Capitulo 9
Capítulo XIX
— Você disse que tinha música ao vivo nesse restaurante. — Clarisse questionava Miriam.
Ambas estavam acompanhadas de suas respectivas namoradas jantando numa sexta-feira chuvosa em São Paulo. Clarisse estava frustrada por não ter conseguido ir ao cinema com Francine naquela semana, e estava achando isso estranho demais, por isso estava gostando da ideia de ocupar a mente com sua namorada e suas amigas.
— Vai começar mais tarde um arrocha.
— Que??
— Tô brincando, vai ter alguma sapa tocando violão provavelmente.
— Quer que eu escolha o vinho, amor? — Milena disse pousando a mão sobre o braço da médica.
— Você é a entendida de vinhos aqui, deixo em suas mãos.
— E eu só sei dizer se o vinho é claro ou escuro. — Claudia disse.
— E eu só entendo de beber. — Miriam zombou.
O celular de Clarisse tocou, era Sabrina. Levantou para falar com ela numa área externa dos fundos.
— Liguei na sua casa e ninguém atendeu, não está em casa?
— Não, eu saí para jantar. Aconteceu algo?
— Só para avisar que João tá gripado, vou mandar os remédios na mochila dele amanhã cedo.
— Eu vou dormir fora hoje, então leve as crianças mais tarde, por volta das dez.
— Vai dormir na casa da Milena? Está sério mesmo?
— Sim, vou dormir na casa dela, mas amanhã de manhã já estarei de volta.
— Não posso ficar ao seu dispor, Clarisse, eu me programei para levar as crianças as oito, não as dez, agora você quer que eu altere minha vida por causa da sua vida sexual.
A psiquiatra sentou num banco de ferro e não respondeu de imediato.
— Não sei se posso levar as dez, eu ligo amanhã. — Sabrina continuou.
— Já que estou em São Paulo eu passo aí amanhã e busco as crianças, melhor assim? É caminho.
— Faça como achar melhor, os filhos também são seus, espero que não esqueça de suas responsabilidades agora que está de namorada nova.
— Eu seis quais são minhas responsabilidades, não se preocupe.
— Se fosse responsável mesmo ainda teríamos três filhos.
Um nó subiu na garganta da médica.
— Eu já pedi para você parar com isso.
— Se você não se importa mais e já superou, sorte sua.
— É claro que não superei, nem nunca vou superar, mas não é momento para falar disso.
— Tá certo, não quero estragar sua noite romântica, aproveite enquanto você não arruína tudo.
— Mande um abraço para Renata, boa noite.
Expirou o ar longamente, Sabrina sugava sua energia e bom humor, tinha vontade de ir embora e se trancar no quarto. Queria uma dose de injeção de ânimo, e ela sabia como conseguir, mas sabia também que não deveria. Relanceou os olhos para dentro do restaurante e viu ao longe sua mesa, onde as mulheres conversavam. Fez uma ligação.
— Oi, docinho.
— Oi, doutora! — Respondeu animada do outro lado.
— Só liguei para dar um boa noite.
“E te ouvir um pouco.”
— Agora sim terei uma noite massa, ganhei um boa noite da doutora mais foda que conheço.
Era o primeiro sorriso da noite.
— O que está fazendo?
— Lendo o livro que você emprestou.
— Qual?
— Na ponta dos dedos.
— Plena sexta-feira à noite e não quis sair para badalar com os amigos?
— Não tava na vibe, e está chovendo, não dá para sair com o skate.
— Espero que melhore e você possa sair com seu skate amanhã, também vou levar as crianças numa praça para elas brincarem de skate.
— Mas para mim skate não é brincadeira, eu curto pra valer.
— Eu sei, para eles é só distração, ninguém vai ficar fera como você.
— Você nunca me viu andando, nem fazendo manobras.
— Percebi que você é expert no assunto.
— Sou nada. Você também estava lendo, né?
— Estava sim. Está gostando do livro? Já chegou na parte da reviravolta?
— Já passei, a moça já está no hospício, tenho medo de acabar como ela.
— Você não teria motivos para ir para um hospício.
— Nem ela, mas está lá trancafiada. Tomara que ela consiga fugir, ela está tentando fazer uma cópia da chave, é verdade que dá para fazer cópia de chave assim? Afundando a chave numa barra de gordura?
— Dá sim, hoje em dia as pessoas afundam a chave em sabonetes, ou argila.
