Inflamável por HumanAgain
Algumas cenas deste capítulo podem ser desconfortáveis por conta da violência que elas contém.
Capitulo 29 - Completamente louca.
Como lhe foi pedido, Serpente tomou uma decisão. Eram menos de três da tarde quando a ladra caminhou ao pé da mansão, observando seus bosques verdejantes e suas decorações luxuosas.
Antes que pudesse se jogar dentro à cena do crime, Serpente suspirou fundo. Era difícil pensar no que Loenna havia se tornado, e mais difícil ainda aceitar que era a única pessoa capaz de colocar um ponto final nisso tudo.
Jogou uma adaga em algum ponto longínquo da entrada, visando distrair os guardas. Não deu outra; Os dois homens que montavam vigília amontoaram-se no lado esquerdo da casa, procurando o autor do lançamento, enquanto Serpente escalava a cerca-viva pelo lado direito. Teria sorte se conseguisse aterrissar sem ser notada, mas, de qualquer forma, encontraria-se com Loenna. Daquela forma, apenas faria com que o encontro fosse menos traumático.
Pensava em todas as vezes que estiveram juntas. Das risadas, carinhos, abraços e beijos que trocaram. Loenna tinha um pedaço de seu coração, fora isso que ela dissera antes de partir, e não era mentira. Daria tudo para sentir o corpo de sua amante novamente, despido de toda essa obsessão por poder. Queria acreditar, no fundo, que a verdadeira Loenna ainda estava ali, viva como uma lagarta dentro do casulo. Será?
Serpente pousou com plena delicadeza. Com seus anos de treino, conseguiu correr pelo gramado sem fazer barulho. Os guardas sequer suspeitaram de sua presença.
O problema, pensou consigo mesma. É que lagartas em casulos viram borboletas.
O próximo obstáculo era encontrar o lugar onde Loenna se situava. Ouviu conversas vindas da janela acima de si, no primeiro andar da mansão, e identificou a voz de sua amada por meio de seu ouvido muito bem treinado. Perfeito.
Seria difícil desenterrar a antiga Loenna por trás daquela camada avassaladora de terra que havia constituído a nova. Mas ela tinha que tentar, era agora ou nunca. Agarrou a soleira da janela e, sem pensar muito, Serpente impulsionou-se para dentro do mais luxuoso cômodo da mansão Nalan.
Fora uma aterrissagem perfeita; Serpente caiu sem fazer muito barulho e sem muito dano às suas articulações, que já estavam desgastadas pela idade. Uma vez dentro da sala, seu primeiro ato foi esquadrinhá-la em toda sua extensão. Era grande, recoberta por pilastras de mármore branco, havia janelas por toda sua extensão e no chão via-se um mosaico em formato de um belo falcão que denunciava seus antigos donos; A sala fora recoberta por plantas (ideia de Aya, supôs Serpente) e Loenna havia colocado um trono vermelho em seu centro. A própria rainha estava sentada em cima da enorme cadeira almofadada, e Serpente notou que ela continuava linda, apesar dos anos; Tinha algumas rugas na cara e os cabelos arruivados já estavam ficando grisalhos, mas as antigas expressões faciais, olhos cor de âmbar e lábios retorcidos estavam ali. Era a mesma Loenna Nalan de sempre.
Dois guardas fortemente armados de um revólver na cintura e duas lanças imensas também estavam ali; Estes imediatamente apontaram as armas para Serpente, que, indefesa, ergueu as mãos para cima, contando com nada além de uma ordem de Loenna para que os homens abaixassem as armas. Não, sua amada não teria enlouquecido a ponto de não reconhecê-la…
— Esperem. — Disse Loenna, apertando os olhos. — Abaixem as armas.
E a guerreira suspirou de alívio ao ouvir tais dizeres. A rainha levantou-se de seu trono, com os olhos apertados. Caminhou em direção a amada e deixou sua visão correr por ela de cima a baixo. Certa de que era quem ela tanto esperava, Loenna abriu um grande e acolhedor sorriso.
