Capitulo 19
Capítulo XIX
— Fale mais baixo, Miriam. — Clarisse atendeu o celular na manhã seguinte, deitada de bruços em sua cama e com uma tremenda dor de cabeça.
— Ressaca? Mau humor? Chateada?
— As três opções.
— Ontem resolvemos não beber nada, faz parte de um processo de purificação que Claudia inventou, disse que estamos nos conectando à natureza de Gramado e precisamos estar com o organismo livre de tóxicos.
— E você topou passar a virada sem beber?
— O que eu não faço por essa mulher? Mas já comprei uns vinhos aqui, quando voltarmos de viagem você aparece lá em casa para beber um com a gente.
— Se tiver vinho, pode me chamar.
— São vinhos ótimos, segundo Milena.
— Como assim?
— Ela me ajudou a escolher os vinhos, liguei para ela.
— Como ela está?
— Triste, né? Tomou um pé na bunda sem aviso prévio.
— Como se fosse simples programar um término... Também foi difícil para mim.
— Tenho certeza que para ela foi muito mais doloroso, e ainda está sendo. E você está nesse estado porque sua pivete não apareceu ontem?
— Ela veio, mas foi embora no meio da festa.
— Por que? Nem começaram e já estão brigando?
Clarisse virou para cima, espreguiçou-se.
— É que às vezes eu esqueço que estou lidando com uma garota insegura, vou precisar de um caminhão de paciência e sabedoria.
— Cai fora logo, Clarisse.
— Ainda não. Mas vou aguardar, se ela tiver algo para me falar, que me procure, não vou forçar a barra.
Após sair da cama, mandou uma mensagem para Francine.
Chegou bem? Já se mudou para a pensão?
Meia hora depois chegou a resposta:
Sim
***
Francine não a procurou naquele dia, nem nos dias seguintes. Não mandou mensagem, nem ligou. Não apareceu no abrigo. Clarisse sondou Amanda, que ainda permaneceria no abrigo por mais um ano, assim como Matheus. Descobriu apenas que a adolescente estava num emprego novo.
Outra semana se passou, Clarisse ficou tentada a mandar uma mensagem, apenas para perguntar como ia o novo emprego, mas resolveu ser fiel ao prometido e não a procurar.
Naquele ano seu projeto de pesquisa na USP havia recebido nova verba, aquecendo os ânimos e planos do seu grupo. A vontade de lançar um livro sobre seu objeto de estudos seria saciada até o final do ano, a médica estava agora absorvida pela pesquisa, pelo trabalho no abrigo, e por seus filhos.
Ligou para Milena numa noite de sexta, apesar da conversa ter se mantido pacífica, Clarisse sentiu toda a tristeza que a outra carregava, havia ainda muita mágoa por parte da professora, que se esforçou para não transparecer. Sentiu-se um monstro, queria poder minimizar o sofrimento dela, marcou um café com a agora ex-namorada.
Tivera uma crise devastadora na metade do mês de janeiro, a impedindo de trabalhar por dois dias. Sabrina soube da crise, que se estendia no final de semana, e quebrou o protocolo de visitação, levando as crianças para passarem o domingo com a psiquiatra, o que a ajudou imensamente a sair daquela escuridão.
Naquele domingo a família inteira tomou café junta, Sabrina parecia menos arredia, as discussões haviam quase cessado, não era coincidência: a relação delas piorava muito quando Clarisse estava namorando.
— Acho que você tomou a decisão acertada, você e Milena não tinham muito em comum. — Sabrina ia falando ainda na mesa do café, as crianças já haviam terminado e estavam no quintal.
— Você nem a conheceu direito, Milena é uma ótima pessoa. — Clarisse usava um roupão cinza e estava com olheiras.
— Me pareceu um tanto arrogante.
— Impressão errada sua. Como está Renata no novo emprego? Esse hospital deve pagar melhor, não?
— Ganha a mesma coisa, mas ela trabalha menos agora, os plantões são menores.
— Que bom, ela pode passar mais tempo em casa, com vocês.
— Ela vai fazer um jantar lá em casa semana que vem, é aniversário dela, pediu para convidar você.
— Sexta?
— Sábado. Você pode? Ou está com novas namoradas?
— Posso sim. Mas é meu final de semana com as crianças, eu as levo e trago de volta, ok?
— Tudo bem. Você parece péssima, espero que você melhore, que consiga trabalhar amanhã.
