Inflamável por HumanAgain
Capitulo 26 - Da dança ao fracasso
Narael poderia não ser a maior entusiasta de festas em celebração ao seu pai morto, mas não podia negar que a oportunidade de trajar seus belos e recém adquiridos vestidos era muito bem vinda. Estampando um enorme sorriso no rosto, a garota desfilava em frente ao espelho, admirando o mar de cores vivas que ilustravam a vestimenta. Vermelho, laranja, amarelo: As cores do fogo e, desde sempre, suas cores preferidas.
Mais do que as cores do vestido, lhe aprazia como ele se desenhava em seu corpo. Embora Narael nunca tivesse gastado noites chorando por conta de seu peso — como muitas mulheres faziam — não podia negar que, por vezes, desejou ser mais magra. A garota gostaria de ser alta e esbelta, como muitas mulheres da corte, principalmente porque os vestidos se modelavam muito bem ao corpo dessas senhoras. Ver-se numa peça de roupa que valorizava as suas curvas era raridade, e algo muito apreciado pela princesa vaidosa.
— Narael! — Arien havia acabado de sair do banheiro. Continha a boca cheia de creme dental e ainda vestia roupas de dormir. — Você está simplesmente deslumbrante.
A Eran havia separado trajes igualmente belos. Além do vestido preto de babados comprado em uma loja no dia anterior, Arien escolhera um chapéu de plumas para integrar seu visual. Ainda que seus cabelos estivessem mal cortados, Narael não tinha dúvidas de que ambas atrairiam muitos olhares.
— Obrigada. — Narael sorriu de leve. Merit havia lhe emprestado o estojo de maquiagens (já que ela quase nunca usava, de qualquer forma) e aquilo fora um deleite para a garota Wuri. Depois de muito tempo, estava finalmente gostando do que via no espelho. — Você também vai ficar maravilhosa.
Arien também devolveu um sorriso. Cuspiu o restante de sua pasta de dente na pia e, feita sua higiene bucal, dirigiu-se ao vestido que estava estirado na cama.
Mas, ao contrário do que a princesa poderia imaginar, Arien não estava visando as suas roupas. Na verdade, a moça parecia mais interessada em Narael e seu belo vestido vermelho bufante.
— Eu posso ficar bonita… — E alisou as mangas de Narael. A jovem sentiu sua respiração se perder por alguns segundos. — Mas jamais ficarei linda igual você.
O olhar de Narael se perdeu na boca de Arien por um curto período de tempo. Ela nunca esteve tão bonita, encarando-a como se fosse a maior preciosidade de sua vida. E, petrificada pela mulher que se punha à sua frente, Narael precisou desprender um enorme esforço para não beijá-la.
Não apenas porque não estava certa se queria retomar o relacionamento, mas também porque estragaria sua maquiagem. E a última coisa que Narael queria era ter de refazer todo o seu rosto a minutos da festa apenas porque não conseguiu controlar os seus hormônios.
Arien, que certamente notou a confusão da moça, se pôs a rir. Narael sentiu-se uma palhaça num primeiro momento, mas logo embarcou na gargalhada.
— O que é tão engraçado? — questionou a princesa, ainda entre risos.
— Não sei. Diga-me você, princesa Wuri. — Arien ergueu a sobrancelha de forma sugestiva. Como se isso não fosse suficiente, tomou a mão de Narael na sua e deu um beijinho na sua parte de trás.
De todos os gestos vindos de Arien, aquele fora o mais gentil e suave. Narael gostaria de poder decidir seus sentimentos em relação à moça, mas tudo aquilo apenas enevoava sua mente. Deus, por que tinha que ser tudo tão confuso?
Arien desviou seu olhar de Narael apenas para retirar suas roupas de dormir e trajar o vestido preto que havia comprado. A princesa não queria admitir, mas o corpo da Eran era bastante bonito quando despido. Talvez não tivesse a abundância de curvas com que Narael fora presenteada, mas era singularmente atraente. Os seios pequenos, os glúteos arrebitados, as coxas roliças e até mesmo a leve camada de gordura no abdômen hipnotizavam a moça Wuri com uma sutileza aterradora. Narael jamais admitiria, mas desejava Arien com toda a força de seu subconsciente.
E, enquanto sua mente entrava em conflito ao vislumbrar a beleza de Arien, duas batidas foram ouvidas na porta às suas costas.
— Meninas? — Era Merit. Sua voz era inconfundível. — Eu, Serpente e Darian já estamos prontos. Vocês irão demorar muito?
— Nós… Nós… — O quarto subitamente se tornou muito quente. E Narael não sabia se isso era devido aos seus poderes ou às suas emoções. — Já estamos terminando.
Arien soltou uma risada silenciosa enquanto terminava de ajeitar o vestido e os sapatos.
— Já terminamos, na verdade. — A garota pôs o chapéu de plumas na cabeça. — Vamos, Narael. Temos uma festa para comparecer!
A princesa abriu a porta, ainda com as bochechas vermelhas. Se Merit notou seu desconforto, não transpareceu. Ela e Darian também estavam perfeitamente aprumados, sendo que a mais velha trajava um vestido cor-de-rosa longo com ornamentos dourados e o garoto vestia um terno cinzento, acompanhado de calças da mesma cor e sapatos sociais. Tinha um chapéu fedora na cabeça e havia aplicado um pouco de perfume; era possível sentir seu cheiro a metros de distância.
Serpente, contrariando o quarteto, estava tão casual quanto sempre. Um corpete preto, calças que iam até abaixo do joelho — não era socialmente aceitável que mulheres usassem calças, mas Serpente nunca se importou com regras sociais, de qualquer forma. — e sandálias cujas tiras envolviam o peito de seu pé e o tornozelo. Embora não fosse possível notar, Narael sabia que a ladra trazia um punhal na cintura. Ela sempre carregava seu fiel companheiro, para o caso de algo dar errado.
— É hora de entregar as máscaras. — Merit também havia adquirido algumas no centro. Eram ambas pretas, cobriam do início da testa até o fim do nariz e tinham uma tira atrás do tecido para que pudessem se ajustar à sua usuária. — Não as tirem nem por um segundo, meninas. Lembrem-se: Vocês são fugitivas.
Arien e Narael tomaram uma máscara cada uma. Os tons escuros do acessório combinaram com o vestido preto de Arien, mas não exatamente harmonizavam com o vestido vermelho de Narael.
— Vocês estão lindas! — Merit bateu palmas silenciosas. — Bom, acho que já podemos ir. Já passou da hora! Por Deus, vamos nos atrasar!
E, de uma só vez, o quinteto atravessou o corredor, velozes como raios. Os cavalos estavam do lado de fora e os esperavam para a maravilhosa festa na mansão Nalan.
***
O preço do ingresso era, como Narael antecipara, salgado. Serpente, contudo, conseguiu barganhar com maestria e reduziu seu valor de cem para oitenta moedas de ouro por cabeça. Essa mulher seria capaz de conquistar o mundo se assim quisesse, pensou Narael.
Um segundo problema emergiu em seguida: O segurança não queria deixá-las entrar sem que descobrissem o rosto. E, mais uma vez, Serpente foi a salvadora, porque usou toda a sua lábia para deixar as garotas entrarem sem que fosse necessário se revelar.
— Você sabe como é, a Isen e a Rayri — estes eram os nomes que Serpente havia atribuído a Narael e Arien, respectivamente — sofreram um acidente com fogo quando eram crianças. O rosto delas é todo deformado. Não as force a passar por esse trauma terrível…
Ainda assim, a ladra teve que subornar o guarda com vinte moedas de ouro. Considerando a vantagem que havia obtido com o porteiro, ainda estavam no lucro. E, desta forma, o quinteto conseguiu se esgueirar sem maiores problemas para dentro da mansão Nalan.
