M.K. Villela
— Vamos comer?
Não respondo. Ela coloca o prato de comida na cômoda, e senta do meu lado, passando a mão em meu cabelo e o colocando pra trás.
— Não estou com fome, tia.
— Você nunca está.
Fui interditada. Não é esse o termo certo, mas pelo visto não posso ficar sozinha durante os próximos dias, e agora dona Berenice está comigo, ou melhor, estou na casa dela, um apartamento para solteiro simples no centro da cidade.
Ela pega a sopa morna e enfia a colher na minha boca a contragosto, que acabo engolindo de qualquer jeito.
Já faz três dias desde aquilo, e não tenho coragem de olhar pra Isabela. Estou cogitando até me mudar.
Pelo que entendi, bem por alto, ouvindo por conversa entre elas, Isabela estava com seu caso enrolado em casa quando ouviu barulhos vindo de casa. Como ela já estava com receio de que acontecesse alguma coisa, ela ficou atenta até que ouviu eu grunhir alguma coisa como um choro lamurioso. Ela entrou no apartamento e me encontrou deitada no sofá, com a garrafa em mãos.
Pensou se tratar de bebida alcoólica, mas, ao saber que não bebo, pensou logo no pior, chamando sua companhia que, para minha sorte ou azar, tem experiência com esse tipo de situação. Fizeram os primeiros socorros porque o xarope em excesso pode causar insuficiência respiratória – ainda mais atrelada a outra coisa. Minha tia chegou depois de pouco tempo e dormiu comigo. Não falaram nada pra Isolda até agora, e provavelmente nem vão falar.
Elas disseram que falei coisa com coisa. Fiquei preocupada de ter dito alguma coisa de mais, mas se eu disse, se mantiveram em silêncio. A propósito, foi a namorada – não sei dizer o que elas são – de Isabela que disse que era pra eu ficar sob supervisão, e depois teve uma conversa breve com minha tia a qual ela não quis falar.
Termino de comer, e fico olhando pra chuva do lado de fora. Como será que estão as filmagens?
— Não quer dar uma volta? – ela diz passando os dedos na minha mão – Eu vi um box de Teatros na livraria que tenho certeza que você vai gostar.
Olho de relance, e ela sorri.
— Vai lá tomar um banho.
Me levanto. Não me sinto cansada fisicamente ou coisa assim. Só estou com uma ressaca mental duradoura. Vou até o banheiro, tomo um banho rápido, visto uma camiseta, jeans e um casaco e ela já me espera na sala. Quando saímos, andamos pela parte comercial até parar na livraria que ela comentou.
Ela é imensa, com três andares, e pega de um lado a outro. Ainda não tinha vindo nessa, e caminho ao lado dela. Não estou tão animada quanto gostaria, mas tento não me cobrar tanto.
— Se não me engano, é no segundo andar... Vamos?
Subimos, e quando nos aproximamos de uma das suntuosas prateleiras... Me deparo com aquele instrumento. Parece até uma premonição.
Encaro aqui sem dizer nada, e ela percebe.
— Morgana, ali fica a seção de teatro... – ela aponta pra trás, mas continuo seguindo até ele. Um Bosendorfer preto que fica próximo a sacada do local.
Sabe quando digo que parece que minha vida antes de tudo era um borrão? Esse aqui é um dos exemplos. Levanto a proteção do teclado e passo os dedos levemente sobre eles.
— Vez ou outra alguém vem fazer apresentação aqui – ela diz tentando se justificar.
“Acho que não consigo mais tocar”.
Sento no banco, e passo os dedos sob as teclas mais uma vez. Eu não toco em um desse há pelo menos uns sete anos, só no teclado que tinha na clínica de vez em quando. O que, uns quatro, cinco meses desde então? Acho que mais.
— Está desafinado – digo regulando as notas. Minha tia olha sem entender.
Nem eu entendo porque estou fazendo isso. Falei pra mim mesmo que não iria mais tocar em um desse, tanto que até recalco que fui treinada pra isso durante tantos anos. Parece que isso pertence a uma vida que não é a minha.
Mas não sou eu que não quero mais fingir que não sou eu?
Querendo ou não, isso faz parte de mim, mesmo que não tenha o peso de antes.
Agora sim está afinado.
Se eu não tocar por obrigação, talvez seja diferente.
Toco a tecla repetidamente. O som sai limpo, e toco a outra, e começo. Esse piano é ótimo.
— Vai tocar o quê? Vivaldi? – a tia pega um dos bancos ali próximo, e se senta de frente pra mim, e concordo com um aceno.
— Vou tentar tocar Winter, pelo menos.