— Já me sinto bem melhor, agora que os meninos estão por perto.
— Eles também são minha dose de energia, quando olho para eles sei que vamos ficar bem.
— Mas estão crescendo tão rápido! Parece que dão um pulo de uma semana para outra, João já tem um metro e meio.
— Essa semana doei um saco desse tamanho, com roupas que não servem mais neles. — Disse gesticulando. — E os calçados? Não dou conta de comprar.
O celular de Clarisse vibrou sobre a mesa, com uma mensagem.
tá muito brava comigo?
Dizia a curta mensagem de Francine, mais de duas semanas depois do Réveillon.
— Não vai responder? — Sabrina perguntou depois que Clarisse voltou a repousar o celular sobre a mesa.
— Depois eu respondo.
— Pretendente nova?
— Uma amiga.
— Não se envolva com qualquer uma, você precisa ser mais seletiva.
— Agradeço o conselho. Quer mais café?
***
deveria?
Foi a resposta que Clarisse mandou depois que Sabrina foi embora, próximo ao meio-dia.
sim, eu fui uma cuzona. Me desculpa?
por que levou duas semanas para me procurar?
eu estava com vergonha
vc vai voltar a falar comigo?
queria muito te ver, sinto sua falta
Clarisse se derreteu, não conseguiu evitar um sorrisinho, estava no sofá com o notebook no colo.
eu tb sinto, docinho
não fala assim que eu morro
morra não, quero te ver essa semana
sério?
vc pode almoçar comigo?
claro, mas pego as 13h no trampo novo
posso passar 11:30h na pensão para te buscar?
amanhã?
quarta-feira
fechou
combinado
mas vc me desculpou?
conversamos quarta-feira, bom domingo pra vc, :*
Animou-se com o compromisso marcado, Clarisse ainda não entendia porque Francine era tão inevitável, tão imprescindível em sua vida. Mas sabia que era.
Terça após o trabalho Clarisse se encontrou com Milena num café nas imediações da faculdade onde a professora lecionava, estava contente por ela ter topado o encontro, desejava confortá-la de alguma forma.
— Voltei a trabalhar ontem, mas até começar as aulas só preciso ir até lá esporadicamente.
— Vai viajar? — Clarisse ajeitou-se na cadeira, arrumando seu vestido azul marinho. — Quando as aulas começam?
— No comecinho de fevereiro. Pra falar a verdade eu tinha planos de viajar com você, porque você tinha mencionado que tiraria uns dias de folga em janeiro, mas... Paciência.
— Eu sinto muito... Bruna não toparia viajar com você?
— Não, por causa do trabalho. Você não gostaria de dar um pulo na Grécia ou nas Ilhas Canárias comigo? Como minha amiga e convidada.
— E saberíamos como separar as coisas? Acho que está muito recente, querida.
— Isso foi um talvez mais tarde?
Clarisse sorriu, mas estava preocupada em achar formas de sair pela tangente sem ferir ainda mais aquela pessoa que havia aprendido a ter afeto e carinho.
— Sim, quem sabe um dia façamos uma viagem juntas, quando estivermos devidamente resolvidas.
— Você também está repensando as coisas?
— Sempre. — Riu timidamente. — Mas resolvi que este ano tentarei pegar mais leve, não levar as coisas a ferro e fogo, sabe? Deixar a vida me levar um pouco.
— Que sopre bons ventos.
A médica não viu, mas Matheus passara na frente da vitrine daquele café acompanhado de dois amigos, parou um instante quando reconheceu sua terapeuta.
— A doutora voltou com a namorada, quem diria.
— Aquela ali é a médica do abrigo?
— É sim, Francine vai gostar de saber da novidade. Vamos.
Pisou no skate e continuou andando.
***
Fazia um calor infernal na cidade, Clarisse estacionou o carro próximo a pensão onde Francine morava, não havia vagas na frente. Esperou dez minutos e nada da garota aparecer, ligou e não foi atendida.
Vinte minutos depois do horário marcado a porta do carro abre abruptamente, assustando a médica.
— Aconteceu alguma coisa? — Clarisse perguntou surpresa.
— Não, eu só não sabia se deveria vir. — Disse já sentada no banco do passageiro.
— E por que não atendeu minhas ligações?
— Não sabia o que falar.
A médica respirou fundo antes de respondê-la, voltou a olhar para frente, com as mãos no volante.