A festa seria quase inteiramente nos jardins, visto que era proibido adentrar a mansão por qualquer outra razão que não fosse necessidade de ir ao banheiro, e Narael agradecia a essa restrição. Entrar naqueles vastos corredores e lembrar-se das aulas mortificantes que tinha dia após dia lhe despertaria sentimentos ruins. Além disso, os jardins de sua antiga moradia eram grandes o suficiente para acomodar toda a sorte de convidados, fazendo com que a restrição de espaço não fosse um problema tão grande.
— Essas estátuas… — Arien deslizou os dedos por um dos anjos de mármore que ornamentavam a fachada. — Foi meu pai quem as construiu. Ele adorava anjos.
Narael não respondeu. Ouvira sobre Morius Eran antes: Era um homem excêntrico e perfeccionista, conhecedor profundo de inúmeros assuntos. O próprio Eran projetara sua mansão — que se tornou propriedade de Loenna Nalan após a guerra —, a despeito de não ser formado em arquitetura. Embora fosse descrito como mesquinho, cruel e insensível, não se poderia negar que tinha uma vocação quase natural para o design de casas e prédios. A mansão Nalan não estaria de pé se não fosse ele.
E, por um momento sórdido, Narael desejou tê-lo conhecido. Loenna não o descrevia com bons adjetivos, mas, afinal, quem se importa com Loenna? Talvez Morius não fosse tão ruim assim. Talvez Morius tivesse seus motivos para cometer os seus crimes, quem sabe? Nunca, em momento algum, cogitou-se pensar a história pelo lado dos derrotados. Quem era o verdadeiro Morius Eran? Narael jamais saberia.
— Dizem que eu nasci aqui. — Os olhos de Arien se encheram de lágrimas. — Nesta casa. Em um quarto ao lado da cozinha, próximo ao segundo banheiro. Foi lá que minha mãe me deu a luz.
— No meu quarto, então — disse Narael, sem pensar muito. Arien assentiu.
— É. — Embora uma lágrima escorresse pela bochecha da garota, Arien estava sorrindo. — Você nasceu lá também, não nasceu?
Narael balançou a cabeça verticalmente.
— Quem diria que nossos destinos se cruzariam desta forma. — Com o canto da boca, a princesa Wuri sorriu.
Com o relógio marcando quatro horas em ponto, a banda que sempre marcava sua presença se pôs a tocar. Narael a conhecia de longa data, mas, desta vez, sua música parecia diferente. Contrariamente à indiferença que afetava a princesa em seus tempos de adolescente, a música afetou seu coração de uma maneira suave e sublime. Era o mesmo som, exatamente igual ao que sempre ouvira em todas as festas de Digan, com apenas uma diferença: Narael se sentia mais leve. Mais livre.
Logo se deu conta que as amarras que a prendiam aos custosos compromissos estavam cortadas. Ela não era mais Narael Wuri, era apenas uma garota comum do reino. E, sendo reconhecida como tal, poderia viver sua vida como uma pessoa anônima. Uma pessoa que não estava sob os holofotes o tempo todo. Uma pessoa como todas as outras.
E, inflada de um sentimento prazeroso, Narael estendeu sua mão para Arien. Pensar que aquele ato gentil não estamparia os jornais com letras garrafais, que anunciariam o suposto romance da princesa Wuri com a filha de Morius Eran, lhe fazia rascunhar um sorriso em seus lábios tingidos de vermelho.
— Me daria a honra desta dança?
Arien não esperava tal solenidade da amiga e amante. Surpreendida de forma agradável, a Eran tomou a mão de Narael, aproximando-se da moça a passos curtos. Narael era muito mais alta que Arien, de forma que a princesa conseguia sentir a respiração da outra se quebrando em seu queixo.
— Não precisa perguntar duas vezes. — E lançou uma piscadela.
Narael sorriu. Embora fossem fortes os boatos do envolvimento de Loenna com mulheres — Que, mais tarde, a princesa descobriu serem verdadeiros — não se via com bons olhos duas garotas dançando juntas, próximas como um casal. A princesa, contudo, não se importava. Que venham as fofoqueiras! Os futuros comentários sobre as garotas mascaradas que tomavam uma a outra como se fossem homem e mulher inflamavam Narael como uma faísca em um amontoado de feno.
Os olhos de Arien se perdiam na boca da garota Wuri. A cada passo, a Eran se sentia mais enamorada. Rodopiou sob a condução da amada e, após girar em torno de si mesma, riu com uma jovialidade invejável. Estavam se divertindo como duas crianças, e ninguém poderia tirar delas tal prazer. O sentimento que se aflorava era real e verdadeiro, e as manteria unidas tanto tempo quanto durasse.
Serpente sorriu ao observar os movimentos de suas protegidas. Sua sagacidade a permitiu notar que as garotas precisavam de mais privacidade.
— Merit, vamos comer alguma coisa. — Puxou a bruxa pelo vestido. — Há uma fartura enorme de petiscos nesta festa.
— Eu não estou com fome. — Merit também estava encantada com a delicadeza dos movimentos de Arien e Narael. Se fosse possível, as observaria até que um novo dia surgisse. — Pode ir, Serpente, eu a aguardo.
— Também há uma variedade enorme de bebidas. — A ladra ainda tentou convencer seu par. — Podemos molhar a garganta com um pouco de… Suco.
— Eu só bebo água. Mas também não estou com sede — disse Merit. — Pode ir, mulher. Eu a espero aqui.
Serpente decidiu ser direta, uma vez que as insinuações não funcionavam. Ao pé do ouvido de Merit, sussurrou, de forma sutil:
— Merit, as meninas querem beijar na boca — lançou Serpente, e a bruxa arregalou os olhos. — Nós somos velhas, elas não se sentem confortáveis na nossa presença.
— Oh. — Merit pareceu, então, compreender. — Nesse caso, vamos comer. Quero provar alguns docinhos.
Envergonhada, Merit disparou como um animal selvagem para a mesa de doces. Serpente não pôde evitar de soltar uma risadinha.
Mal chegou à vasta mesa de doces, Merit encheu sua mão com alguns deles. Alguns feitos de chocolate, outros à base de leite, tudo o que a bruxa sempre quisera degustar e nunca tivera acesso em sua casa no meio da floresta. O gosto açucarado das iguarias era muito apreciado; Merit lambeu os lábios a cada doce provado.
— Me parece que você estava com fome, no final das contas — provocou Serpente.
— Eu? Não. — A boca de Merit estava abarrotada de doces. — Só estou sentindo falta do gosto dos chocolates. Me lembro deles quando era uma criança, minha mãe sempre compartilhava uma caixa comigo. É tão delicioso…
Serpente sorriu. Salivava por uma cerveja, mas como não queria incentivar a amante alcoólatra a cair em tentação, decidiu-se por um suco de laranja
— Sabe o que eu acho? — De uma só vez, a ladra virou o conteúdo de seu copo. — Nós também deveríamos aproveitar a melodia, Merit.
A bruxa franziu o cenho.
— O que quer dizer? — E empurrou o último docinho para dentro de sua boca. Serpente riu baixinho.
A ladra estendeu a mão direita para a amante. Abriu um sorriso sugestivo e, tomando uma flor do jardim com a esquerda, entregou-a para Merit.
— Me daria a honra desta dança, formosa dama? — Uma piscadela breve foi suficiente para abrir no rosto da Kantaa um extenso e saudoso sorriso.