A música começa a fluir dos meus dedos. Primeiro, com uma nota, depois com outra, e quando vejo, minhas mãos já estão nas teclas, e me desligo do que acontece ao redor.
A única coisa que existe quando se toca piano é você e as teclas. Mal dá pra perceber que tem uma atmosfera ao seu lado.
Eu comecei a tocar com quatro anos, e parei com dezessete, quando fui embora pra clínica. Toco estritamente música clássica e estudei o suficiente pra poder fazer composições, mas isso não importava pra Eleanor. O que importava era reger a companhia.
Ponto primordial para que eu procurasse a todo custo me afastar desse destino traçado pra mim. Ela fez de tudo para que Morgana Vilella, essa que vos fala, fosse a pianista profissional e regente da companhia que leva seu nome e legado.
Ninguém podia ser tão bom quanto ela nos palcos, mas precisava de uma acompanhante à altura. E essa era eu.
Não podia ser Isolda, nem mais ninguém, tinha que ser eu.
A música termina, e minha tia aplaude, feliz.
— Tão lindo, querida – ela continua aplaudindo – vai tocar mais uma, não vai?
— É... – olho ao redor, procurando pra ver se tem algum curioso – pode ser.
Eu pensei que fosse ser pior.
— Vai tocar qual agora?
Estico os dedos e ajeito a postura, tomando o ar, e tentando tomar a concentração.
— Beethoven.
Olho para as teclas, fecho os olhos, engulo em seco e os abro novamente. Sinto os teclados contra a ponta dos meus dedos, convidativos como se queimassem ao saber da Sonata ao Luar, terceiro movimento.
E assim, começo, frívola, deixando somente meu corpo seguir com a sequência de movimentos enquanto minha mente e as notas se tornam uma só.
Eu amo essa música. Meus olhos cerrados vendo a sequência rápida das batidas firmes das notas. Eu passei meses pra aprender essa música, tocando sem parar para não errar uma entonação sequer.
Meu pai amava me ver tocar, nem que fosse só ensaio. Parece que posso ver ele sentado na poltrona, o uísque em mãos, seu sorriso satisfeito. Ele adorava me ver tocando quando chegava do trabalho, como um souvenir sofisticado que trazia alento na sua rotina.
Ele nunca me bateu, mas ele não era um bom marido e muito menos foi um pai para Isolda. Gostava muito de mim, mas ele não era um bom homem. Ele podia ser tão cruel quanto Eleanor.
As notas correm com ainda mais vigor entre meus dedos, como uma memória revivida e exposta.
Se eu errasse, eu apanhava da minha mãe, se eu cansasse, eu também era castigada, e se desse meu melhor... Não era o suficiente.
Ela não era uma boa mãe. Nunca quis ser. Ela só queria descendentes que levasse o legado dela em sequência. Quando não fomos mais úteis, fomos descartadas.
Até hoje sinto que sou descartável e insuficiente.
Insuficiente porque não aguentei viver sem cair. Descartável porque sinto que não posso ser amada sendo quem eu sou.
Toco com ainda mais vigor.
Nunca vou me livrar disso. Nasci com o sinal de que, por mais que eu fuja, minhas feridas sempre estarão comigo.
A de não ter alcançado a perfeição, a de ter enlouquecido, a de não se sentir suficiente em nada que faz, a que... É uma obra inacabada, ao qual o artista deixou para trás.
Isolda foge até hoje. Eu a encarei e sai ferida, potencialmente aversiva. Sabemos bem o que aconteceu entre nós.
O que diferencia esse ideal criado para nós do que somos hoje em dia, esse amontoado de traumas?
É que a realidade se mostrou presente para nós com mais crueza que queríamos.
E assim termino de tocar a música.
E aplausos se somam no espaço. Quando olho ao redor, alguns curiosos me ovacionam, pedindo por mais uma.
Tento sair de lá, mas tia Berenice segura minha mão.
— Mais uma, por favor. Está maravilhoso.
Respiro fundo, e dou com os ombros. Por que não? Já estou aqui mesmo. Começo a tocar uma que sempre pediam pra mim, que é O Quebra-Nozes.
Realmente tocar sem cobrança é outra coisa, mas não gosto de atenção. Porém, quando estou ali, tocando, acabo esquecendo de que tem pessoas me olhando. Esse é um hobby que eu queria ter continuado e era incentivado pelo pessoal da clínica, mas... Toda vez que tocava e errava, eu já recuava meu corpo com medo do tapa que ia levar da minha mãe.
