Capitulo 6
Capítulo VI
— Milena me ligou hoje. — Miriam disse entre as garfadas, almoçava com Clarisse naquela sexta-feira. — Queria falar sobre você.
A médica parou o copo de água com gás no ar, fitando a amiga à sua frente.
— O que ela queria saber?
— É confidencial. — Riu. — Não se preocupe, não falamos mal de você.
— Sério, Miriam, o que ela disse?
— Relaxa, ela só queria dar uma sondada sobre você, as possibilidades e tal. Ela tá a fim, você deve saber disso melhor que eu.
— E o que você disse?
— Que você tinha um rígido protocolo para relacionamentos amorosos, que ela precisaria seguir sua cartilha.
— Você realmente falou isso?
— Com outras palavras. Ela compreendeu, a moça só está com medo de quebrar a cara, só isso.
— Eu também tenho medo de quebrar a cara, mas não saio perguntando sobre minhas pretendentes para terceiros.
— Encare isso como uma prova de amor. — Riu por trás do copo de vinho.
— Amor? — Clarisse também acabou rindo. — Após dois encontros? Você inventa cada uma.
— Vai continuar saindo com ela? Curtiu a moça?
— Sim, vamos inclusive sair hoje, Milena é uma ótima companhia, é divertida, culta...
— Depois envio a conta dos meus honorários como cupido. — Disse convencida.
— Se der certo. Bom, espero que dê certo, gostei dela, mas vou com calma.
— Ela é maravilhosa, é um partidão, eu consigo imaginar vocês duas juntas, passeando com as crianças, ela te ajudando a limpar as coisas quando você tiver surtos de limpeza, fazendo viagens sexuais pela Europa...
— Viagens sexuais? — Interrompeu.
— Há quanto tempo você não faz sex*?
— Desde que terminei com Luciana.
— Isso tem o que, seis meses?
— Oito meses.
— Você está oito meses sem sex*, espero que isso acabe hoje.
— Não estou sentindo falta, me ocupo com outras coisas.
— Ahan, seu estoque de vibradores não conta.
— Fale mais alto, acho que lá do outro lado do restaurante não te ouviram.
Miriam apenas riu.
— Bom, adoraria passar a tarde conversando sobre minha vida sexual, mas...
— Vida não sexual, você quer dizer. — Interrompeu.
— Mas tenho que voltar para o abrigo, Francine quer conversar comigo quando chegar do trabalho.
— É a terceira vez que você fala dessa menina hoje, devo me preocupar?
— Se você acha preocupante uma médica querer atender um paciente, então sim.
— Ok, um dia você me conta porque essa paciente é mais especial que os outros.
— Ela não é.
— Tudo bem, só não caia na besteira de assumir interno como se fosse seu filho, lembrem-se que você não tem culpa deles não terem pais, você não pode ser mãe de todos os coitadinhos do mundo.
— O que você disse não faz o menor sentido, eu sei separar as coisas.
— Tudo bem, doutora Clarisse, vá cuidar de suas crianças, sobreviverei com sua ausência.
— Você paga hoje. — Clarisse disse e levantou-se, despediu-se da amiga e voltou correndo para o abrigo.
***
Francine sofria de uma certa fobia social desde a infância, o TAS (transtorno de ansiedade social) se intensificou assim que as responsabilidades da vida adolescente começaram a surgir. Pessoas como Francine tem uma visão negativa de si mesmas, acreditam que estão sendo julgadas sempre que tem interações sociais, vem daí a ansiedade elevada ao estar rodeada de pessoas.
Mesmo quando em companhia de apenas uma pessoa, prestam atenção em pequenos trejeitos, palavras, até mesmo um movimento de sobrancelha do interlocutor pode desencadear os sintomas, trazendo a sensação de julgo e negatividade. A cicatriz no rosto piorava tudo.
Alguns gatilhos ativavam a insegurança de Francine, como certos questionamentos e lembranças de situações ruins ou traumáticas. Algumas vezes o TEI (transtorno explosivo intermitente), também conhecido como transtorno do pavio curto, era o que se manifestava, explosões por motivos pequenos, irritação exagerada com coisas que parecem comuns para outras pessoas.
