Capitulo 4
Capítulo IV
— Doutora Clarisse? — Dona Neuza abriu a porta do consultório sem bater na tarde de terça-feira.
— Pois não, posso ajudar? — Clarisse respondeu enquanto limpava uma pequeníssima mancha de café em sua camisa branca de botões.
— Pode sim, é que tenho um compromisso e estou de saída, Carlota que é a orientadora não veio hoje, e Joana tá ocupada.
— E no que posso ser útil?
A senhora atarracada com vestido floral saiu da porta e puxou pelas mãos duas garotas contrariadas: Maria Paula e Francine, que estavam com as faces ainda vermelhas.
— Essas duas aqui brigaram no banheiro, é a segunda vez que chegam às vias de fato, a doutora pode ficar com elas um pouco? Dar uns conselhos, umas broncas, advertência, sei lá, qualquer coisa para ajudar a disciplinar essas duas meninas brigonas.
— Ela começou. — Francine foi logo se defendendo, além da cicatriz no rosto, havia um arranhão recente um pouco acima.
— Essa aberração tava me secando! — A morena tentou acertar um tapa na cabeça da outra, mas Dona Neuza as apartou. A médica se levantou rapidamente, intervindo também.
— Secando porr* nenhuma!
— Chega! — Dona Neuza gritou.
— Deixe comigo, vou conversar com elas. Uma senta aqui na poltrona, a outra senta ali no sofá. Dona Neuza, pode ir em paz para seu compromisso, eu fico com elas.
A loirinha sentou emburrada no sofá, foi empurrada por Maria Paula que se adiantou em sentar na confortável poltrona da psiquiatra, que ficou de pé no meio do consultório com as mãos na cintura após a diretora sair.
— Quem vai me explicar o motivo da briga? — Disse de forma firme em alto e bom tom, atraindo a atenção de ambas.
— Essa sapatona tá a fim de mim e não sabe se segurar, tava me olhando no banheiro. — Maria Paula explicou.
— Eu não sou lésbica, eu gosto de homem, eu tô ficando com o Matheus e tudo. — Defendeu-se, ainda emburrada.
— Você está ficando com o Matheus? — Clarisse não resistiu perguntar.
— A gente fica de vez em quando.
— O garoto ainda não percebeu que ela gosta de bucet*. — Gargalhou.
— Maria Paula, podemos conversar nós três de forma tranquila e mantendo um bom nível? Você consegue? — Ralhou a médica, ainda de pé. Usava uma echarpe azul, fazia um pouco de frio ali dentro.
— Claro que ela não consegue. — Zombou Francine.
— E você, consegue? Preciso de cooperação das duas.
— Eu não tenho nada para falar com ela. — Fechou a cara com a repreensão da médica.
— Ok. — Clarisse foi até sua cadeira atrás da mesa e sentou-se. — Maria Paula vai me contar a versão dela agora, sem interrupções.
— Eu tomei banho e estava me enxugando e me vestindo no banheiro, nem vi quando essa zinha entrou lá com a desculpa de escovar os dentes, quando olhei para frente ela estava me olhando, daí eu terminei de me vestir e fui tirar satisfações, ela engrossou logo de cara, partiu para a violência.
— Foi você que arranhou o rosto dela?
— Foi sim, mas ela também puxou meu cabelo, me empurrou, me bateu, acertou um soco na minha cabeça, aqui. — Apontou para a lateral da cabeça.
— Você foi apenas conversar e ela te agrediu?
— Sim, ela é louca, a sapatonice derreteu o cérebro dela.
Clarisse respirou fundo buscando paciência e dirigiu a palavra agora à outra jovem, que estava de braços cruzados e cabeça baixa.
— Francine, me conte agora sua versão.
— Não.
— Então a versão dela está correta?
— Não.
— Bom. — Espojou-se para trás. — Já que esclarecemos o ocorrido, vou enviar uma advertência para a direção informando sua conduta e pedindo a proibição de TV para você por um mês, certo?
— Um mês? Mas eu estou de férias, quero ver TV. — Francine manifestou-se.
— Você agrediu gratuitamente uma colega, esse é o mínimo que posso fazer.
— Ela me bateu primeiro!
— Como vou saber, eu não ouvi sua versão.
— Eu vou contar, mas não tire a TV.
— Então conte.
— Eu entrei no banheiro para escovar os dentes, percebi que ela estava se vestindo e continuei fazendo o que eu estava fazendo, dei uma olhada rápida para o lado porque ela estava demorando para sair dali, daí eu vi um monte de cortes e cicatrizes nos braços e pernas dela e acabei olhando, porque nunca tinha visto uma pessoa tão maluca assim a ponto se se cortar toda, eu não estava dando em cima dela nem nada do tipo, eu não curto isso.
