-se -- Enxuga as lágrimas e me conta tudo o que aconteceu. A senhora sabe quem é a garota que salvou o Dudu?

Matilde pensou um momento antes de responder:

-- Não tenho muita certeza, mas acho que ela se chama Kris. Pelo menos foi o que ouvi o Eduardo falar.

Luciana ergueu uma sobrancelha.

-- Não sabe mais nada sobre ela? 

-- Não, minha filha. Foi tudo tão rápido e traumático que nem lembrei de perguntar mais sobre ela.

Luciana levantou e foi até a pia lavar a xícara.

-- É uma pena não ter obtido mais informações sobre ela, gostaria muito de convidá-la para um almoço aqui em casa, como uma forma de agradecimento.

-- Que pena, filha. Confesso que fiquei tão nervosa que nem agradeci a moça direito. Que vergonha! Vou rezar para que ela seja muito feliz.

Leticia acordou aconchegada na enorme cama de Kristen. Ela, toda esticada, com uma das pernas sobre a dela, os braços ao redor de seu corpo, envolvendo-a. Virou-se para ver o rosto dela, que dormia como um anjo, e resolveu despertá-la de forma carinhosa. 

-- Bom dia -- beijou suavemente a orelha e a curva do pescoço de Kristen -- Vamos ter que levantar. 

-- Temos mesmo que sair da cama? -- resmungou, a loira.

Leticia levou as mãos até os ombros dela e os apalpou com doçura.

-- Preciso trabalhar, já estou atrasada. 

-- Tá bom, eu te levo -- Kristen espreguiçou-se.

-- Não, não precisa. Eu chamo um Uber.

-- Imagina -- Kristen pulou da cama e então caminhou até o banheiro. Minutos depois, Letícia ouviu o barulho da água correndo. Quando a garota voltou para o quarto, estava com uma toalha enrolada e usava outra para enxugar os cabelos. O aroma de pétalas de rosa do sabonete a acompanhava.

-- Preparei um banho de banheira para você.

-- Sério? -- Letícia a encarou confusa.

-- Fiquei esperando que se juntasse a mim na ducha, mas como não veio, acho que vai gostar de relaxar na água quente, depois de tanto exercício. 

Pelo tom da voz, Kristen parecia estar se divertindo. 

Luciana tentava dirigir com atenção, mas seus pensamentos não obedeciam e ela se viu novamente pensando em Dudu. Ela o amava tanto que queria tê-lo a seu lado, de qualquer maneira. Acabaria dando um jeito de ficar com ele nas férias. Poderia tentar conversar com João Vitor e pedir para levá-lo para o escritório, embora achasse que era uma missão quase impossível, João Vitor com certeza pediria algo em troca e ela não aceitaria. Luciana bufou, cansada. Teria que dar um jeito. Não podia culpar a mãe por não conseguir tomar conta do Dudu. Não era fácil para uma mulher de sessenta anos aguentar um garoto levado, de cinco.

Saindo da rodovia, Luciana pegou a estrada que terminava nos portões da construtora Donati. Foi para o estacionamento, onde uma vaga com seu nome a aguardava. Era bom ter essa vaga no estacionamento. Isso só acontecia porque seu cargo atual era de secretária do diretor financeiro. Precisou percorrer um longo caminho, até chegar a esse ponto. Lembrava-se ainda de quando se apresentou pela primeira vez na Donati. Luciana tinha vinte anos quando começou a trabalhar na construtora, Jaqueline  era a secretária do presidente da empresa e foi com ela que Luciana foi conversar. Jaqueline perguntou o que ela sabia sobre a profissão. 

Luciana, com muita ousadia, disse que não tinha nenhuma experiência, mas estava disposta a aprender, faria qualquer coisa para se manter naquele emprego. 

Agora ela sabia que Jaqueline tinha gostado de sua coragem e determinação, embora fosse uma tarefa bem árdua para ela. 

Começou a trabalhar e, aos poucos, foi se inteirando da realidade da empresa. Aprendeu muito com Jaqueline, e estava indo muito bem até o dia em que foi mandada ao setor financeiro, fazer uma entrevista com um jovem funcionário que tinha a fama de arrogante e mulherengo. Ela foi aprovada para o cargo, mas comeu o pão que o diabo amassou nas mãos do chefe safado. Então, dois anos depois, foi apresentada à Arthur e tudo mudou.

A campainha soou e Rick refreou o desejo de gritar um FDP com quem tivera a má ideia de aparecer naquela hora da manhã. Pensando assim, abriu a porta de má vontade.

-- Dona Donatella?

-- Não, a Maga Patalógica -- ela entrou com tanta energia que Rick precisou segurar-se para não cair. Donatella era sombria e perigosa. O cabelo comprido, estava preso em um rabo de cavalo. Mas era o brilho de triunfo nos olhos negros e a inclinação ironica dos lábios que a tornava temida -- A Kristen já acordou?

-- O que a senhora quer? -- perguntou Kristen, entrando na sala -- Tem aparecido demais ultimamente e eu não gosto nada disso.

-- Bom dia para você, também, minha querida filhinha. Convoquei uma reunião de emergência para as nove horas -- disse ela, ignorando o comentário da filha.

-- Reunião? Você não disse que precisava de mim só para assinar papéis?

-- Sim, eu disse, mas essa reunião exige a sua presença. Não tem como ser diferente.

-- Não posso, tenho outros compromissos.

-- Pois cancele, a empresa é mais importante que tudo.

Kristen cruzou os braços, irritada.

-- Não me provoque, Donatella.

Donatella pegou a bolsa de cima do sofá.

-- Estarei esperando no escritório, não demore.

Kristen balançou a cabeça inconformada.

-- Rick -- berrou, enfatizando a ausência de boas maneiras. No entanto, ser educada era a menor de suas preocupações no momento. 

-- Não precisa berrar, criatura! Estava ouvindo atrás da porta.

Kristen olhou-o com uma expressão de censura.

-- Chama o Fred e pede para ele levar a moça no trabalho, não tem jeito, vou ter que ir com a Donatella para a empresa.

-- É pra já -- estava saindo quando Kristen o chamou:

-- Rick.

-- Sim? -- olhou-a curioso. 

-- Quando eu voltar, me ensina a dança da Wandinha? 

 

 

 

 

Fim do capítulo