— Ora, Serpente! — Merit aceitou o gesto da amante. Com a flor em mãos, sentiu o seu aroma; era doce como os chocolates que havia provado. — Você é realmente uma romântica em série, não é?
— E você adora o meu jeito cafajeste. — As feições malandras de Serpente não se desfizeram. — Eu sei disso.
Merit não se via em posição de negar. Riu deliciosamente e, completamente envolvida pela lábia da criminosa, se pôs a dançar à melodia romântica que invadia seus ouvidos.
***
Darian havia corrido para a mesa de salgados antes mesmo que a banda começasse a tocar. Não era comum que Merit providenciasse aquele tipo de comida em sua casa, de forma que o rapaz se fartou. A variedade de alimentos era, para ele, um sonho.
— Ei, ei, calma lá. — Julien tentou freá-lo. Era o quinto sanduíche do garoto. — Você vai passar mal se continuar comendo assim.
— É tudo muito bom! — disse o garoto, com as palavras abafadas pela quantidade de comida em sua boca. — Julien, esse de presunto está divino!
— Você veio aqui para comer, é? — repreendeu o fantasma, com desinteresse. — Vamos beber. E dançar. E encontrar garotas. É muito mais divertido!
— Julien, enquanto eu estiver no controle do meu corpo, você fica quietinho, ok? — impôs-se o jovem. — O que é aquilo? É um hambúrguer?
O fantasma bufou. Estar preso a um afilhado espiritual comilão não era nada divertido.
— Você está segurando vela, se não percebeu. — O incômodo do morto era latente. — Arien e Narael estão dançando, Merit e Serpente também. Só nós, os idiotas, estamos aqui provando os sanduíches de frango.
— É presunto — corrigiu o jovem. — Mas não seja por isso, Julien. Você quer dançar comigo?
— Engraçadinho.
Por mais inesperado que possa parecer, Darian não estava irritado com o seu padrinho espiritual. Ao contrário: Divertia-se com os protestos e as lamúrias de Julien. Estava claro que o morto insistira para ir à festa em busca de farra, bebida, garotas, e Darian apenas queria se divertir à sua maneira.
O sabor do hambúrguer era tão prazeroso que quase fez Darian se esquecer a razão pela qual havia pedido para ir à festa. Para a sua sorte — ou azar — o motivo de seus devaneios desfilou bem diante de seus olhos, e estava incrivelmente lindo: Faer, o garoto que encontrara na frente da casa de Wuari, vestia-se com um sobretudo preto e um chapéu marrom simples. Ria alegremente ao lado de uma garota muito parecida com ele, que Darian esperançosamente torcia para que não fosse sua namorada.
O Kantaa sentiu seu coração errar uma batida. A temperatura subiu, o chão se tornou mole. De repente, os deliciosos aperitivos que antes tinham sua atenção não eram mais tão importantes.
— …E, sinceramente, você não sabe se divertir. — Se Darian conhecia Julien, ele provavelmente havia feito um monólogo durante o último minuto. Para o bem dos seus ouvidos, não havia escutado uma palavra. — Gostaria de poder me dissociar de você, mas infelizmente não posso.
— Julien — chamou o rapaz. — Eu acho que não estou mais com fome.
— Ah, finalmente! — clamou Julien. — O que vai fazer agora? Mais alguma ideia de entretenimento tedioso? Admirar as fontes de anjinho?
— Não — Esse seria um terreno fértil para o fantasma. Darian precisaria entrar nele com cautela. — Eu quero… Conhecer pessoas.
Julien se manteve em silêncio por um breve momento.
— Acho que a razão soprou na sua mente, rapaz — manifestou-se. — Vamos lá, hora de mexer esse esqueleto. Encontre uma garota. Qualquer garota. Irei te ajudar a conquistá-la. Não quero te influenciar, mas aquela loirinha me parece…
— Eu quero aquela ali. — Darian apontou para Faer. Agora, ele estava sozinho; sua companhia havia se retirado para buscar um drinque.
— Está bem, existem outras meninas bonitas neste baile. Vamos ver a… — E, ao se virar, deparou-se com algo diferente do que imaginava. — Darian, não é uma garota.
— Pois é. — Confirmou o jovem. — É um garoto.
— Você gosta de garotos? — Perguntou Julien, confuso.
— Algum problema? — Darian se colocou na defensiva. Não havia contado aquele segredo nem mesmo a Merit; não que fosse possível esconder algo dela, claro.
— Claro que não. Mas eu não sei se posso te auxiliar com isso, nunca flertei com garotos. — E deu de ombros. — Eu pensei que gostasse de mulheres, porque Narael…
— O gênero de alguém não é importante para mim. — Lançou. — Me interesso por pessoas, independentemente disso.
— Bom… — disse Julien. — O gênero de uma pessoa definitivamente é importante para mim.
— Julien, eu não sou você.
O silêncio sepulcral de Julien arrepiava os pelos de Darian, de seu dedo do pé até o último fio de cabelo. Questionou qual era a possibilidade de perder seu padrinho espiritual por conta de algo estúpido; o vínculo era vitalício, mas nada impedia Julien de simplesmente… Viras as costas para Darian. E, neste caso, como ele lidaria com a situação? Carregaria por aí um fantasma que não o aceitava, que rejeitava seu afilhado?
O alívio somente recaiu sobre seu corpo quando Julien, munido do bom humor de sempre, voltou a soprar em sua mente:
— O que está esperando? — questionou. — Temos um rapaz para conquistar!
Darian não saberia mensurar o conforto que sentiu com aquela simples frase. Não teria que batalhar pelo respeito do morto.
— Você vai me ajudar? — Darian umedeceu os próprios lábios. — Eu não levo jeito com pessoas…
— E quando eu não te ajudei, criatura? — O jeitinho arrogante de Julien ainda estava ali, e Darian o julgava particularmente engraçado. — Vamos lá, o primeiro passo para conquistar alguém é conversar com aquela pessoa.
Darian cogitou soltar uma risada, mas toda a sua segurança foi embora quando seus olhos cruzaram com os de Faer. O Kantaa ajeitou a gravata, torcendo para que não fosse reconhecido de prontidão, mas suas preces falharam. Faer abriu um sorriso imenso e fez um sinal para que Darian se juntasse a eles.
— Ele… Ele está me chamando — murmurou Darian, por entre os dentes.
— Só você percebeu isso — ironizou Julien. — Vai lá. Você não quer beijar esse moço? Este é um excelente começo!
— Julien… — O diabinho interno de Darian implorava para que o garoto desse as costas e saísse pela porta da frente.
— Já está perdendo tempo. — Julien simulou um bocejo. — Pelos meus cálculos, você está dez segundos atrasado. E agora onze. E agora doze…
Darian não teve escolha além de se locomover, pé ante pé, em direção a Faer. Sentiu o sangue rugir em seus ouvidos e sua respiração se tornar mil vezes mais custosa. Um caminho de pouco mais de um metro converteu-se em uma passarela de quilômetros de distância; mas, após alguns passos custosos, finalmente o garoto Kantaa estava de frente ao homem desejado.
E ele era ainda mais bonito de perto.
— Olá! — Faer, ao contrário de Darian, não parecia ter problemas com a timidez. — Você se lembra de mim? Eu sou o Faer!
Como se fosse possível esquecer.
— Ofereça sua mão a ele — sussurrou Julien. — Cumprimente-o. Seja educado, você não quer causar uma má impressão.
Darian ergueu sua mão direita para que Faer a apertasse. No entanto, o tremor intenso e o suadouro abundante definitivamente não contavam pontos a favor do Kantaa.