— Que da hora.
— Isso é crime, não esqueça.
— Mas é bom saber disso, vai que eu precise.
— Tá bom, fugitiva de hospício, voltarei aqui para meus papéis.
— Vai lá.
— Que bom que está gostando do livro, fique bem.
— Boa noite, Doutora Clarisse, não durma em cima dos livros, eles são caros.
— Pode deixar.
Esperou alguns segundos até desfazer sua expressão abobada e retornou para a mesa. Milena estranhou a demora.
— Era Sabrina?
— Sim, eu vou passar lá amanhã para buscar as crianças.
— Vai dormir comigo, não vai?
— Vou sim. — Clarisse lhe deu um beijo. — O que eu perdi?
— Estávamos falando sobre o casamento de Julinha.
— Quando é mesmo o casamento de sua sobrinha?
— Daqui duas semanas, estou ajudando na organização. Vou adorar ter você lá comigo.
— Milena estava falando sobre o tamanho da festinha, coisa de cinema. — Miriam disse.
— Vai ser uma festa grande?
— Mais ou menos, mas os pais dela não está poupando esforços, nem dinheiro.
— Também pudera, é filha de um juiz e uma desembargadora, meio milhão para esse pessoal não faz falta.
— Não é bem assim, rainha do exagero. — Clarisse brincou. — Mas agora entendo porque você a contratou.
— Pois saiba que ela é uma ótima estagiária, foi a que se saiu melhor nas entrevistas. E não estou falando isso por causa da presença da tia dela nesta mesa.
— Eu sou uma tia coruja, Julia é uma excelente estudante, fala mais idiomas que eu. — Disse Milena.
— É uma boa menina, sim.
— E graças a ela conheci vocês. — Milena disse dando um beijo no rosto de Clarisse. — E essa pessoa que tomou meu coração de assalto.
— Vocês estão cada vez mais fofas. — Disse Claudia. — Já sei onde isso vai dar.
***
Clarisse não estava num dia bom, era quinta-feira e Sabrina havia ligado dizendo que as crianças não passariam aquela noite com ela, porque João estava pior da gripe, e a culpou pelo final de semana ao ar livre. Naquela tarde não tinha mais nenhum atendimento, pensou em ir embora, mas iria contra seus princípios de fugir dos problemas. Não queria ficar trancafiada no consultório, mas também não queria ir para a sala de convivência dos funcionários. Sentou num banco de concreto em frente à quadra do abrigo, que estava vazia. Segurava uma caneca de café.
— Quem está ganhando o jogo? — Francine sentou ao seu lado.
— O time invisível já fez dois gols no time que não veio.
— Prefiro o time dos fantasmas contra os ninjas.
— Deve ser um excelente embate.
— Deu formigas no seu divã?
— Que?
— Pra você estar aqui fora.
— Ah. Cansei de ficar lá dentro, e não queria conversar com ninguém.
— Opa, foi mal. — Disse se levantando.
— Não, pode ficar. O jogo ainda não acabou.
— Beleza.
Contemplaram a quadra vazia por um momento, Clarisse bebeu o café, mas já estava frio e fez uma careta.
— Quer que eu busque café? — Francine se ofereceu.
— Não, obrigada, já bebi café demais hoje. — Olhou rapidamente para o lado. — O verão chegou mais cedo para você, hein?
— Ah, eu curto shorts.
— É, já percebi.
— Você acha vulgar?
— Não, cada um usa o que quer.
— Você não usa shorts?
— Uso. Menos que você, mas uso.
— Não consigo imaginar você de short.
— Sou um alienígena por acaso?
— Só consigo ver você assim toda séria, elegante. Nem com calça jeans consigo imaginar você.
— Você precisa me ver em dia que resolvo limpar a casa, seria um choque.
— Adoraria ver você toda desmazelada.
— Aposto que não.
Francine riu, o humor da médica melhorava.
— É estranho ver você triste, na minha cabeça os psiquiatras e psicólogos nunca ficam tristes, porque eles sabem tudo sobre ser feliz e o que fazer quando algo ruim acontece.
A médica a fitou por um instante, não sabia o que responder.
— Mas você parece triste. — Fran emendou.
— Estou chateada, na verdade. Fico contente em saber que você está percebendo que sou tão humana quanto você.
