Inflamável por HumanAgain
Capitulo 27 - Papo de condenado
— E então, Euler? — Loenna estava parcialmente nua, deitada na cama com Maraya e Sharoli. Além de seus guarda-costas, os homens também eram seus amantes. — Como foi lá embaixo?
Euler trincou a mandíbula. Gostaria de convencer a rainha a ter um lampejo de bom senso, mas a este ponto, o conselheiro pensara ser impossível.
— Os prisioneiros foram contidos, rainha. — Suas palavras eram pronunciadas com amargor. — Uma arruaceira escapou, pelo que me foi relatado, mas não era ninguém importante. Conseguimos conter Narael, a Eran, o garoto Kantaa e sua mãe.
— Ótimo. — Loenna sorriu, sádica. — Como Eliah está? Em relação a Narael?
— Muito mal. — Apesar de não ter coragem para desafiar a rainha, o conselheiro não sabia mentir. — Está implorando pelos cantos da casa para que soltem sua filha . Diz que ela é muito jovem, não sabe o que está fazendo.
— Tenho dó de Eliah. Pariu um monstrinho. — A rainha, convicta de si, não perdoava sequer as suas protegidas. — Um dia ela irá concordar comigo. Ah, aquela maldita garota! Dei tudo para Narael, casa, comida, ensinamentos… Para ela me trair desta forma. Não, isso é imperdoável.
Euler engoliu em seco. Sua língua coçava para contradizer a rainha tirana. Contudo, se fizesse isso, sabia que seria mais um a mofar naquele calabouço. Ou coisa pior.
— Bem, majestade… — O conselheiro suspirou fundo. — O que pretende fazer com os prisioneiros?
— Matá-los, oras! — lançou Loenna, com uma serenidade espantosa. — Esperarei até segunda-feira para isso, não irei incomodar meus guardas no domingo. Aproveito e executo aquele traidor do Fowillar e a maldita Aya. Estão mofando no calabouço, não sei mais o que fazer com eles.
Tremendo da cabeça aos pés, Euler engoliu em seco. Se a rainha não tinha misericórdia por seu marido ou sua amante, teria por alguns fugitivos aleatórios?
— Acha que é um bom plano, rainha? — Talvez, e apenas talvez, Euler conseguisse colocar um pouco de razão naquela cabecinha transtornada fazendo perguntas.
— Eu acho. — Claro, era apenas um talvez. Um talvez bem remoto. — Por que, Euler? Discorda dos meus métodos?
O conselheiro sentiu sua boca secar. Como dizer a verdade? Como afrontar a rainha tirana e dizer a ela que havia passado dos limites?
— Eu acho um excelente plano, Majestade. — Maraya era um excelente devoto. Jamais iria contrariar as ordens de sua superior. — Traidor não merece perdão.
Loenna sorriu. Puxou Maraya pelo pescoço e o presenteou com um longo e molhado beijo, sem se importar com a privacidade. Sharoli também parecia ansioso pelos agrados, embora não tivesse se manifestado.
— Muito obrigada, Maraya. — E bagunçou seus cabelos castanhos. — Euler, você está dispensado. Eu, Maraya e Sharoli queremos nos divertir um pouco.
— Claro. Claro. — Euler estava aliviado em não ter que endossar aquela decisão maluca. — Uma boa diversão para vocês, Majestade.
E, com o suor escorrendo pela nuca, Euler deixou os aposentos de Loenna. O mundo ao seu redor estava ruindo, e ele não poderia fazer nada para impedir.
***
— TIREM AS MÃOS DE MIM! EU NÃO FIZ NADA! — Merit berrava para que toda a mansão Nalan pudesse ouvir. Para a sua infelicidade, as masmorras tinham isolamento acústico. — ISSO É ABSURDO!
— Cale a boca, sua Kantaa maldita, ou irá se ver com essa garota aqui. — O guarda apontou para a arma que carregava no coldre.
De uma só vez, os homens corpulentos jogaram os prisioneiros em um porão escuro, fétido e mofado. Havia correntes de metal pendendo do teto, e logo o quarteto notou que servia para mantê-los cativos. Merit era, de longe, a que mais trazia problemas, debatendo-se escandalosamente; Darian estava bêbado demais para reagir e Arien se via apática. Narael, embora estivesse sóbria, não queria se rebelar contra pessoas que cresceram com ela.
— Lenrah, por favor… — Ela implorava ao chefe da guarda real, que prendia seus braços e pernas em pesadas algemas atadas às correntes. — Você sabe que isso é absurdo…
Lenrah suspirou fundo. Não era tolo; sabia que havia algo de muito errado acontecendo por ali, e que cedo ou tarde, tudo iria cair por terra.