— Serpente! — Lágrimas se formaram em seus olhos. A rainha imediatamente correu para lhe dar um abraço. — Você voltou…
— Eu voltei, meu amor… — Serpente acariciou o couro cabeludo da amada no meio do abraço. — Eu estou aqui…
— Você disse… — Loenna deixava as lágrimas caírem sobre a regata preta de Serpente. — Você disse que me visitaria…
— Sim, meu amor, eu disse. Eu falhei com você. — Não havia em Serpente arrependimento maior do que o de não ter cumprido com a promessa de visitar Loenna frequentemente. Em nenhum momento de sua vida havia se esquecido da amada, e sentia muito a sua falta, mas o primeiro mês doera tanto que ela tinha medo de se tornar escrava daquele amor. E Serpente temia perder sua essência, deixar de ser um passarinho livre. Hoje, via ela, era um conceito tolo que tinha consigo; Seria possível voltar vinte anos no tempo e fazer diferente? — Se você soubesse o quanto eu me arrependo disso…
— Achei que não me amasse mais. — E Serpente via na voz de Loenna a dor que ela a havia feito passar. — Achei que tivesse encontrado outra mulher e me esquecido…
— Isso jamais aconteceria. — Durante todos esses vinte anos, não havia um único momento em que Serpente se esquecera de Loenna. — Você é a minha garota, esqueceu?
— Tudo bem. — Loenna soltou Serpente e levou suas mãos ao rosto da antiga amante. — O que importa é que você está aqui.
E, nisso, Loenna roubou de Serpente mais um caloroso beijo, daqueles que há décadas as duas não trocavam. Serpente sentia tanta falta dos lábios de Loenna que, para ela, era como uma droga altamente viciante da qual ela jamais ficaria saciada; Quanto mais a ruiva passeava com sua língua dentro da boca da amante, mais Serpente se convencia de que perdera muito tempo com questionamentos tolos acerca do amor.
— Você… — Quando o beijo de Loenna e Serpente finalmente teve fim, a ruiva se pôs a falar. — Você está aqui para me visitar, é?
— Sim… — Respondeu Serpente, um pouco vacilante; Havia um motivo maior pelo qual ela havia vencido o medo e visitado a antiga amada. — Eu quero passar um tempo com você, minha querida. Mas, antes, tem algo que eu gostaria de falar…
Loenna franziu o cenho.
— Você quer falar comigo? — Perguntou ela. — Pois bem, então. Fale.
Serpente umedeceu os lábios. Encarou Loenna diretamente em seus olhos cor-de-âmbar; Era a hora da verdade.
— Você não acha que está exagerando um pouquinho nos seus mandos e desmandos? — Disse ela, de uma só vez, para não correr o risco de se arrepender no meio da frase.
Loenna a soltou. Se afastou. Novamente, sua expressão era a da mais completa confusão.
— O que você quer dizer com isso?
Serpente suspirou profundamente. Viu que teria de ser mais detalhista em suas colocações.
— Veja bem, eu sei que você matou toda a família de Arien Eran. — Serpente torcia para que suas palavras tivessem algum efeito, mas ela não saberia prever se isso aconteceria. — Em épocas de guerra, eu entendo a violência. Mas nós estamos em paz, Loenna, você já conseguiu o que queria há vinte anos. Não há necessidade de toda essa brutalidade…
— Você não sabe do que está falando. — Loenna rangeu os dentes. — Arien Eran se uniu a Narael Wuri para me derrubar. E eu não vou ceder o poder para uma Eran, Serpente, não vou.
— Eu conheci Arien. E Narael também. — Tentou Serpente argumentar. — Elas não querem o seu poder, Loenna, são apenas duas jovens apaixonadas que querem viver a vida juntas, assim como nós queríamos. Se lembra? Narael sequer tem objeções ao seu governo. Arien tem, porque você persegue sua família. Você se tornou um monstro para os Eran, Kantaa e Saphira…
— E eu não deveria? — A voz de Loenna era ríspida como o rugir de um leão. — Eles não eram monstros para nós no passado?