— Ok.
— Desculpa. — Francine disse cabisbaixa.
— Ainda quer almoçar comigo? Você não é obrigada a ir, posso te levar no seu trabalho.
Francine não respondeu, irritando novamente a médica.
— Eu não vou ficar chateada, eu juro.
— Você já está.
— Prefere ficar aí na pensão?
— Você vai ficar ainda mais chateada comigo.
— Pelo amor de Jesus Cristo, Francine, se decida.
— Por que você mentiu para mim? — Criou coragem e perguntou, a fitando.
— Sobre o que?
— Sua namorada, vocês voltaram. Ou nem terminaram.
— Nós terminamos no final do ano e não voltamos, até onde eu sei.
— Vocês estavam juntas ontem.
— Sim, fui tomar um café com ela, porque Milena é uma pessoa agradável e sabe lidar de forma adulta comigo.
Francine abriu a porta do carro e saiu.
Clarisse ficou a observando de dentro do carro, ela não voltou à pensão, sentou nas largas escadas que havia na entrada. Aguardou cinco minutos, e nada aconteceu. Saiu do carro e sentou-se ao seu lado, não sem antes limpar o degrau com uma flanela.
— Você ficou bem com esse uniforme, o azul lhe cai bem.
Francine usava uma camisa polo azul royal com a marca da empresa bordada no peito e nas mangas, com calça jeans e cabelo preso.
— Por que você ainda gasta tempo comigo?
— E por que não?
Um instante de silêncio depois, Clarisse voltou a falar.
— Ainda dá tempo de almoçar aqui perto, depois te deixo na porta do seu trabalho.
— É na Paulista.
— Tudo bem, levo você lá. Vem?
Clarisse levantou e seguiu para o carro, Francine foi logo em seguida.
— Você disse que queria me ver. Por que? — Clarisse puxou o assunto.
— Porque eu estava com saudades. — Respondeu com a voz baixa, envergonhada.
— É uma forma bem estranha de demonstrar.
— Eu sou estranha.
Foram num restaurante simples ali perto, onde se serviram, novamente o prato de Francine era enorme, e o da médica quase nada.
— Como está sua vida nova? — Clarisse perguntou, já havia finalizado.
— Diferente.
— Está gostando da pensão?
— Mais ou menos, sinto falta de morar com meus amigos, lá sou só mais uma estranha, ninguém se fala.
— Quantas pessoas dormem no seu quarto?
— Eu e mais cinco garotas, mas são mais velhas, todas tem mais de vinte, tem uma mulher com uns quarenta também.
— E é cada um por si?
— Sim, o povo só dorme e guarda suas coisas lá, é bem diferente do abrigo.
— Então está com saudades do abrigo?
— Um pouco. Lá tinha meus amigos, tinha comida de graça, internet, e eu gostava de chegar do trabalho e ir no seu consultório dar um oi.
— Por causa do achocolatado que eu te dava às vezes, né?
— Com certeza! — Riu. — Só por esse motivo.
— Quem diria que você sentiria falta do abrigo.
— Ah, eu sei que lá não era um lar de verdade, mas foram seis anos convivendo com aquelas pessoas, hoje em dia estou por conta própria, se eu morrer atropelada na saída do trabalho ninguém vai perceber meu sumiço, vou ser enterrada como indigente.
— Pelo menos se morrer dormindo suas colegas de quarto perceberão o mau cheiro.
— Me sinto melhor sabendo disso.
— E o trabalho? Está gostando?
— É telemarketing, né? Mas não é tão ruim quanto imaginei, só tive umas três crises de pânico.
— Você vai conseguir se manter com o que ganha lá?
— Eu ganho mais que no banco, mas também trabalho mais, no banco eram quatro horas, no call center são seis horas. Acho que vai dar para pagar a pensão e o miojo de cada dia.
— Você estava brincando ou realmente você tem comido miojo diariamente?
— Quase todos os dias, não é tão ruim.
— Eu odeio miojo.
— Posso fazer um miojo para você, vai ficar tão bom que você nem vai perceber que é miojo.
— É verdade, esqueci que você tem dotes culinários. Tem assistido programas de comida?
— Tenho, e na internet também. Obrigada pelo notebook.
— E tem estudado?
— Tenho sim, pela manhã.
— Vai tentar engenharia civil de novo?
— Com fé em Deus.