Teve uma dificuldade enorme em conseguir parar num emprego, suas crises custavam dias de trabalho, e consequentemente sua demissão. Às vezes simplesmente ia embora do local de trabalho quando sentia-se aniquilada, assustada na lida com pessoas. Seu emprego no banco era temporário, teria que sair quando completasse 18 anos, no final do ano. Estava batendo um recorde, já há cinco meses no mesmo emprego, gostava de lá por lidar apenas com um pequeno grupo de funcionários, não lidava com clientes, ajudava no setor financeiro com sua facilidade com cálculos.
— Se importa de me dar um abraço? — Francine pediu timidamente após entrar no consultório, antes de sentar no sofá. — É que eu gostei do abraço que você me deu no seu aniversário.
— Não, não me importo. — Reagiu com surpresa ao pedido, levantou-se e foi na direção da garota, a abraçando.
— Valeu, doutora. — Respondeu sorridente, e finalmente sentou no sofá.
A médica sentou na poltrona, Francine foi logo pedindo.
— Tem como você sentar na sua cadeira? Porque você sentada aí fica parecendo terapia, coisa profissional.
— Como queira.
— Já cheguei pedindo um monte de coisas, né? Foi mal.
— Não sabia que você gostava de abraços, achei que você preferisse manter distância das pessoas em geral.
— Por que você achou isso?
— Pelo que pude te analisar nesses quarenta dias de convivência, percebi que você não gosta que toquem em você.
— Eu não gosto mesmo, odeio quando chegam pegando, tocando no braço, abraçando.
— Seria então uma questão de iniciativa? Você só gosta quando a iniciativa é sua?
— Ah... Mais ou menos. Na real a gente aqui não tem o costume de dar abraços, e lá em casa também ninguém tinha esse costume, mas achei o seu abraço bom.
— Pode contar com ele sempre que quiser.
— Mesmo?
— Você sabe como me achar.
— Massa. — Respondeu empolgada.
— Tem algum assunto específico que você queira conversar hoje?
— Não, eu deveria ter?
— Não, é que pelo jeito como você falou ontem, parecia que tinha algo.
— Eu só estava animada por você topar papear comigo sem ser numa sessão.
— Você não conversa com seus amigos? — Disse erguendo uma sobrancelha.
Francine encarou a médica em silêncio, seu rosto ruborizado e as mãos suadas denunciavam que algo saíra do controle, as palavras de Clarisse dispararam o gatilho da insegurança, o medo de não ser bem-vinda ali.
— Eu sinto muito, eu não deveria ter vindo, estou fazendo você perder tempo. — Levantou e saiu do consultório.
— Francine? Fran?
Clarisse a chamou, sem retorno. Levantou da cadeira e foi atrás dela, mas havia a perdido de vista. Desceu as escadas e foi até o quarto, ela não estava lá.
Ligou para seu celular, mas não foi atendida. Mandou SMS, perguntando o que havia acontecido. Voltou ao consultório, atendeu um paciente depois, e mais um. Mandou mais dois SMS, ligou de novo.
Estava saindo do prédio quando encontrou Amanda chegando, perguntou por Francine, explicou o que tinha acontecido.
— Bom, se ela não está debaixo da coberta na cama, então deve estar na caixa d’água.
— E onde fica isso?
— Lá em cima, tem que subir uma escada por fora para chegar lá. Quer que eu a procure?
— Não precisa, querida. — Consultou as horas, já passava meia hora do fim de seu expediente. Eu cuido disso, obrigada.
Guardou sua bolsa de volta no consultório e seguiu o caminho indicado por Amanda, quando chegou ao telhado, tinha ainda uma escada rente ao reservatório cilíndrico de concreto para subir. Olhou seus trajes inadequados para uma aventura, mas por sorte não estava trajando saia, e sim uma calça social. Venceu seu medo de altura e subiu a escada, ficou contente por não ventar muito naquele final de tarde.
Assim que pisou no alto daquele reservatório sentiu uma vertigem, respirou fundo e olhou ao redor. Lá estava a paciente fugitiva, deitada com a cabeça sobre a mochila, de olhos fechados, fones de ouvido e um cigarro aceso na mão.
Aproximou e sentou no chão ao seu lado, a observou por um minuto. Engraçado como já não via aquela cicatriz no rosto como um defeito, tornara-se parte da fisionomia daquela garota que, sem entender direito como, despertava sua atenção. Será que Miriam tinha razão, e estava querendo adotar todos os órfãos ao redor? Mas não era esse tipo de sentimento que preenchia sua alma quando estava ao lado de Francine, era diferente.