— Eram. E eu bem sei, quase fui morta pelos Kantaa. — Serpente seguiu em sua argumentação. — Mas nossa luta era por um país mais justo que o deles, e não por um país como o deles. Esqueça a sua vingança, Loenna, eles já não tem mais posses e seu dinheiro hoje pertence ao povo. Não é justo que você siga perseguindo-os apenas pelo seu sobrenome.
— ELES SÃO UMA AMEAÇA! — Bradou a rainha. — Os Eran, Kantaa e Saphira querem retomar o poder a todo tempo…
— E eles podem? — Serpente ergueu uma sobrancelha. — Eles tem poder para isso? Porque você detém todo o poder militar do país e o povo está ao seu lado. Seria suicídio querer tomar o trono de você. E, ainda que eles tentassem fazer, matar toda a família de alguém não é uma resposta condizente.
Loenna levou as mãos para trás. Mordeu o próprio lábio e se pôs a caminhar em círculos. Parecia estar remoendo as coisas que Serpente havia dito, processando-as em uma maquinaria própria dentro de sua cabeça. E isso demorou um minuto. Dois. Três. Cinco minutos depois, porém, Loenna já tinha sua resposta.
— Eu acho que sei o que aconteceu. — Ela murmurou, por entre os dentes.
Serpente sorriu. Havia sido ouvida.
— O que aconteceu? — A mulher se pronunciou, esperançosa.
Loenna, porém, virou-se em direção à Serpente e apontou-lhe um dedo acusador.
— Você se uniu a Arien e Narael para me tirar do poder! — Disparou Loenna, raivosa. — E acha que eu sou idiota!
— Eu? — Aquela proposta era ridícula. Serpente jamais desejaria estar no poder; Se recusou até mesmo a ser substituta da amada ainda na época da guerra. — Você está louca. Por que eu faria isso?
— Bem, diga-me você. — Rebateu Loenna. — Aquela Eran nojentinha fez sua mente, não fez? Assim como fez a de Narael. O que ela lhe prometeu? Fortuna? Fama? Me diga!
— Eu não preciso disso… — Serpente estava incrédula. Loenna de fato havia enlouquecido; Esquecera-se de quem era Serpente? De quem era sua amante? — Eu nunca quis destaque, nunca quis dinheiro. Não acredito que estou precisando lhe dizer tais coisas como se você não soubesse…
— Você está certa. De fato Arien não deve tê-la prometido nada. — E, por um segundo, Serpente acreditou que a voz da razão havia soprado novamente na cabeça de Loenna. Estava errada, contudo, porque a rainha logo insinuou: — Afinal, vocês têm o mesmo sangue…
E aquilo fora como um baque para Serpente. Ela não era estúpida, sabia que Loenna estava se referindo ao seu parentesco com Monvegar Eran. Mas como poderia ser tão baixa? Gillani Gaspez jamais fora reconhecida pelo homem; Ele tentou matá-la quando ela era mais jovem. Serpente tinha, no fim do dia, a mesma origem humilde de Loenna Nalan.
— Você está delirando. — Era a única explicação. — Eu matei Monvegar Eran, se não está lembrada. O odiava tanto quanto você. Não é possível que você esteja…
— Uma Eran, cedo ou tarde, demonstrará ser uma Eran. — Disse Loenna, com os dentes cerrados. — E você acabou de se mostrar uma, Serpente.
— Isso é ridículo. — Serpente piscou repetidas vezes. Aquelas insinuações eram simplesmente inconcebíveis. — Loenna, por favor, não perca a razão… Eu sou Serpente, a sua Serpente, a mulher que a treinou, que lhe amou por tanto tempo…
— Não me interessa nada do que você diga. — Grunhiu Loenna. — Maraya e Sharoli, matem-na.
E, quando os dois guardas corpulentos apontaram suas armas, Serpente percebeu que era seu fim. Antes que eles apertassem o gatilho, a guerreira se impôs, em alto e bom som:
— Eu tenho um pedido a fazer.