— Que bom, quero te ver num banco de faculdade ano que vem.
— Eu não tenho muitas chances, né? Só filhinho de papai entra lá.
— Você tem chances, você é inteligente e está determinada a entrar, mas vai ter que lutar muito.
— Eu sei... — Terminou o suco e olhou o relógio. — Acho que temos que ir.
— Sim, vou lá pagar e já sairemos.
— Vou com você.
Na fila do caixa, as mãos se esbarraram, Francine pediu desculpas.
— Esse é o tipo de coisa que não precisa pedir desculpas. — Clarisse murmurou.
— E se eu esbarrar de propósito? — Francine roçou sua mão na mão da médica, discretamente.
— Daí eu prendo sua mão para não esbarrar de novo. — Respondeu sem tirar os olhos do caixa, segurando a mão dela, que deixou escapar um sorriso nada sutil.
— Eu não vou achar ruim. — Surpreendeu a médica levando sua mão até a boca e beijando rapidamente.
Clarisse infelizmente precisou de sua mão para fazer o pagamento. Chegaram no prédio onde Francine trabalhava minutos depois.
— Você tem quatro minutos para bater o ponto. — Clarisse viu as horas no visor do carro.
— Tempo de sobra. Obrigada pelo almoço, e pela carona.
— Quando quiser variar o cardápio do miojo, me fala que a gente sai para almoçar.
— Valeu. — A jovem fez menção de abrir a porta, mas recuou. — Posso te convidar para sair nesse final de semana?
— Não posso, esse final de semana já está comprometido.
— Vai sair com Milena?
— Não.
— Me disseram que você estava beijando ela ontem.
— Seu espião é mentiroso ou cego, não houve contato físico nenhum além de um abraço de despedida.
— Eu não estou pedindo explicações, não tenho esse direito, só fiquei bolada, mas daí já é problema meu.
— Se tiver dúvida de algo, pode me perguntar.
— Tá certo.
— Que horas você sai sexta?
— Às sete.
— Posso passar aqui e te pegar para a gente comer algo?
— Claro!
— Vai lá, você tem um minuto agora.
— Valeu, doutora, até sexta.
Por algum motivo Clarisse achava que ganharia um beijo de despedida, mas não ganhou nada, apenas um aceno já fora do carro. Logo ela que gostava que as coisas caminhassem devagar, dirigia de volta ao abrigo desejando que Francine ousasse mais da próxima vez.
Fim do capítulo
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Zaha
Em: 28/01/2023
Oieeeee,
Uma relação é sempre complicado quando duas pessoas passaram por situações difíceis. Não são elas que brigam, são seus traumas que as levam a agir de certa forma.
Clarisse é mais madura, mas nem por isso não pode errar, sofrer e saber o que fazer, mesmo pq é uma relação com uma pessoa com muitas questões a resolver. E sim, ela tem uma doença. Se debe relevar isso pq muda a personalidade. A pessoa fica confusa, qualquer coisa tica bolada. É insegura pq a vida a fez assim pq acha que não merece ser feliz ou que uma pessoa como Clarisse tenha que ficar c ela ou a veja. Quem a vê?? Ela acha que ninguém. No abrigo ela se sentia parte pq todos se pareciam...se encaixava mais... E tá o gato de incertidumbre da sua vida adulta...
Bem, essa relação vai ter alto e baixos, é assim! Se Clarisse quer ter uma relação, vai ter que aceitar isso. Senão, se distancia.
Eu gosto que ela e Milena possam ter uma relação pacífica. Acrdito que se possa , já que terminaram em bons términos!
Bem, não devemos refutar a visão de outros, pois Matheus só viu uma parte, concluiu e falou. Mas houve um pouco de maldade TB. Já q ele queria a psiquiatra.
Sabrina não gosta quando ela namora,pois ela quer q Clarisse sogra pela perda do filho, a faz sentir melhor. Como uma punição e algo de afeto TB. Um comportamento muito comum.
Beijos

Dessinha
Em: 27/01/2023
Tanto Clarisse quanto Francine estão se tornando cansativas, Clarisse já levou muitas e acabou assim, querendo que aconteça mas deixando levar.. e Francine nessa de medinho, inseguranca e tal. Compreensível, mas bota pra frente porque o tempo delas está passando rápido. Como Francine ainda tem medo de tocar na mulher se ela a beijou duas vezes? E a Fran nem lembra disso mais?
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