— É, eu venho percebendo isso. Adoro quando a gente se fala a noite, nunca fiz amizade com funcionários do abrigo.
— Você sabe que pode contar comigo, dentro e fora daqui.
— Eu sei. Por isso te acho foda, você é diferente.
— Você também é foda. — Clarisse respondeu num meio sorriso.
Foi a vez de Francine a observar discretamente por um instante. Havia árvores frondosas naquela área, formando uma sombra dançante de folhas nos semblantes de ambas.
— Aquele lance do cinema ainda tá de pé? Meu salário saiu, eu falei com Amanda, ela topou, a gente poderia ir no final de semana.
— Podemos ir semana que vem, nesse final de semana ficarei com os meninos.
— Seus filhos moram com o pai?
— Moram com a outra mãe.
— Que outra mãe?
— Minha ex-esposa.
Francine a fitou boquiaberta, sem sequer tentar disfarçar a surpresa com a informação.
— Esposa?? Mulher?
— Você não sabia, não é? — A médica falava com naturalidade.
— Claro que não, eu nunca desconfiei. Puta que o pariu... — Virou-se para frente, fitando o chão ainda em choque.
— Muda algo para você?
— Porr*... Muda.
— Negativamente?
— Não. — Virou-se novamente para o lado. — Meu, você é como eu, você me entende, isso é muito massa.
— Eu já passei pela fase que você está passando, mas comigo foi mais tarde.
— Com quantos anos?
— Desde a adolescência que eu me sentia atraída por garotas, mas nunca dei atenção para isso, eu não cogitava essa possibilidade. Então eu casei com meu namorado, nos divorciamos três anos depois, assim que me formei na faculdade.
— Você teve um casamento com um homem e um com uma mulher? Você gosta das duas coisas?
— Não, só de mulher. Eu me descobri homossexual durante meu casamento com Marcos, depois dele nunca mais fiquei com homens.
— Seus filhos são dele?
— Não, são do segundo casamento, com Sabrina, ficamos nove anos juntas.
— Nossa senhora, nove anos??
— Tempo demais para um casamento?
— Depende, vocês ainda se gostam?
Clarisse abriu a boca ensaiando as palavras, mas desistiu.
— É complicado, Fran.
— Você ainda gosta dela e não é correspondida?
— Não, não é isso. Nosso casamento terminou de uma forma péssima, não temos um bom relacionamento hoje em dia, nem conseguimos ser amigas, só mantemos contato por causa da guarda compartilhada.
— Alguém traiu alguém?
— Não, outro dia eu conto mais sobre isso, tá bom?
— Tava bom demais para ser verdade, você falando tanto assim sobre sua vida para mim. — Riu.
— Contei um monte de coisas, não acha? Até saí do armário para você.
— Ninguém aqui sabe?
— A direção e alguns funcionários sabem, eu deixei isso bem claro quando entrei aqui.
— Você é corajosa, eu morro de medo que Padre Agnaldo descubra sobre mim, e olha que nunca fiz nada com ninguém.
— Ele não faria nada com você, eu não permitiria nenhuma retaliação ou tratamento diferenciado aqui dentro, por conta de orientação sexual.
— Tem mais gente assim no abrigo?
— Tem sim, mais do que você imagina.
— Quem?
— Claro que não vou te contar, né sabichona?
— Bom, tentei.
— Você não tem aula? Vai dar cinco horas.
— Tenho, vou daqui a pouco.
Francine olhou para a médica com um sorriso aberto, meio incrédulo.
— Por que você tá me olhando assim?
— Putz, eu ainda não tô acreditando.
— Com o tempo você se acostuma com essa informação.
— Eu tô passada, sério, eu nem sei o que pensar.
— Não continuo sendo a mesma pessoa para você?
— Não, você é bem mais legal do que eu imaginava.
— É só um detalhe da minha vida pessoal. E eu espero que você guarde isso para você.
— Não esquenta, segredo guardado. — Selou os lábios com os dedos.
— Eu sou assumida, não escondo minha orientação sexual de ninguém, mas também não quero sair espalhando por aí, nem que alguém saia espalhando, não tem motivos para isso, não quero ver ninguém especulando minha vida íntima.
— Fizemos isso quando você chegou no abrigo, ficamos um tempão especulando, Matheus era o mais interessado, ele ainda gosta de você.
Clarisse suspirou e tomou a caneca de cima do banco.