— Eu… Sou o Darian. — Ele não havia se esquecido do próprio nome, e esta já era uma vitória. — Me lembro sim. Você estava na… No… Na rua.
Faer, para a sorte do rapaz, não se importou com os tremores e nem com a sudorese. Apertou a mão de Darian como se fossem amigos de longa data, deixando escapar uma risadinha suave.
— Você é engraçado — disse o outro, e Darian não tinha certeza se queria ser rebaixado ao papel de palhaço. Contudo, não é como se ele tivesse muita opção. — Essa é Savine. Ela é minha irmã.
— Prazer. — A moça de cabelos crespos e pele escura também tomou a mão de Darian, e parecia carregada de uma alegria singular. Darian a julgou bonita, mas não tanto quanto Faer.
— Se der errado com o garoto, podemos tentar com ela? — O Julien inconveniente estava de volta. — Por favor, Darian!
— Eu sou o Darian. — Com um sorriso amarelo, o Kantaa tentava dispersar as amolações de Julien.
— Eu sei. Você acabou de dizer — devolveu Savine, sem desmanchar o sorriso.
Darian teve certeza que nada seria mais aprazível naquele momento que um súbito chá de sumiço.
— Pergunte como eles estão. — Para a sua sorte, o Julien aconselhador não havia sumido. — Seja cordial, simpático.
— Como eles estão? — disparou Darian, sem pensar muito. Logo se deu conta de que havia cometido uma enorme gafe. — Vocês! Desculpe, vocês! Como vocês estão?
Faer e Savine sorriram, mas não era um sorriso de deboche; era um sorriso acolhedor, um sorriso caloroso.
— Nós estamos bem. — Foi Faer quem respondeu. — E você, como está?
— Estou… Estou bem… — Darian teve certeza que estava mais vermelho que uma pimenta. — Muito bem… Melhor impossível.
Cada frase dita apenas piorava a sua situação. Merda, por que ele não conseguia ser apenas um garoto normal?
— E Julien? — Darian fez uma careta. Não esperava que Faer se lembrasse daquele momento infeliz entre ele e seu padrinho espiritual. — Ele está bem?
— Diga que eu não existo — aconselhou o fantasma. — Invente uma desculpa, qualquer uma. Não queremos que ele se assuste, certo?
— Julien me pediu para dizer que ele não existe.
E, se tivesse um corpo físico, Julien teve certeza que estaria acertando a testa com um tapa nesse exato momento.
Faer, contudo, não achava o embaraço de Darian constrangedor. Ao contrário: bebericou de um copo que tinha em mãos e sorriu confortavelmente.
— Gabriel também vive me dizendo isso. — E deu de ombros. — Ele diz que as pessoas não vão lidar bem com a nossa amizade.
Darian apertou os olhos, e desta vez o padrinho não tinha acréscimos a fazer; estava tão confuso quanto seu afilhado. Mais um garoto que falava com os mortos?
— Quem… — Esta era a pergunta que não queria calar. — Quem é Gabriel?
— Meu amigo imaginário, oras! — devolveu Faer. — Não é disso que estamos falando?
Bem, ao menos Darian não seria obrigado a lidar com outro fantasma pentelho.
— Dizem que eu estou velho demais para essas bobagens. Mas eu não me importo, Gabriel me faz bem. — Faer deu de ombros. — Gosto de conversar com ele, principalmente quando eu o vejo.
— Você… — Talvez aquele garoto fosse mais louco do que o próprio Darian. E, inexplicavelmente, o Kantaa gostava disso. — Você vê o Gabriel?
— Só quando eu uso umas plantas diferenciadas. — Faer piscou, na expectativa que Darian compreendesse a que ele se referia.
Contudo, o jovem Kantaa apenas devolveu um olhar inexpressivo.
— Maconha — explicou Faer, por fim. — Só quando eu uso maconha.
— Ah… — Não era comum que Darian tivesse acesso a substâncias alucinógenas, mas Merit já relatara ter feito uso da cannabis algumas vezes. — Eu nunca usei.
— Não? — Faer demonstrou espanto. Savine também arregalou os olhos. — Cara, você precisa usar uma vez na vida. É uma experiência única, saca?
— Eu… Vou me lembrar disso. — Darian não era um grande fã das substâncias que alteravam sua consciência. Ele, sóbrio, já era maluco o suficiente.
— Você fica só na cachaça, então? — Savine se manifestou, também com um copo em mãos. Darian não precisou de muitas sinapses para adivinhar o que havia dentro.
— Na verdade… — O rapaz coçou a cabeça loura. — Eu também nunca…
— Você nunca bebeu? — comentou Faer, com assombro. Darian fez que sim, e até mesmo Julien (que havia se mantido calado até então) fez questão de se manifestar:
— Darian, você é muito bom menino. — A voz do fantasma soprou em sua cabeça. — Está na hora de aprontar umas traquinagens.
— Não — devolveu o Kantaa. Merit tinha problemas com álcool, de forma que bebida alcoólica não era muito recorrente em sua casa. — Minha mãe meio que… Era alcoólatra.
— Para a sua sorte… — Faer abriu um sorriso. — O que tem nesse copo é a mais pura cachaça.
E ofereceu a bebida para Darian, envolvendo-a em uma mensagem clara. Darian refletiu por algum momento se valia a pena; não sabia como lidaria com seu próprio estado de consciência embriagado, se embarcaria numa viagem espiritual ou se despertaria fantasmas. Merit claramente não ficaria nada feliz em vê-lo bebendo, supôs.
Mas, do outro lado, Julien não era capaz de manter-se calado:
— Bebe! Bebe! Bebe! — insistiu. — Vamos lá, Darian! Eu estou morrendo de vontade de sentir o gosto do álcool novamente.
E, completamente influenciado pela alma penada que habitava sua mente, Darian tomou o copo das mãos de Faer e o entornou por completo na garganta.
***
Era a quinta música que Arien e Narael dançavam juntas. O corpo das meninas parecia se encaixar perfeitamente, feito para aquela melodia compassada; em perfeita sintonia, Narael conduzia os passos de Arien, e Arien entregava-se aos braços da princesa Narael.
Ao fim das notas musicais, porém, Narael puxou o corpo de Arien com mais força do que deveria. A garota Eran desequilibrou-se e levou Narael ao chão ao fazê-la tropeçar em seu longo vestido vermelho. Em conjunto, Arien também caiu, pousando próxima de sua princesa.
O que era uma situação constrangedora de início tornou-se motivo de risada entre as jovens. Sentiam-se tão livres, tão soltas, tão serenas. O mundo seria capaz de cair e elas não se importariam, porque tinham uma à outra.
— Você dança bem — comentou Narael, com um sorriso tímido.
— Bom, foi você quem me conduziu… — devolveu Arien. — Então acho que não sou merecedora desses elogios.
Narael levou as mãos para os cabelos quase-rasteiros de Arien. Ela tomava ares misteriosos com aquela máscara preta cobrindo os olhos, e, aos olhos da princesa, ficava ainda mais sedutora.
— Arien… — E deslizou o polegar pelo queixo da garota Eran. Seus batimentos estavam acelerados; algo estava gritando por ali. Algo forte, algo intenso.
— Narael… — retornou Arien, aproximando seus lábios ainda mais do rosto de sua amada.