— Você não tem nada com o que eu faço com meu corpo, sua vadiazinha! — Brigou Maria Paula, se erguendo da poltrona, a médica também se levantou.
— Sente-se, deixe ela terminar de contar a versão. — Clarisse pediu, com a mão no ombro dela, que sentou. A médica continuou de pé, recostada na mesa.
— E depois?
— Ela veio para cima de mim, me chamando dessas merd*s que ela sempre me chama, me peitou daí eu empurrei, ela veio com tudo, foi logo batendo no meu rosto com essas unhas de piranha, daí eu bati mesmo.
— Eu disse que queria manter o nível, Francine.
— Desculpe.
— Eu deveria ter feito mais umas vinte cicatrizes no teu rosto, aberração. — Maria Paula rosnou.
— Vamos entrar num acordo, para evitar que vocês sejam punidas?
— Eu só me defendi... — Resmungou Francine.
— Se não entrarmos num acordo vou encaminhar uma advertência com punição para as duas, e então?
— Que seja... — Maria Paula disse, dando de ombros.
— Já sabemos que Francine não está dando em cima de você, e que ela tem um problema com o controle da raiva. E já sabemos que Maria Paula tem um transtorno que a leva a se cortar. Vocês duas estão sob tratamento e tentando se livrar destes transtornos, e ficar brigando por aí não vai ajudar ninguém, concordam? Vocês precisam ficar em paz para poder melhorar. Semana que vem vocês vão entregar uma pesquisa sobre o transtorno da outra, e além de pesquisar por aí, quero que tirem as dúvidas entre si, que uma explique para a outra quais seus problemas. De forma amigável, ok? No restante do tempo, quero que evitem ficar no mesmo ambiente por alguns dias, e ninguém mais vai fazer piada com a outra, todo mundo aqui tem problemas e dificuldades, vocês deveriam estar se ajudando, não acham?
Ambas apenas balançaram as cabeças, concordando.
— Posso encerrar essa conversa? Prometem que não terão outra desavença?
— Eu vou continuar na minha. — Francine disse e levantou do sofá.
— Eu também só quero paz.
— Perfeito, que seja assim. E quero as pesquisas até segunda-feira que vem.
As duas estavam saindo da sala, quando a médica lembrou.
— Você fica, Francine. Você tem sessão comigo agora as três.
— Não tô a fim. — Disse na porta.
— Nós não precisamos falar sobre isso.
— Não tenho nada para conversar agora, quero ir para o quarto.
— Prefere se enfiar debaixo da coberta do que ficar um pouco comigo no dia do meu aniversário?
— É seu aniversário. — Se deu conta.
— É sim.
— Porr*, desculpe por isso. — Francine sentou no sofá.
— Tudo bem. Na copa dos funcionários tem uma torta pela metade e refrigerante, eu que trouxe, quer ir lá comigo?
— Quero. — Animou-se. — Que torta é?
— Floresta negra, é chocolate e chantilly com cerejas.
— Mas eu não posso entrar nessa copa.
— Você vai como minha convidada. Venha.
Já na copa, Francine devorava uma grande fatia da torta numa mesinha quadrada com banquetas, a médica bebia um café junto ao balcão da pia.
— Que bom que o casaco serviu. — Referia-se ao casaco cinza que ela trajava.
— E é bem quentinho, obrigada. Você dá casacos para todo mundo que precisa?
— Não.
— Esse ainda estava com a etiqueta.
— Sim, comprei quando estava vindo para cá. O verde era meu, mas eu usei poucas vezes.
— Eu sei, ainda tinha um pouquinho do seu cheiro.
— Desculpe, eu deveria ter lavado mais uma vez, não é?
— Não, eu gostei. O cheiro é bom. Não vai comer também?
— Já comi, não posso exagerar.
— Nem mais um pedacinho? É seu aniversário.
— Não posso vacilar.
— Mas você não é gorda.
— Eu não estou gorda, mas vivo sob o assombro da compulsão alimentar, é uma luta diária.
— Engorda fácil?
— Quando saio da linha, sim. Inclusive tenho uns quilos a perder.
— Você está bonita assim.
— Obrigada. Você pelo visto pode comer um boi inteiro que continua magra, né?
— Eu como bastante. — Respondeu dando uma garfada com vontade.
A médica puxou uma banqueta e sentou à sua frente, passando papel toalha na mesa.
— Você não sabia que sua colega tinha essas marcas? — Clarisse iniciou a conversa.
— Já tinha ouvido falar, mas nunca tinha visto. — Respondeu com a boca cheia.
— Pode engolir antes de responder.
— Foi mal.
— Como começou esse clima de guerra entre vocês duas?
— Sei lá. Posso pegar mais refri?
— Claro. Você não se recorda? Faz tanto tempo assim?