Valentina adorava quando eu tocava teclado também, mas eu queria ser reconhecida pela minha escrita, minhas composições, e não reproduções que foram dadas pra mim compulsoriamente. Eu só tocava para poder manter a memória muscular, como um treinamento que é mantido para não perder a forma durante tantos anos.
Por isso foquei tanto na minha escrita, porque nela eu posso ser reconhecida por minhas ideias, e não por mero treinamento exaustivo de um ritmo militar.
Desde que entrei na clínica, parece que foquei em ter outra personalidade a todo custo, quando no final acabo por ser a mesma coisa. Continuo tocando, continuo lembrando da minha família, a dor vez ou outra volta para me assombrar, como se meu eu de antes fosse Mr. Hyde e eu Dr. Jekyll.
Termino de tocar, e tem mais outras pessoas vendo. Acho que tem algumas gravando, e isso me incomoda. Levanto, e continuam aplaudindo. Abaixo a cabeça, envergonhada, e vou pro lado da minha tia, que agradece as pessoas que me cumprimentam e saímos de lá.
— Foi tão lindo, Morgana, eu até gravei – ela mostra no seu telefone – fazia tempos que não te via tocar.
Dou com os ombros, sem dizer nada.
Não foi ruim, foi diferente sem toda aquela cobrança. Posso me acostumar a tocar de novo vez ou outra. Ainda não tinha experimentado, mas provavelmente nem teria me arriscado se não tivesse aquele delírio com ele. Talvez porque ele sempre foi o que mais me incentivou seja lá o que eu escolhesse.
Sei que ele sabia de mim. Ele chegou uma vez e falou que não se importava se eu gostasse de homem ou mulher ou que quer que fosse, que eu ainda seria sua filha e sempre seria amparada. Foi quando minha mãe soube do meu breve caso com uma colega do grupo de estudo clássico e me castigou...
Ela não me castigou. Ela me bateu até eu ficar inconsciente e ser acordada com água na cara. Eu era uma criança, e Isolda saiu com um olho roxo e um dente trincado por tentar apartar essa briga.
Eles eram muito violentos um contra o outro. Ela quebrou o braço dele uma vez o empurrando da escada, e ele quebrou o nariz dela. Ela vivia com hematomas. Meu pai também.
Quando ele soube do que aconteceu comigo, ele bateu nela com mais raiva do que das outras vezes. Disse que se tocasse em mim daquele jeito mais uma vez, ele a mataria.
Ele tinha um senso de justiça distorcido. A justiça dele só valia pra mim, e a sua proteção também, como se a família fosse só nós dois e as demais intrusas.
No final das contas, a família se tornou só eu e Isolda, que passava maior parte do tempo fora de casa para não ficar perto deles, principalmente dele. Eu e ela, em uma constante cena de se esconder no quarto dela enquanto eles brigavam e vociferavam palavras de ódio um contra o outro.
— Você está bem? – tia Berenice me abraça de lado, chamando minha atenção pra realidade.
— Estou, é... – Cerro as sobrancelhas – Só estou pensando.
— Posso saber no quê?
— Nada demais.
Ela segue comigo caminhando do seu lado até o livro que ela tinha prometido. A surpresa é que ela me dá ele de presente, o que me deixa realmente feliz, em que seja por alguns minutos.
Ela sabia do que acontecia em casa. Ela previu o que iria acontecer e fez o que tinha em mãos pra tentar impedir, mesmo que não tenha conseguido na hora. Se não fosse por Berenice, talvez não tivéssemos o apoio pra poder recomeçar.
Meu telefone toca. Vejo a ligação e é Raquel. Não sei se atendo.
— Por que não quer atender?
Dou com os ombros como resposta, e ela gesticula pra que eu atenda logo.
— Se está te ligando, deve ser porque quer realmente falar contigo.
— Eu não quero falar com ninguém.
E desligo o telefone, guardando-o.
— Se isolar não vai adiantar de nada, Morgana – ela me olha de relance enquanto caminhamos – sabe bem disso.
— Não sei se consigo lidar com meus sentimentos agora.
Ela fica em silêncio, e cruzando os braços, volta a falar.
— Querida, acho que deveria rever um psicólogo.
E me olha de relance.
— Não é justo que sofra por tudo isso novamente sem ajuda.
Ela passa a mão no meu cabelo, me olhando não com pena nem comiseração, mas com certo temor do que possa estar acontecendo comigo.
— Você não acha que é hora de pedir o auxílio certo para seu coração angustiado?
Eu já fui mais reticente em aceitar ajuda especializada, mas hoje em dia, depois de tudo que já aconteceu...
Talvez eu só concorde com ela.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 17/11/2022
Que alívio Morgana esta bem pelo menos fisicamente.
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]