Por um breve momento, Narael fechou os olhos para sentir o beijo. Sabia que esse seria o desfecho inevitável daquela dança, e o aguardara desde que convidou Arien para dançar. A moça fechou os olhos, prendendo a respiração, e apenas permitiu que a boca da moça encontrasse a sua…
Mas, para a infelicidade das meninas, uma trombeta soou no mesmo exato segundo. No coreto que ficava no centro dos jardins, uma multidão de guardas se aglomerava; os organizadores da festa queriam chamar atenção para algo. E este algo não era o amor de Arien e Narael.
A moça Wuri não se incomodou em perturbar sua paz para voltar-se ao que quer que a mansão Nalan estivesse celebrando — nunca fora algo útil, mesmo. — mas uma fala de Arien a tirou de seu conforto:
— Narael, aquela não é sua mãe? — apontou.
Virando-se de súbito, Narael apertou os olhos e viu, ao vivo e à cores, a famigerada Eliah Conelli. Ela trajava um vestido azul liso e segurava alguns papéis em mãos, provavelmente o discurso que iria proferir. Ao seu lado, alguns homens seguravam retratos dos guardas que foram mortos na invasão ao casebre de Merit. A moça quis vomitar apenas ao rever o rosto mal diagramado de Leosandre.
— Boa tarde a todos! — Eliah chamou a atenção da multidão. Era de bom tom que os presentes interrompessem suas atividades para prestigiar o discurso dos que ali residiam, mas nem todas as pessoas pareciam preocupadas com formalidades. — Meu nome é Eliah Conelli, e eu gostaria de dar início à vigésima festividade em memória ao meu marido.
Eliah e Digan nunca foram verdadeiramente casados, Narael bem sabia disso — porque Aya havia revelado — mas, como não era socialmente aceito que uma mulher engravidasse de um homem sem que estivessem casados, Eliah omitia essa parte de seus discursos.
O que muito intrigava a garota Wuri era que, embora Loenna frequentemente faltasse aos seus discursos menos importantes, seu substituto natural seria Fowillar. O que Eliah fazia, tomando o lugar da rainha no púlpito?
— Antes disso, contudo… — A responsável pelas finanças do reino tomou uma mão junto ao coração. — Eu gostaria de prestar minhas condolências aos nossos soldados mortos pelos bandidos dos Eran.
Narael precisou segurar uma risada de escárnio. Os Eran, claro. Como se Arien tivesse sequer encostado em um dos homens da morte. Ou, pior: Como se eles não tivessem tentado agredi-la de uma forma cruel.
Quando desviou o olhar para a amiga, Narael notou que os lábios de Arien estavam contraídos. Ela também parecia reprimir um xingamento, uma interrupção, o que fosse. Certamente se manter calada estava sendo um martírio.
Darter subiu ao púlpito acompanhado de Lenrah Moran, e seu rosto parecia inchado de tanto chorar. Encarou os olhos de Leosandre pelo retrato e reprimiu uma lágrima que se formou em seus olhos; a maneira como aquele soldado ignorara completamente a tentativa de estupro enojava Narael.
— Bem… — Darter tomou o lugar de Eliah. — Meu nome é Darter Arqah, eu sou soldado da guarda real. Estou aqui para dizer que hoje o mundo é um lugar cinzento. O mundo é um lugar feroz. Porque meus amigos, homens que juraram proteger a si mesmos e à população carmerri, estão mortos.
Arien buscava não olhar diretamente para a foto de Leosandre. Aquele homem lhe dava náuseas, e ela ainda conseguia sentir a mão pesada do facínora rasgando as suas roupas. Não fora um bom homem, e não merecia homenagens.
— Leosandre, Eawil, Khadrian, Zurdan, Warseth, Kevu, Kram. — Darter levou uma mão ao peito. — Meus companheiros de batalha. Homens fiéis, honrados, que jamais ousariam machucar um inocente.
Arien revirou os olhos.
— Narael — sussurrou a Eran — Acho que vou ao banheiro.
— Você também está cansada de toda essa bobajada, né? — adivinhou Narael. Arien assentiu com a cabeça. — Vai lá. Eu te aguardo aqui quando tudo terminar.
Arien agradeceu silenciosamente e correu sorrateiramente até o banheiro. Os seguranças estavam empenhados com o discurso de Darter, de forma que não notaram quando a garota Eran ultrapassou os limites estabelecidos para adentrar a casa.
Usualmente, alguém a acompanharia até o banheiro. Mas, como sequer fora percebida, Arien teve a liberdade de transitar livremente pela mansão Nalan — o lugar onde nasceu.
Tudo ali era assombrosamente lindo. Arien conseguia ver o dedo de seu pai em cada centímetro, seja na disposição dos azulejos do chão, seja nas pilastras. Os lustres que iluminavam a sala eram majestosos e do gosto de Júnior, seu irmão mais velho, mostrando que Morius não pensara apenas em si ao construir aquela fortaleza. Os móveis provavelmente eram do gosto de Loenna — E era esta a razão pela qual Arien não gostava delas.
Estava ali para ir ao banheiro, mas não seria de todo mal se passeasse um pouco pela casa que sua família construiu. O local parecia vazio e silencioso, e caso fosse surpreendida, Arien poderia afirmar que havia se perdido; com uma faixa cobrindo a marca Eran no antebraço, ela era apenas mais uma cidadã comum, e não uma desprezível Eran.
Seu impulso foi verificar o quarto onde ela nascera. Seria o seu no futuro, caso Loenna não tivesse tomado as posses de sua família. Por ironia do destino, quem se deleitava daqueles aposentos era Narael; então, talvez, Arien não estivesse invadindo a privacidade de ninguém. Era a sua amante que dormia ali, não era?
A moça dirigiu-se ao quarto pretendido e abriu a maçaneta com cautela. Estava destrancada, para a sua felicidade, e parecia vazio. O interior de Arien rodopiou de felicidade; finalmente iria voltar ao lugar de onde nunca deveria ter saído.
Os móveis do quarto estavam consumidos pelo fogo, o que já era esperado. O papel de parede era cor-de-rosa e a roupa de cama estampava o desenho de belas rosas, mas o que chamou a atenção de Arien não foi nenhuma dessas coisas; um cheiro característico de formol invadiu suas narinas.
E, quando a garota voltou-se à escrivaninha, percebeu que o inferno a aguardava.
As cabeças de seus irmãos. Um a um, afogados em recipientes de vidro cheios de formol. Júnior, Lochiar, Ashlor, Kyedar, até mesmo o jovem Ethel, que tinha sete anos de idade. Suas feições estavam cinzentas e inchadas pelos químicos, mas podia-se facilmente reconhecê-los. Cada um dos Eran tinha um buraco de bala na cabeça, e suas expressões eram de puro pavor.
Arien sentiu seu coração disparar. Não, aquilo não poderia ser verdade. A Eran tirou a cabeça de Júnior do formol, apenas para se assustar ainda mais com o que via e atestar que era real. Seus irmãos estavam mortos, cada um deles, até mesmo no seu pequeno sobrinho não se via mais vida.
A garota sentiu as lágrimas escapando por seus olhos, como se fossem duas cachoeiras. Não queria mais estar viva, não queria mais lutar. Não havia como voltar para casa, sua casa não existia mais. Depois de tanto tempo sonhando com um abraço apertado dos irmãos, descobrira que eles não passavam de troféus na casa de Loenna Nalan. Ela jamais receberia as broncas, abraços, carinho e cuidado de seus irmãos.
Mortos. E feitos de souvenir por uma rainha lunática.
Arien precisava contar a Narael. Ela era o seu maior — e, agora, único — refúgio. Elas precisavam derrubar Loenna Nalan, não havia mais alternativa. Aquela mulher era cruel, perversa, grotesca, sádica. Completamente tomada pelo pavor e terror, a garota Eran disparou pela porta de entrada, sendo notada pelo segurança desta vez — que nada fez além de repreendê-la. Arien, contudo, tinha problemas maiores.