Loenna ergueu a mão. Maraya e Sharoli abaixaram as armas e Serpente suspirou de alívio ao perceber que a antiga amante havia atendido ao seu chamado.
— Pedido? — Loenna ergueu a sobrancelha. — Você não está em posição de fazer pedidos, Serpente.
— Pelo que nós vivemos juntas. — Serpente trincou os dentes. Agora, sequer imaginar que havia se deitado com Loenna um dia lhe causava o mais completo asco. — Se você tem alguma consideração pelo que aconteceu entre nós…
— Estou misericordiosa hoje. — Imagine então nos seus momentos mais inflexíveis, pensou Serpente. — Faça o seu pedido. Mas você ainda vai morrer, então não tente ser espertinha.
— Eu quero que você me mate, Loenna.
Silêncio na sala. Os guardas ainda estavam com as mãos nos revólveres. Loenna franziu o cenho e emitiu um sorriso de canto de boca.
— E posso saber qual a razão disso? — Questionou a rainha.
— É muito fácil pedir para os seus guarda-costas fazerem o trabalho. — Respondeu Serpente, seca. — Quero ver se você, Loenna, munida apenas de um punhal, terá coragem de sujar as suas mãos de sangue. Quero ver se você terá coragem de matar quem te fez ser a mulher que você é.
Serpente não acreditava que Loenna iria desistir da execução caso a fizesse com as próprias mãos; Entretanto, a rainha teria que viver eternamente com o peso de ter dado fim à vida da mulher que um dia amou. E isso já era o suficiente para ela.
— Pois bem. — Concordou a rainha. — Sharoli, um punhal, por favor?
O guarda costas número dois tirou um punhal da cintura e o entregou para Loenna. A ex-assassina de aluguel encarou sua lâmina, afiada como a espada de um samurai. Seria capaz de decapitar alguém sem maiores dificuldades.
— Faz muito tempo que não pego um desses. — Loenna sorriu. — Está pronta?
— Como eu lhe disse há alguns anos, eu não tenho medo da morte. — Serpente estava firme. Apontou, então, para o próprio torso. — Golpeie aqui, entre a terceira e a quarta costela, do lado esquerdo. Assim será o mais indolor possível, e eu não quero uma morte agonizante.
— É muita petulância sua… — Loenna apertou a empunhadura do punhal com força. — Achar que pode ensinar a uma antiga assassina de aluguel como matar.
— Eu posso. — Disse Serpente, crente de que estas seriam suas últimas palavras. — Porque de fato fui eu quem ensinei.
Loenna, sem paciência, aproximou-se de Serpente. Trincou os dentes, encarou a sua vítima com um ar de arrogância. Ela queria transparecer confiança, mas se via que estava vacilante. Então, de uma só vez, Loenna golpeou…
…A própria barriga.
E caiu dura no chão com a arma fincada no próprio ventre; Serpente estava de olhos fechados, apenas se deu conta do que estava acontecendo quando o sangue quente respingou em seu corpo. Ao reabrir suas pálpebras, a antiga amante de Loenna tomou um susto ao ver sua amada caída, empapada de seu próprio líquido vital. Berrou, berrou de tal forma que Maraya e Sharoli assustaram-se com seu grito.
— AYA! — Foi a primeira pessoa de quem ela conseguiu se lembrar. — ONDE ESTÁ AYA?
— No… — Maraya estava perdido. Não sabia o que estava acontecendo ao certo. — No calabouço…
— ENTÃO A BUSQUEM! — Serpente ajoelhou-se junto de Loenna e tentou estancar seu sangramento. — RÁPIDO!
— Nós não devemos obediência a você. — Disse Sharoli, ríspido.
— Bem, se vocês não buscarem a enfermeira… — Serpente estava irritada. — A pessoa a quem vocês efetivamente devem obediência vai morrer.
Maraya e Sharoli se entreolharam. Então, convencidos, abriram a porta da sala e desceram rapidamente até as masmorras.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]