— Eu jurei servi-la, Narael. — Por mais doloroso que pudesse ser, escolhas são escolhas. — Tenho vários pecados em meu currículo. Mas macular meu compromisso é algo que não posso fazer.
— Lenrah, ela está completamente paranóica por poder! — Alguém havia de ser sensato por ali. Se não Lenrah, talvez algum de seus subordinados. — Vocês não podem deixar isso acontecer. Se ninguém se mobilizar, nada muda.
Os guardas não deram ouvidos à princesa. Deixaram seus prisioneiros acorrentados e bateram a pesada porta de ferro das masmorras, permitindo que o odor desagradável do mofo e dos dejetos humanos chegassem até eles. Narael quis incendiar todo aquele lugar, mas as pessoas que ama morreriam no processo. Era uma luta vã.
— Então foi isso que o porão construído pelo meu pai, com tanto esmero, virou. — Arien pronunciou-se pela primeira vez, ainda com a voz fanha. — Uma masmorra.
Narael encarou Merit, que era a única do quarteto com alguma condição de manter diálogos. A luz era fraca naquele lugar medonho, mas ainda conseguia discernir-se as silhuetas de seus colegas.
— Por quanto tempo será que ficaremos aqui? — perguntou à bruxa.
Contudo, a resposta veio de Fowillar:
— Para sempre, querida. — disse o rei. — Ou “até Loenna tomar juizo”, o que é a mesma coisa.
Narael soltou um grito. De todas as pessoas que poderiam estar em uma masmorra, ela não esperava por ele, o rei Fowillar Nalan. Invocou uma chama com dois de seus dedos para ter certeza, e de fato o ex-Saphira estava ali. Não somente ele, como também Aya, que agora estava assustadoramente mais magra.
— Oi, sapequinha. — O clima era tão mórbido que ninguém se importou com o fato de Narael invocar chamas com os dedos. Estavam à beira da morte, afinal. — Eu gostaria de te rever em condições melhores, mas infelizmente isso não foi possível.
— Fowillar… Aya… — Narael quis chorar. — Vocês estão aqui… Fowillar, como isso aconteceu?
— Da maneira mais óbvia. — Em um olhar mais atento, Narael percebeu que as algemas deixavam uma mancha roxa nos braços de Fowillar e Aya. Alguns trechos de seus pulsos estavam até mesmo em putrefação. — Disse que Loenna estava sendo ridícula com essa obsessão por poder. E, bem, ela me acusou de querer destroná-la.
— Isso é ilógico — concluiu Narael. — Você é o rei. Substituto de Loenna para ocasiões especiais. O homem que lutou ao lado dela. Isso é completamente…
— Eu era o rei — concluiu Fowillar. — Agora, eu sou só mais um preso entregue ao acaso, definhando até que a morte venha me buscar.
— Ah, me desculpem, mas isso é patético.
Aya e Fowillar, no susto, procuraram o dono da voz misteriosa. Era uma voz masculina, grave. A dupla encarou Darian, desacordado, sem a menor ideia de onde poderia ter vindo aquele chamado. Narael e Merit, contudo, já haviam ouvido aquele timbre antes.
E Julien, completamente irado, dissociou-se de Darian, com as mãos cruzadas.
— Não é possível que as pessoas aceitem toda essa palhaçada caladas. — Ele era o único capaz de se movimentar pelas masmorras. — Isso é simplesmente inaceitável.
A razão do choque inicial era nítida: Aya e Fowillar não esperavam receber a visita de um fantasma nu no meio de sua tortura. Se a chama irradiando de Narael era passível de ser ignorada, aquele aparecimento era bizarro demais para não se notar.
— Isso é um… — Aya piscou algumas vezes. Julien, que já estava pouco paciente naquele dia, bufou.
— Fantasma pelado. Sim, sou eu. — E apontou para si mesmo. — Não, vocês não estão mortos. Ainda. Podemos voltar para o que interessa?
— Como esse morto chegou até aqui? — Fowillar encarava o fantasma de cima a baixo. — Alguém morreu?
— Eu morri. Meu nome é Julien Regin, prazer. — E ofereceu sua mão para que Fowillar pudesse apertá-la. Não que isso fosse possível; um estava preso e o outro não tinha corpo material. — Sou pai de Loenna.
Mais uma surpresa. Fowillar arregalou os olhos diante da entidade que estava à frente de seus olhos.
— Isso não é possível. — O homem umedeceu os lábios. — Loenna não tem pai.