— Narael! — A jovem berrou por entre as pessoas, não se preocupando em usar seus nomes falsos. Havia algo maior que isso em jogo. — Narael, por favor!
A garota Wuri apareceu, rápida como um guepardo, do meio da multidão. Ao ver Arien em frangalhos, franziu seu cenho.
— Não use nossos nomes de verdade! — repreendeu. — E… Por que você está chorando?
Arien tentou dizer, mas tudo o que saiu de sua boca foram gemidos ininteligíveis. A moça desabou nos braços de Narael, completamente vulnerável. E Narael achou que ela precisaria de alguns cuidados.
— Vamos tomar um pouco de água. — Carinhosa, Narael deslizou os polegares pelas bochechas de Arien. A moça Eran, completamente destruída, sentiu-se apenas na posição de assentir.
***
Darian estava completamente bêbado.
Após um copo inteiro de cachaça, o jovem não conseguia sequer se localizar naquele monte de pessoas. O chão parecia se movimentar, e tudo ao seu redor rodopiava. Conversava alguma coisa com Faer, mas não sabia dizer o que; sentia todos os sanduíches que devorara anteriormente voltando por sua garganta, mas não conseguia vomitar de fato.
— Darian, você está mal — Julien constatou. — É melhor sair daqui, ou o garoto que você quer vai te achar um bêbado sem noção.
— Eu estou bem! — A fala arrastada deixava claro a quem estivesse ali que Darian não estava bem. — Olhe, consigo andar em linha reta!
Mas, após dar dois passos para frente, Darian tropeçou nos próprios sapatos e caiu de cara no chão. Ele estava muito alterado.
— Darian, você quer um copo d'água? — Faer franziu o cenho. — Gabriel me disse que você não está bem.
Savine assentiu com a cabeça, em concordância. Darian queria negar ao máximo que necessitava de ajuda.
— Está tudo bem! — Mais uma vez, o Kantaa mentiu. — Faer, você não quer…
E ele veio: O vômito. Darian regurgitou um líquido esverdeado e nojento, cheio de pedaços de alimentos boiando. Tanto a dupla de irmãos quanto Julien perceberam que talvez fosse hora de tirá-lo dali.
— Darian, não faça isso! — Julien tentou ajudar, mas era tarde demais. — Me deixe tomar conta do seu corpo, por favor, só por agora…
— Não! — O garoto berrou a Julien, mas Faer e Savine também escutaram. — Meu corpo é meu, só meu, eu não vou deixar você…
Mais um vômito. Darian iria esvaziar todo o seu estômago em questão de minutos.
— Eu vou chamar alguém para ajudar. — Faer estava verdadeiramente preocupado com o amigo. — Savine, fique aqui cuidando dele. Acho que podemos levá-lo para casa enquanto ele não se recupera.
Savine assentiu, e Faer se perdeu em meio à multidão. Darian tentou se levantar ainda duas ou três vezes, mas perdia o equilíbrio e ia ao chão no mesmo segundo.
— Darian, não perca o controle! — Julien soprava em sua mente, mas era inútil. — Vamos lá, repita comigo: Um… Dois… Três… Três… Dois… Ei, espere um segundo… Aquela lá não é a Narael?
Darian virou seu rosto para o lado. De fato, Arien e Narael estavam na mesa de bebidas, tomando água. Ou cachaça. Qualquer coisa, Darian não saberia diferenciar. E Arien se parecia um pouco…
— A Arien está realmente bem mal — constatou o fantasma. — Acho que aconteceu alguma coisa.
— Eu vou lá ver! — Darian se levantou de imediato. Para o azar de Julien, naquele momento ele conseguiu se pôr de pé. — Eu vou ajudar as minhas amigas!
— Darian! — Savine chamou, mas Darian já havia corrido em direção às meninas. No meio da multidão, a jovem acabou por perder o amigo Kantaa.
Narael tentava umedecer os lábios de Arien com um pouco de água, mas a jovem estava completamente arrasada. Não conseguia respirar, era como se um peso de dez quilos estivesse em seu peito; tudo o que tinha na vida eram seus irmãos, e agora eles haviam ido.
— Você está melhor? — Arien não respondeu. — Eu posso te ajudar?
Arien fungou. Seu corpo todo doía. Decidiu-se, por fim, jogar para fora: Não poderia manter aquele segredo consigo durante muito tempo.
Sorveu uma imensa quantidade de ar e, quando estava prestes a falar, foi surpreendida por Darian.
— Oi! — O rapaz balançou freneticamente as mãos. — Está tudo bem?
Arien não tinha forças para interromper seu choro, mas Narael parecia preocupada com o amigo — talvez mais do que estava com Arien.
— Eu é quem lhe pergunto. — Uniu as sobrancelhas. — Está tudo bem, Darian?
— Diga que não está — aconselhou Julien. — Ela irá chamar Merit e te ajudar. Você precisa de repouso, Darian.
— Eu estou bem! — Novamente, a fala arrastada era denunciadora. — E Arien, como está?
A garota Eran perdeu-se no choro. O mundo estava caindo, desabando à sua frente. Nada mais valia a pena e tudo o que tinha era mais frágil que uma folha de papel.
— Ela matou, Narael! — Fungou. — Ela matou os meus irmãos e o meu sobrinho. Todos eles. Suas cabeças estão sendo guardadas em potes com formol. Eu estou sozinha, não tenho mais família!
Narael arregalou os olhos, estática. Pensou que Loenna era cruel, mas não a esse ponto; cortar as cabeças de toda uma família, incluindo o de uma criança de sete anos, não era um ato digno de uma governante. Era um ato digno de uma tirana.
Pensou em dizer algo para Arien, mas a voz falhou. Se perguntou como estaria em seu lugar, e certamente tentaria incendiar toda Carmerrum. Não havia respostas certas neste caos; Arien estava sozinha, desamparada, derrotada. Era impossível pensar em uma maneira sensata de lidar com aquele trauma.
— Isso é um absurdo! — Como se não bastasse o problema com a garota Eran, Narael teria que lidar com um rapaz bêbado. — Eu vou agora perguntar para Loenna que porcaria é essa! Me esperem!
E, trombando com as pessoas, Darian disparou em direção ao coreto. Narael via-se em uma sinuca de bico: Não era prudente deixar nem Arien e tampouco Darian sozinhos. Arrastou a jovem Eran consigo e buscou acompanhar o Kantaa, embora ele fosse pouco receptivo aos seus pedidos.
— Darian! psst, Darian! — O garoto parecia determinado. Era pouco provável que conversasse com a Loenna em pessoa, mas o seu grau de embriaguez seria suficiente para causar um estrago. — Fica aqui, Darian!
Arien permitia ser puxada, mas não fazia esforço nenhum para seguir a trajetória; apenas era conduzida por Narael. Darian, que por algum motivo se tornou extremamente rápido, pisava fundo pelo caminho que seguia. Era possível identificar sua trajetória devido ao caminho de pessoas irritadas que o menino deixava para trás.
— Darian, isso é perigoso! — alertou Julien. — Me deixe tomar conta do seu corpo, você não está em seu juízo normal.
— Cale a boca, Julien! — berrou o garoto, enquanto tropeçava em um degrau. — Eu preciso ajudar a minha amiga!
Eliah ainda fazia o discurso. Quando o rapaz bêbado chegou ao seu pé, a mulher franziu o cenho; já havia lidado com etilistas antes, mas Darian parecia um tipo especificamente ousado de bêbado.