— Foi no início do ano, mas eu não quero falar sobre isso.
— Um dia você me conta?
Balançou a cabeça concordando e bebeu mais refrigerante.
— Maria Paula tem depressão, tem altos e baixos, então algumas coisas que você fala e parecem inofensivas, podem ser gatilho para que ela se sinta mal.
— Mas não sou eu que começo.
— Tente resistir a tentação de revidar, apenas saia de perto. Não vou pedir que vocês sejam melhores amigas, mas nos momentos de calmaria você pode tentar se aproximar aos poucos, oferecendo ajuda ou uma conversa, talvez ela implique com você por carência, por ser o mecanismo de defesa dela, mas você pode tentar mudar isso, pode partir de você.
— Tenho medo dela achar que estou dando em cima dela.
— Tente, e veja a reação.
— Espero que ela não me arranhe de novo...
***
— Você deve ser Clarisse.
Uma elegante mulher de aproximadamente 45 anos e cabelos vermelho-escuro cumprimentou a médica, que estava num restaurante de nome francês nos Jardins, aguardando sua nova pretendente.
— E você Milena. Prazer em conhecê-la. — A abraçou contidamente e voltou a sentar-se na mesinha redonda.
— Desculpe o atraso, sabe como é esse trânsito de São Paulo, queria ter uma patinete nessas horas.
— Nem me fale, eu vou e volto todo dia de Cotia, é muito tempo perdido dentro de um carro.
— Com tantas coisas melhores para se fazer dentro de um carro, não é mesmo? — Riu.
— Claro, como viajar de férias. — Respondeu já corada.
— Também. O que está bebendo?
— Ãhn... Só sei que é tinto e Merlot, não entendo de vinhos.
— Sério? Poxa, eu sou a louca dos vinhos, quando programo minhas viagens a primeira coisa que procuro é se tem vinícola por perto, já devo ter visitado umas vinte por aí. — Fez sinal chamando o garçom.
— Cada uma com seus vícios, eu costumo procurar livrarias por perto.
— É um bom vício também, e livros não te deixam bêbada.
— Já ficou bêbada numa vinícola? — Clarisse começava a descontrair, a ruiva falava com naturalidade e conquistava a simpatia da médica.
— Já, mas prefiro deixar essa história bem enterradinha. Tenho histórias melhores para contar, acredite.
— Histórias envolvendo álcool costumam ser as melhores.
— E mais constrangedoras, você quer dizer.
— É, às vezes, também tenho algumas histórias que não me orgulho.
— Já deu uma olhada no cardápio? — Milena disse abrindo o menu. — Desculpe a falta de educação, mas estou verde de fome.
— Confesso que também estou com fome, acho que vou pedir um desses peixes.
— Foi Miriam que escolheu o restaurante, não foi? Eu prefiro coisas mais simples. — Milena comentou.
— Foi sim, e fico mais aliviada em saber que não sou a única aqui que prefere restaurantes menos pomposos.
— Tem coisa melhor que uma bela macarronada? Tenho Itália no sangue por parte de mãe e de pai, daí já viu, né.
— Também adoro, mas não dá para comer macarronada sempre, senão tenho que trocar o guarda-roupas.
— Só em ocasiões especiais?
— Ou quando é irresistível.
— Sinta-se desde já convidada a provar meu espaguete a putanesca algum dia.
— Obrigada, uma pena que não possa retribuir o convite, sou uma negação na cozinha. — Disse Clarisse.
— Tudo bem, as pessoas são talentosas nos mais diversos cômodos da casa. — Brincou, trazendo um modesto sorriso da médica.
Ao final da noite daquele encontro às cegas, o papo continuava descontraído, as duas mulheres se encaminharam ao estacionamento do restaurante lado a lado, as mãos se esbarraram.
— Há quanto tempo você não tem alguém para esquentar suas mãos? — Milena disse tomando as mãos delas tentando esquentá-las.
— Algum tempo, acho que estou meio enferrujada com essas coisas. — Desculpou-se Clarisse sem jeito.
— Minha casa ou a sua?
Clarisse meneou a cabeça com certo pesar e procurando as palavras.
— Vai me odiar se cada uma for para sua casa? Eu gosto de ir devagar.
— Claro que não. Vai me odiar se eu convidar para um jantar numa trattoria italiana no Bixiga nesse final de semana?
— De forma alguma. Mas o peixe daqui até que estava bom, não posso reclamar.
— Sábado está bom para você?
— Pode ser na sexta? Esse é meu final de semana com as crianças.
— Seus meninos não moram com você?
— Não, moram a maior parte do tempo com a outra mãe.
— Todos os três?
— Dois, o Vicente já não está mais com a gente.
— Ah, eu sinto muito, eu sinto mesmo, não sabia.