— Loenna tem pai, sim, senhor. E um pai muito decepcionado com ela. — Julien estava muito aborrecido. — Não foi assim que a criei…
— Na verdade, Julien, você não a criou… — Narael se intrometeu. — Você morreu quando ela tinha dois anos de idade.
— Tá, isso é irrelevante. — Julien fez um sinal para que Narael se calasse. — E talvez a razão pela qual Loenna não saiba que tem pai. Gara não sabe que eu morri, deve ter achado que eu a abandonei. Onde está ela, aliás? E Quentin?
Fowillar e Aya se entreolharam. Parecia maluquice conversar com um espírito zombeteiro sobre a família de Loenna, mas, afinal, eles já estavam de braços dados com a morte, não estavam? Que diferença faria?
— Gara morreu quando Loenna era ainda criança — contou Fowillar. Já estava careca de saber esta história. — E Quentin… Era o meu namorado. Ele morreu pouco antes da guerra. Esta é a razão do nome da cidade: Quentin Nalan.
Julien relaxou os ombros. Era o tipo de notícia que ele não esperava.
— Oh. Vou pedir para Darian conversar com eles quando… Quando ele estiver bem. — Apesar da má notícia, a morte não abalava Julien. — Mas, sobre Loenna, isso não pode ficar assim. Ela não é uma má menina, ela só está transtornada. Precisamos que alguém converse com ela de igual para igual, feito adulto, e só então ela…
— Julien Regin. — Fowillar pronunciou todas as palavras do nome do morto com cautela. — Isso já foi feito. Loenna é inflexível, não aceita opiniões contrárias. Qualquer um que confrontá-la irá para o calabouço.
— Mas vocês já tentaram…
— Já — interrompeu Merit. — Não adianta, Julien, sua filha está maluca. Não existe solução no mundo capaz de refrear sua loucura.
— Bom, o seu filho também está maluco, e eu não disse nada sobre isso! — apontou Julien, sentindo-se ultrajado.
— Meu filho está bêbado, não está usando de seu poder para ordenar a morte de ninguém. — Os olhos de Merit não tinham vida. Ela sabia que estava próxima de seu fim. — E, de qualquer forma, nada apaga o monstro que Loenna se tornou. Me desculpe.
Julien encarou o chão. Sentou-se, embora suas pernas fossem incapazes de ficarem cansadas. Era um pouco chocante para ele aceitar que aquela menina, cujos olhos cor-de-âmbar ele vira pela última vez há 45 anos, se tornara uma terrível ditadora. Era tão pequena, e tão cheia de vida…
Entre lamúrias e resignações, os prisioneiros ouviram a porta da masmorra se abrir. Narael imediatamente apagou sua chama; não queria que os guardas de Loenna tivessem mais motivos para desconfiar da garota. Contudo, Fowillar a tranquilizou:
— É Euler contrabandeando comida para nós — disse. — Ele faz isso todo dia, para que não tenhamos de comer aquele mingau horrível que nos servem.
Aya assentiu com a cabeça, e Narael suspirou em alívio. Julien, porém, parecia intrigado com outra questão.
— Euler? — perguntou. — Euler Christol?
— Sim. Euler Christol — confirmou Fowillar. — Por quê? Tem algo que não saibamos sobre o conselhei…
Não conseguiu terminar sua frase, porque um grito abafado irradiou por toda a masmorra.
— Julien! — Embora fizesse esforço para manter-se quieto, Euler não conseguia esconder seu espanto. — É você?
— Sim, seu imbecil. — Não era apenas com Loenna que o guerreiro Julien Regin estava decepcionado. — E eu quero saber que porcaria o nosso país se tornou. Vamos, me dê todos os detalhes.
A este ponto, os prisioneiros pareciam perdidos. Encaravam-se uns aos outros, tentando compreender qual o tipo de relação que Euler e Julien mantinham; infelizmente, essa resposta ainda era uma incógnita.
— Vocês… — Narael foi a primeira a arriscar uma frase. — Vocês se conhecem?
— Sim, e muito bem, a propósito. — Julien colocou as mãos na cintura. — Euler e eu fazíamos parte do mesmo grupo revolucionário que iria derrubar a hegemonia das três famílias em Carmerrum. Eu morri para que este imbecil pudesse sobreviver, e ele se tornou cachorrinho de ditadora.
— Não é bem assim. — Euler levou uma colherada de comida à boca de Fowillar. — Eu criei as crianças no nosso projeto, como você queria que acontecesse. E foi deste projeto que saiu a revolucionária…
— Que agora é tirana — completou Fowillar.