— O que você está ouvindo? — Clarisse perguntou ao tirar um fone do ouvido da garota.
Francine pulou para o lado com o susto, depois sentou-se, fitando de forma assombrada sua terapeuta.
— Estava testando sua resistência cardíaca, você está ótima. — Clarisse zombou.
— O que você está fazendo aqui? Mandaram me buscar? — Respondeu na defensiva.
— Você deixou cair isso. — A médica juntou o cigarro do chão, lhe entregando.
Francine pegou rapidamente e apagou no concreto.
— Vai contar sobre isso para a direção? — Disse olhando para o cigarro amassado.
— Não, não vou. Só vim dar uma olhada se estava tudo bem, eu devo ter disparado algo ruim em você sem querer, não foi?
Não respondeu, baixou a cabeça hesitante.
— Me desculpe, não foi minha intenção te afugentar. — A médica continuava. — Eu ainda estou te conhecendo, não conheço todos os seus pontos de gatilho.
— Se você parasse de me tratar como paciente o tempo todo talvez me conhecesse melhor. — Respondeu emburrada.
— Você acha que venci minha acrofobia para fazer uma sessão aqui em cima?
— Acrofobia é medo de aranhas?
— Não, medo de altura.
— Ah, tá. Faz mais sentido. Eu gosto de altura, dá um medo gostoso. Vou lá na beiradinha e fico olhando as pessoas andando lá embaixo, é a visão mais legal das pessoas.
— Por que?
— Porque estou vendo de cima, elas não sabem que estou olhando, é como se eu fosse invisível. Matheus e Pablo às vezes jogam ovos, mas eu nunca joguei.
— Isso não é nada legal, jogar ovos nas pessoas.
— Eu sei, tá errado. Quer ir lá? — Disse apontando para fora.
— Não, obrigada, prefiro ficar aqui no meio.
— Não precisa chegar bem na borda.
— Já está escurecendo, acho inclusive que nós duas deveríamos descer.
— Eu tô acostumada a ficar aqui à noite também.
— Mas não é seguro, querida.
— Ainda não morri, morri?
— Bom, eu não estou acostumada a descer isso à noite, então vou embora.
— Não, espera.
— Vai descer comigo?
— Não, mas queria te contar uma coisa, na verdade te pedir um conselho, você é experiente, deve entender dessas coisas.
— Pois não.
— Matheus tá me enchendo o saco, ele tá insistindo para trans*r comigo, tá ligada? Ele já insistia antes, mas ficamos de novo na quarta-feira e quase rolou, agora ele tá me pressionando.
Clarisse sentiu algo estranho por Matheus, mas rapidamente tomou controle da situação e tomou cuidado na escolha das palavras.
— E qual exatamente seria o conselho que você quer?
— Você acha que eu deveria dar logo para ele e perder a virgindade? Acabaria de uma vez com essa neura que eu tenho de que fiquei para trás porque ninguém me quer, e também resolvo com Matheus, ele vai parar de me encher o saco.
— Acho que ele vai te encher o saco com maior frequência, mas não tenho como prever o comportamento dele.
— Tá, mas, e eu?
— Você está se sentindo segura para fazer isso? Tem vontade de fazer?
— Não, não quero dar pra ele, mas acho que eu ficaria menos bolada, me sentiria mais igual às minhas amigas.
— Não há necessidade de ter pressa, você terá a vida inteira para fazer sex*. Não ligue para o que os outros pensam sobre isso, lembra que eu falei que sua liberdade é sua? Seu corpo é seu, só faça o que você tiver vontade.
— Eu ando com muita vontade de fazer sex*, eu não me sentia assim até pouco tempo.
— Fazer sex* com Matheus?
— Não, claro que não.
— Com garotas?
— É. — Respondeu envergonhada. — Mas eu tenho esperança que eu tome gosto pela coisa, sabe? Quem sabe dando pra um cara eu perceba que estava errada, que eu curto homem e pronto, vai ser uma merd* a menos na minha vida, sigo minha vida normal de hetero em paz.
Clarisse deixou de fitá-la, olhou o chão e soltou um suspiro pensativo. Lembrou de suas próprias inseguranças na adolescência, das amigas se descobrindo depois, das mulheres e homens que abafaram a sexualidade em nome da normatividade imposta pela sociedade. Temeu por Francine seguir este caminho.