— Garoto, o acesso não é permitido para pessoas não autorizadas. — Sem a compreensão de que falava com um Kantaa, Eliah tentou ser serena e pacífica.
— Eu preciso… — Darian debruçou-se para vomitar. — Eu preciso falar com Loenna Nalan em pessoa!
Eliah quase esboçou um sorrisinho com a audácia do rapaz.
— A rainha Loenna está dormindo — anunciou Eliah. — Agora vá, dê meia volta. Não queremos resolver isso usando a força.
No entanto, Darian não recuou. Cuspiu no chão e encheu seus pulmões de ar. Narael, a poucos metros de distância, conseguiria alcançá-lo, mas temia ser reconhecida por Eliah. Talvez aqueles seguranças estúpidos fossem fáceis de engabelar, mas a própria mãe? Não seria uma tarefa tão fácil.
— Loenna MATOU os irmãos da MINHA AMIGA! — Darian sustentou um dedo apontado para a tesoureira. — Vocês são COVARDES!
Eliah ergueu uma sobrancelha, e Narael levou uma mão à testa. Darlan estava prestes a jogá-las aos leões; alguém teria que impedí-lo.
— Sua amiga… — Eliah tinha quase certeza de quem Darian estava falando, mas quis confirmar.
— Arien Eran! — cuspiu Darian. — Ela não fez nada, e vocês a deixaram sozinha e desamparada no mundo! Não é mesmo, Arien?
E voltou-se à garota Eran, ainda apoiada em Narael, sem forças para ter qualquer reação. Imediatamente, todos os pares de olhos se voltaram para as moças; Narael só queria poder sumir naquele exato momento.
Um homem percebeu que Arien carregava uma faixa no antebraço e a tirou, sem nenhuma delicadeza; o símbolo prateado da águia brilhou com o reluzir do sol. O disfarce estava desfeito: Narael se encolheu.
— A RAPTORA ESTÁ AQUI! — berraram os súditos. Narael não poderia se revelar, do contrário, confirmaria a narrativa que a Eran a havia sequestrado. — DIANTE DE NOSSOS OLHOS!
— GUARDAS! — ordenou Eliah. — PRENDAM ESSA CRIMINOSA! E LEVEM ESSE GAROTO TAMBÉM!
— Arien — sussurrou a princesa — Você precisa fugir. Anda, vamos sair daqui antes que eles…
No entanto, as pernas de Arien travaram no pior momento. A moça se ajoelhou e começou a chorar copiosamente. Não havia nada que Narael pudesse fazer para salvá-la.
— Não importa — balbuciou a Eran — Nada mais importa.
Enquanto isso, Darian tentava se livrar das mãos pesadas dos guardas, mas estava bêbado demais para qualquer coisa. Julien sequer conseguiu tomar controle de seu corpo, porque o rapaz não raciocinava o suficiente sequer para deixá-lo no comando.
— Chame Loenna. — Uma veia latej*v* na têmpora de Eliah. Ela se voltava a Lenrah Moran. — Ela precisa saber que isso está acontecendo.
***
Merit e Serpente dançaram até que seus corpos se cansassem. Embalaram-se no ritmo romântico e na melodia doce, permitiram que a harmonia do som as levasse. Merit, veterana do amor, estava completamente apaixonada por sua parceira; nada seria capaz de despertar nela sentimento mais intenso do que o olhar escuro de Serpente sobre si.
— Você é o paraíso… — sussurrou a Kantaa — E, ao mesmo tempo, o inferno. Cheia de delícias e de pecado.
Serpente sorriu, satisfeita com a comparação feita. Continuava a conduzir Merit, compenetrada nas doces notas que chegavam aos seus ouvidos. Era como um sonho.
No entanto, de súbito a banda cessou suas atividades. Merit e Serpente pararam; encararam uma à outra. Não demoraram a perceber que um alvoroço se formava ao redor do púlpito onde estavam os subordinados da rainha, com gritos indistinguíveis e clamores passionais.
— O que está acontecendo? — perguntou Merit.
— Se você, que lê mentes, não sabe, então imagine eu. — brincou Serpente. — Vamos lá ver. Algum bêbado deve ter arrumado confusão.
As mulheres abriram caminho por entre as pessoas, levando alguns xingamentos e dedos do meio no processo. A muito custo, alcançaram o local desejado: um ponto apertado no meio da aglomeração, onde era possível ver com alguns detalhes o que acontecia no coreto.
E Merit levou um susto ao perceber que, no centro daquele caos, estava…
— DARIAN! — urrou. — O que meu filho está fazendo lá?
Serpente apertou os olhos e percebeu que de fato o jovem Kantaa estava no epicentro da confusão. Guardas apertavam seus braços e ele parecia, a todo custo, querer se livrar dos homens, sem sucesso.
— Ele parece bêbado — contestou Serpente.
— É apenas impressão. Darian não bebe. — O coração de Merit estava quase escapando pela boca. — Eu preciso ir até lá, proteger o meu bebê. Não vou deixar fazerem coisas horríveis com ele, não vou…
— Merit! — repreendeu Serpente. — Merit, não é seguro, venha aqui!
E, apressada, Merit abriu caminho em meio a uma multidão de pessoas, trombando com Narael. Serpente não ficou para trás; a contragosto, seguiu sua amante em meio ao mar de pessoas. Quando chegou, a bruxa estava trocando algumas palavras com a menina, completamente transtornada:
— …Você precisa ajudar Darian! — implorou. — O que esses guardas vão fazer com o meu bebê?
— N-não sei, Merit. Eles também estão com Arien. — E apontou para a garota Eran, que também estava presa pelos soldados, embora não oferecesse resistência. — Tenho medo. Disseram que vão chamar Loenna, e…
— Não há problema, neste caso. — Serpente se intrometeu. Parecia serena, calma, tranquila. — Tenho certeza que Loenna irá agir com a razão.
Narael se viu confusa. Se havia algo que não era do feitio de Loenna, este algo era agir com a razão.
— Como pode ter tanta certeza? — Ou Serpente sabia de algo que Narael perdera, ou ela estava redondamente enganada.
Serpente abriu um sorriso suave, mas antes que pudesse explicar, Loenna entrou em cena. Ela trazia consigo um guarda costas enorme, que carregava uma mangueira em mãos.
— Muito bem. — Loenna simulou um bocejo. — A que devo esta perturbação da minha paz?
— Vossa majestade, — começou Eliah. — A raptora Eran foi encontrada. E esse garoto, que afirma ser seu amigo, está com ela.
Um guarda chutou uma das canelas de Darian. Loenna voltou-se a ele, pensativa.
— Qual o seu nome, rapaz?
— Darian. — Agora, o jovem tremia de medo. — Darian Kantaa.
— Vê? É um Kantaa! — afirmou Eliah, transbordando de ódio. É claro que o fato de Eran e Kantaa serem inimigos históricos não veio à tona; não era conveniente. — Estamos lidando com inimigos!
Loenna levou as mãos às costas. Caminhou em círculos por um longo tempo, ponderando qual seria sua próxima atitude. Narael, lá embaixo, mordia os lábios. Que Serpente esteja certa, pensou.
— Vai dar tudo certo. Loenna é uma pessoa ponderada — aconselhou Serpente. — Ela irá liberá-los, parar com essa perseguição estúpida, e…
— Leve-os para o calabouço — ordenou a rainha. Serpente arregalou os olhos, chocada; não esperava tal atitude da governante magna de Carmerrum. — Vou avaliar o melhor dia para executá-los. Não quero manchar o dia de Digan com sangue.