— Bem, sim, mas eu não tinha como adivinhar — defendeu-se o conselheiro. — E eu não posso erguer a voz contra nossa rainha. Fowillar e Aya fizeram isso, e agora eles estão aqui. Você entenderia se estivesse vivo, Julien, não é covardia…
— Sim, é covardia. — Julien apontou um dedo para o idoso à sua frente. — Eu certamente peitaria aqueles que se perdem em seu próprio ego. Mesmo que essa pessoa seja minha filha.
— Bem, eu duvido que… — Euler estava prestes a se defender, mas algo interrompeu seu raciocínio. — Julien, você tinha filhos?
Desta vez, quem se viu numa saia justa foi Julien.
— Ah, eu… — Ele tentava bolar desculpas, mas já havia se entregado.
— Você MENTIU para nós, Julien? — Euler estava irado. — E o nosso trato? Sobre não se casar e nem ter filhos? Você o quebrou?
— Ei, calma lá. Eu não fui o único a quebrar o nosso trato, porque, veja bem… — Julien se colocou na defensiva, mas logo foi interrompido:
— Essa discussão tola não irá levar a nada. — Merit os interrompeu. Sabia de tudo que os velhos amigos escondiam, e tinha certeza que a paz não resistiria àquela lavagem de roupa suja. — Estamos presos, Loenna irá nos executar na segunda, não existe salvação para nós.
Aya, Fowillar e Narael arregalaram os olhos com a notícia. Euler, contudo, parecia mais preocupado com outra coisa.
— Como você sabe? — O conselheiro pretendia esconder dos prisioneiros seu infeliz destino; quanto menos sofressem, seria melhor.
— Não dá pra esconder nada dela — atestou Narael. — Merit meio que lê mentes. É seu super-poder, igual o meu negócio com fogo. E o do Darian com mortos.
Boquiaberto, Euler encarou Merit nos olhos. Tinha medo que ela descobrisse o seu maior segredo, precisamente o fato de que…
— Sim, Euler, eu sei que você tem uma verruga enorme na bunda. — Apática, Merit entregou a verdade para todos os prisioneiros. — Não importa mais. Não viveremos por mais que dois dias. Você não deveria estar tão incomodado assim.
O conselheiro, contudo, não conseguia esconder o rubor que tomava conta das bochechas.
— Ora, eu… — Ele queria sumir naquele momento. — Você não deveria revelar o segredo dos outros assim.
— Nós estamos mortos, Euler. — Pesaroso, Fowillar endossou a fala da bruxa. — E, de qualquer forma, não me interessa a sua bunda.
— Vocês não sabem! — argumentou o conselheiro. — Talvez Loenna mude de ideia. Talvez Loenna tenha misericórdia. Talvez…
— Euler… — Aya se manifestou. — Quantas vezes você viu Loenna voltando atrás em uma decisão?
Silêncio. Todos sabiam a resposta, e ela não era nada agradável. Este era o triste fim de Merit, Narael, Arien, Darian, Fowillar e Aya: Pereceriam nas mãos de uma rainha tirana. E ninguém poderia fazer nada para contê-la.
— Eu já aceitei o meu destino… — Merit suspirou fundo. — Mas, sinceramente, eu gostaria de dizer algumas últimas palavras para Serpente. Perguntar por que se foi...
À menção daquele nome, Aya e Fowillar se entreolharam. Será possível? Estavam pensando na mesma pessoa?
— Serpente… — Euler acompanhou o raciocínio dos prisioneiros. — No caso, Gillani Gaspez? Ela está em Carmerrum?
— Ela mesma. — Merit franziu o cenho. — Por quê? Vocês estão… Não. Não é possível…
— Há uma pessoa que não tentamos. — Fowillar abriu um sorriso. Havia esperança. — Somente ela pode convencer Loenna de alguma coisa.
— É uma tentativa — concordou Aya. — O poder de Serpente sob Loenna é maior que o de todos nós.
— O que querem dizer? — Narael também quis integrar-se na conversa. — Serpente e Loenna se conheceram?
Euler rascunhou um sorriso com o canto da boca. Nem tudo estava perdido, afinal.
— Torçam para dar certo, pessoal. — e, deixando o prato nos pés de Fowillar, Euler dirigiu-se para a saída das masmorras. — É a nossa última tentativa.
E, arrastando o pesado portão metálico que cobria as temíveis prisões de Loenna, Euler deixou os prisioneiros a sós. Enquanto em Fowillar e Aya havia um resquício de esperança, Merit enchia seus olhos de lágrimas.
— Mortos. — A mulher repetia para si mesma. — Nós estamos mortos..
Fim do capítulo
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