— Não é assim que funciona. Mas não posso orientar você a fazer ou deixar de fazer algo.
Francine lançou um olhar decepcionado para sua tutora, queria ouvir um sim ou não dela, tirar a responsabilidade da escolha de suas costas.
— Eu queria tanto conhecer outras pessoas como eu... — Resmungou.
— Você poderia esperar um pouco, quem sabe você conhece alguma garota e goste dela, ela também goste de você, e você tenha uma experiência por vontade própria, com prazer.
— Nenhuma garota legal vai gostar de mim, eu sou uma aberração.
— É bem provável que neste exato momento pelo menos uma dúzia de garotas estejam a fim de você, mas você não percebe porque não acredita nessa possibilidade.
— Isso é papo de auto ajuda, ninguém olha para mim.
— Não, é cegueira sua.
— Se você fosse sapatão olharia para mim? Eu teria alguma chance?
— Eu já disse, não faço seu tipo.
Francine bufou chateada, esfregando a sola já gasta de seu All Star vermelho contra o concreto.
— Tô de saco cheio de ser patética... — Murmurou.
— Eu já conheci um bocado de pessoas patéticas, e você definitivamente não é uma.
— Deixa pra lá, doutora. — Levantou-se do chão, tomando a mochila. — Vamos puxar um bonde hoje, se rolar, rolou.
— O que é puxar um bonde? — Clarisse ergueu-se também.
— Ir num baile funk.
— Você curte?
— Curto mais pra ir e dançar, não é o que ouço geralmente.
— Você não me respondeu o que estava ouvindo quando cheguei.
— Rádio, ouço rádio o dia todo, curto todo tipo de música.
— Também gosto de ouvir rádio de vez em quando, tem umas rádios estrangeiras bem legais.
— Como você ouve?
— Pela internet.
— Massa. Eu adoro conhecer músicas, nova ou velha.
— Vamos descer? Você será minha guia de descida de escadas.
— Valeu pelo papo, doutora. — Estendeu a mão para um cumprimento jovial.
Clarisse correspondeu, apesar da falta de jeito. Apressou o passo quando lembrou do compromisso com Milena.
Fim do capítulo
Meus sinceros agradecimentos pelos comentários e leituras! Colocarei os comentários em dia no final de semana ;)
Obrigada!
Comentar este capítulo:

Zaha
Em: 02/12/2022
Ooeeei, Schwinden!!!
Bem, Clarisse parece tá curtindo Milena...dando mais espaço!! Ainda n partiu pro 2 momento, mas ,aos poucos vai confiando.
Clarisse tem realmente um interesse diferente em Fran como Miriam disse. Mesmo com medo foi procurá-la ..subiu e td!!!
Fran se descobrindo, nessa etapa que n sabe o que fazer, se o que sente está bem ou n...
Tem que ter cuidado com o que se diz a Fran, é MT importante saber cada palavra ou expressão. N é fácil conviver pq requer saber certos detalhes e a pessoa th sofre, mas é assim que se vive mesmo. Interpretando algo que ng sequer imagina e às vezes perturbam pessoas que padecem dessa Patologia, colocando etiquetas. Temos que ver as patologias com seus sintomas sem colocar títulos como "louca". Sendo mais conscientes.Mas TB n definindo a pessoa por sua própria Patologia. Vamos ver como Fran vai amadurecendo e lidando com as adversidades que virão!!
Beijossss
Resposta do autor:
Gosto muito de um sitado q diz "quem procura, acha", Clarisse tá procurando sarna pra se coçar e vai cada vez se enrascar nessa.
Sim, sempre bom ter cuidado com os possíveis gatilhos, quanto mais se conhecer a pessoa melhor.
Estou evitando esteriotipar as pessoas com seus transtornos, caso vc veja algo q não ficou legal, pode avisar.
Abraços!!
[Faça o login para poder comentar]

Marta Andrade dos Santos
Em: 02/12/2022
Não é fácil em nenhum fase viver se fizermos o que os outros esperam de nós mas se nos afastamos o risco de nos perdemos é alto então é complicado.
Resposta do autor:
Pra gente já é complicado, imagina pra uma adolewscente? mil confusões na cabecinha...
Abraços!
[Faça o login para poder comentar]

Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]