— Mas o que… — Serpente ainda tentava entender o que havia acontecido. Era esta a Loenna que conhecia?
Narael, que não via outra alternativa, retirou sua máscara. Suas feições estavam expostas para quem bem entendesse, e, agora, não havia mais motivo para se esconder.
— ESPEREM! — berrou, a amplos pulmões, e conseguiu a atenção de boa parte dos súditos. — Eu sou Narael Wuri! A princesa da corte!
Alguns olhos se arregalaram àquela descoberta, incluindo os de Eliah; não os de Loenna, contudo. A rainha ergueu as sobrancelhas; não parecia surpresa, apenas entediada.
— Arien não me sequestrou — Era o que estava entalado em sua garganta há tempos. — Eu incendiei meu próprio quarto. Eu fugi com ela para protegê-la. Tudo isso é uma grande mentira!
Narael não tinha certeza do que esperava da rainha. Certamente não uma confissão de culpa ou um pedido de desculpas, não seria assim tão fácil; contudo, tudo se provou um grande quebra-cabeça quando a rainha, munida de um sublime desprezo, lançou:
— Eu sei.
E, ao estalar os dedos, o guarda-costas acionou a mangueira. Molhando todas as pessoas num raio de pelo menos dez metros, o homem deixou Narael completamente encharcada; a jovem gritou, pensou em protestar, até que um segundo guarda veio contê-la.
Logo Narael percebeu a razão da água; tentou queimar o rapaz, mas seus poderes pareciam não se manifestar. Estava molhada demais para que o fogo que deixava seus dedos se tornasse real. A desgraça vinha a galope, e agora ela estava completa.
— Sei que você me enganou, Narael — contou Loenna. — Me fez achar que estava em apuros, mas armou um complô com esta Eran para me destituir do trono. Eu sabia que vocês estavam juntas; sempre estiveram.
Eliah tombou a cabeça para o lado. Não estava ciente desta conclusão; aparentemente, Loenna havia chegado a ela sem consultá-la.
— Perdão, rainha, mas como isso faz sentido? — Ainda havia um sopro de sanidade em Eliah. — Narael seria sua sucessora de qualquer forma. Ela não precisaria destituí-la, ainda mais em complô com uma Eran, para tornar-se rainha.
A jovem Wuri torceu para que Loenna ouvisse a mãe, como sempre fazia. Era ridículo pensar que Narael tinha essa ambição; a garota Wuri sequer gostava das obrigações de sucessora!
— Cale-se, Eliah, ou eu punirei você também. — Loenna não parecia querer dar razão a ninguém além dela mesma. — Lenrah, cuide de dispersar a multidão. Vou voltar aos meus aposentos agora, vocês sabem o que fazer. Prendam todos que se opuserem às minhas ordens.
Serpente finalmente pareceu sair do estado de petrificação a que fora submetida. Loenna era uma tirana maluca, essa era a verdade; e não existiam formas de esconder tal verdade incômoda.
— LOENNA! LOENNA! — Serpente berrou, mas era tarde demais. A rainha já havia se retirado. — MEU AMOR! LOENNA!
Os guardas conduziram Arien, Narael e Darian para os calabouços, enquanto Lenrah Moran pedia para que a multidão se afastasse. Merit, no entanto, não se dava por vencida.
— Eu não vou sair daqui até vocês trazerem o meu filho de volta! — berrou. — Ele não tem nada a ver com essa confusão, é apenas um garoto. Tragam-no de volta!
Lenrah olhou para um de seus companheiros. O homem assentiu com a cabeça.
— Nesse caso, madame, você virá conosco. — O segundo guarda segurou Merit. — Loenna não permitiria que a mãe de um Kantaa arruaceiro continue perambulando por aí.
— Isso é ridículo. Perdão, mas isso é ridículo. — manifestou-se Serpente. Merit tentou se desvencilhar, mas não conseguiu. — Merit não fez nada. Você vai prendê-la apenas por ser mãe de alguém?
— Está querendo vir junto, madame? — Um terceiro guarda apareceu do limbo. Ele tinha revólveres em sua cintura e afiadas lanças em suas costas.
— Eu tenho certeza que Loenna não me quer presa… — Serpente tentou argumentar. O guarda sorriu.
— Eu tenho certeza que quer — debochou, partindo para cima de Serpente na mesma hora. A ladra, como era de se esperar, se esquivou.
— Lenrah? — Ela chamou o chefe da guarda real. Lenrah estava, como sempre, sério e sisudo. — Você sabe quem eu sou, não sabe?
Lenrah, pesaroso, assentiu.
— Não vai deixar me levarem presa, certo? — Agora, cerca de cinco ou seis guardas estavam em torno de Serpente. Os homens apenas aguardavam uma ordem de seu superior.
Lenrah suspirou fundo. Ajeitou a arma no coldre, tirou um par de algemas da cintura. Não parecia animado em fazer aquilo.
— Ordens são ordens, Serpente. — E fez um sinal para que seus homens a atacassem.
Serpente viu o inferno recair sobre sua cabeça. Proteger Merit ou proteger a si mesma? Eis a questão. Seis homens imensos iriam tentar prendê-la, um dos quais havia tido aulas com ela vinte anos atrás, e ela estava completamente encurralada.
Só havia uma saída.
Quando um homem investiu, Serpente abaixou-se, agarrando as pernas do guarda e levando-o ao chão. Um quase chegou perto de agarrar seus pés, mas a ladra se virou de imediato e o acertou na coxa com o punhal. Enquanto o primeiro guarda se recuperava do tombo e, o segundo, da punhalada, os outros quatro — incluindo Lenrah Moran — se lançaram de uma vez em direção a ela.
Serpente foi esperta. Utilizou toda a sua flexibilidade para içar-se em um dos guardas, um homem de quase dois metros de altura, e pulou as cercas-vivas que envolviam os jardins da mansão Nalan. O guarda sequer conseguiu pôr suas mãos na mulher, tão rápida fora a ação. Embora os homens tivessem jogado suas lanças, Serpente não se deixou atingir por nenhuma delas, e em poucos segundos, leve como uma pena, a criminosa já estava do lado de fora, livre das mãos de tão sanguinários homens. Correu como jamais havia se visto; apesar de seus cinquenta anos, ninguém era capaz de bater Serpente na corrida.
E Merit, sozinha naquele caos, estava prestes a chorar. Será que ela voltaria? Será que fora abandonada? Sempre soube que não poderia confiar em Serpente, mas será que a ladra iria virar as costas para a amante num momento tão difícil?
Bom… Serpente colecionava amores. Isto é certo. Por que o de Merit seria importante? Uma pontada atingiu seu coração quando se deu conta disso; essa era a verdade, Serpente não iria voltar.
— Sr Moran! — O guarda escalado berrou. — A prisioneira fugiu!
Lenrah balançou a cabeça horizontalmente. Não queria perder os seus contidos, mas não parecia particularmente interessado em ir atrás da ladra.
— Cuide da outra prisioneira. — E apontou para Merit. — Se mais um fugir, a rainha não ficará nada satisfeita.
— Isso não é justo comigo! — Merit esgoelava. Sua decepção com Serpente ficaria para depois. — Eu não fiz nada! Nem eu e nem o meu filho! Nos liberem, por favor!
No entanto, mesmo com seus gritos e súplicas intensas, os guardas corpulentos ignoraram completamente a Kantaa. Escoltaram-na sem nenhuma delicadeza e, com a vigília redobrada, levaram-na para os calabouços.
Fim do capítulo
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