— Tudo bem, não se preocupe com isso. Você tem uma filha, não é?
— Sim, e uma netinha de dois anos, acredita?
— Uma neta? Você já tem filha adulta?
— Sim, Bruna tem 23 anos já, agora somos em três mulheres lá em casa, e duas cachorrinhas.
— Sempre quis uma filha, mas o destino me trouxe três garotos, acabei acostumando em ter apenas meninos ao redor.
— Não pensa em adotar uma menina?
— Não, já adotei dois, está bom, não quero passar por todo aquele processo de novo.
— Você me parece ser uma rainha da paciência.
— Sempre trabalhei com crianças, acho que se você não aprender a manter a calma não consegue continuar nessa área, tem dias bem complicados.
— Bom, eu não troco meus jovenzinhos da faculdade por nada, na verdade são crianças crescidas, mas costumam me respeitar na sala de aula.
— Deve ser uma realidade bem diferente dos jovenzinhos do abrigo onde trabalho.
— Outra realidade social, o seu caso é muito mais complexo.
— É sim, e como. Bom, estou congelando aqui, te confirmo o próximo jantar durante a semana, ok?
— Claro, você já tem meu número e já sabe como me achar no Facebook.
— Obrigada pela noite, adorei a companhia.
— Se você não gostou pode falar, não vou me ofender.
— Eu gostei, de verdade.
— Fico feliz, porque eu adorei. Ãhn... Meu carro está ali na frente.
— O meu está aqui.
A professora hesitou um instante, girou nos calcanhares fitando Clarisse com um sorrisinho arteiro.
— Uma pena que você não queira conhecer minha casa hoje. — A ruiva aproximou-se dela, pousou uma mão em sua cintura. — Você deve ser uma delícia a sós.
Clarisse apenas sorriu sem jeito e com o rosto em chamas. Milena a trouxe pela nuca e a beijou, sendo correspondida.
— Feliz aniversário. — Sussurrou em seu ouvido e saiu andando.
A médica ficou ali parada ainda por um tempo, com um leve sorriso nos lábios.
“Ela sabia o tempo todo que era meu aniversário.”
Entrou em seu carro prata e tomou o rumo de sua casa, a 35 quilômetros dali. Um dia atípico se encerrava, enquanto dirigia pela noite duas pessoas ocupavam seus pensamentos.
Fim do capítulo
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Zaha
Em: 26/11/2022
Ooiee!
Poxa vida, de novo, n recebi a mensagem do novo capítulo! Acho que agora vai! Kkk
Nossa, que difícil essas duas garotas, não?! Os problemas de cada uma são bastante graves e qualquer olhada interpretada mal pelos próprios transtornos, terminam em guerra. Em querer tirar essa dor, no outro!!! Espero que com essa tarefa que Clarisse mandou, possam entender as dores de cada uma!! E lidar melhor ou tentar
Milena, uma mulher bem atirada desde o princípio e Clarisse mais quieta, ao menos em público. Será que essas duas vão se dar bem? Espero, parece uma boa ela se relacionar de novo!!
Gio me fez rir com o último parágrafo hahahahah. Doidaaaa
Tá massa!!!!! Adorei!!!! Final muito bom TB!!! Milena é boa nisso!!!
Beijos
Resposta do autor:
olá!
Os e-mails do lettera devem estar caindo na sua caixa de spam, isso é bem comum, infelizmente...
Estou tendo cuidado ao abordar essas questões de transtornos, espero não derrapar muito.
Ah sim, var rolar namoro com a professora ruivona, vamos ver quanto tempo vai durar...
bjos, obrigada!
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Lea
Em: 25/11/2022
Maria Paula não dá sossêgo para Francine. Clarisse é muito calma. A imagino toda zen!
*
Milena já queria levar a Clarisse para conhecer a casa,o quarto.... E tudo bem. Sexo no primeiro encontro,sem problema!
Resposta do autor:
Só tem uma coisa q tira Clarisse do sério: a ex.
A doutora tem regras rígidas com relacionamentos, muita burocracia rs
obrigada! abraços!
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Gio
Em: 25/11/2022
Milena parece legal, é ruiva, cozinha e flerta descaradamente, não sei o que mais esperar de alguém. Brincadeira hehe
Encontro às cegas não é a melhor coisa do mundo, mas às vezes é válido.
Nossa, eu tenho uma gastura desses embates adolescentes, eu sempre pensei que se eu tivesse um filho, quando ele completasse 12 anos eu iria entregar pras tias criarem, sem paciência, ainda bem que Clarisse tem...rs
Resposta do autor:
preciso tomar cuidado para as pessoas não começarem a torcer pra clarisse ficar com a milena... rs, vou começar a falar mal dela XD
lidar com adolescentes é uma das piores coisas do mundo hahahaha
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