— Espero que isso passe. Vou subir para minha sala, e você vai se preparar para ir para a aula, ok?
— Eu posso matar a primeira aula.
— Pode, mas não por minha causa.
— Hey, posso continuar te mandando mensagens?
A médica apenas balançou a cabeça.
— Massa!
— Boa aula, Fran.
Fim do capítulo
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patty-321
Em: 17/12/2022
A Sabrina foi n ferida e a Clarisse entra pq ainda se sente culpada, como será q elas perderam o filho? Muito triste.
Resposta do autor:
a Sabrina precisa de ajuda profissional para lidar com a perda, não fez o luto que precisava, daí fica assim. Mas é bem triste mesmo.
Abraços!
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Marta Andrade dos Santos
Em: 14/12/2022
Escrota essa Sabrina, acho que Milena vai dançar nessa.
Resposta do autor:
Milena é tudo q Clarisse precisa, mas não é bem o q ela quer...rs
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Zaha
Em: 13/12/2022
Oieeeee,
Nossa, já comecei rindo de Clarisse or achado estranho estar FRUSTRADA por no ir ao cinema com Fran kkk. Irónico que ela n desconfie o oq...claro, é difícil ver quando estamos envolvidos...
Mas essa Sabrina me tira do sério....ela namora bem antes de Clarisse e a mesma sempre tem q tá nos tempos dela e Clarisse tem q viver assim. Nem sequer mudou MT os planos e a mulher nada ..fica culpando ainda nas atitudes...o rancor que tem....mas nada justifica por tanto tempo essa raiva... parece até que n gosta que Clarisse tenha relação...pela frase q usou....alterar a vida por sexo, Clarisse q faz sempre as mudanças da sua vida. Clarisse tem q dá um jeito...um advogado.
Quero saber pq ela tem que ficar c os filhos e n Clarisse....Clarisse deixou? N se sente capaz ou se sente mais culpada com Sabrina jogando a culpa nela todo o tempo que faz ela ter medo e pensar que pode acontecer outra vez o q passou.... Definitivamente acho que Sabrina só quer q ela.sofra pq ela TB sofre, então esculpe onde mais dói...
Eita, primeira mentira de Clarisse pra Milena .n sei oq ela n contou quem era no telefone, mas acho q nem ela sabe....
É fácil essa interação de Clarisse com Fran...tem uma química, mas não digo no sentido sexual...mas uma faz bem a outra !!! Mais admiração...
Fran ficou surpresa quando soube que Clarisse TB é lésbica... fiquei rindo com o jeito de falar dela.Agora a admira ainda mais!!
Vamos ver!! Cuirosa pra saber sobre o filho perdido....morta aqui!!!
Beijosss
Resposta do autor:
Qdo doutora clarisse perceber o q tá sentindo, daí estará bem lascada... rs É tão improvável q até ela mesma não acredita no q ta rolando.
Sabrina tem uma tonelada de mágoa no coração mas não sabe lidar nem procurar ajuda, daí faz essas coisas.
Qdo francine soube q a doutora é lésbica foi como ganhar na megasena hahahha
beijos!!
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Gio
Em: 13/12/2022
Capítulo com direito a menção a outra história xD
Tomada de Assalto!
Adoro quando tem essas coisinhas no meio do texto.
Nossa, Sabrina é tipo assim um castigo, que pessoa amarga. Ela deve ter dificuldade de procurar terapia tendo ex-mulher psicóloga e a responsabilizando pelo quer que tenha acontecido com o filho, mas que tenso, bem dementadora.
Essa energia que Clarisse tem de trocar mensagens e apresentar coisas pra Francine... perigosa.
Coitada da Francine, agora sim ela vai perder o chão nesse crush, só o fato de estar recebendo atenção já tinha potencial pra deixá-la vulnerável, mas a atenção extra e o conhecimento de que Clarisse realmente a entende nesse aspecto aí... tenho dó rsrsrs
Tá muito bom Cris =)
Resposta do autor:
Um pequeno easter egg ;)
Sabrina não sabe lidar com a perda, não se interessa em procurar ajuda, é muita mágoa guardada, daí fica assim dando essas patadas. Sabe q em determinado momento até pensei q seria pq ela ainda ama Clarisse, mas depois vi que não era isso, é só falta de luto.
Será q temos duas paixonites em andamento? alguém tem q ser adulto ali... rs
Abraços!
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