Inflamável por HumanAgain
Capitulo 21 - Hora de crescer
Darian estava com dor de cabeça.
Julien não o deixava em paz por um segundo sequer, contando-o como havia aniquilado cada um de seus inimigos com suas capacidades sobre-humanas — E o garoto suspeitava que o fantasma exagerava em alguns aspectos, mas, de qualquer forma, não estaria ali para confirmar —, mas não era para isso que a mente do garoto desprendia atenção.
Lembrava-se do exato momento em que deixara seu corpo. Os guardas de Loenna estavam com as armas apontadas para si, prontos para puxar o gatilho. Quando Darian pensou que fosse morrer, tudo ficou escuro.
Bem, ele jamais havia morrido antes. Não sabia como era uma experiência de morte. Contudo, aquilo não se parecia com uma viagem definitiva para o mundo dos que já se foram; Darian sentia seu corpo mais leve que uma pena, e uma viagem alucinada foi a resposta que o garoto teve. Como se já não estivesse cheio de adrenalina no corpo, aquilo se parecia com um surfe no vazio; e, inexplicavelmente, ele conseguia se equilibrar perfeitamente.
Quando aterrissou, estava à sua frente o já conhecido Digan Wuri. Ele estava em frente a um tabuleiro e, na mesma mesa que o jogo, via-se duas canecas fumegantes. O homem, sério, tomou uma delas e bebeu um gole.
— Darian Kantaa?
Como se não o conhecesse, pensou o garoto. Ainda assim, ele confirmou. Parecia estar no meio do nada, somente ele, Digan, um jogo de tabuleiro e duas canecas quentíssimas.
— Eu estou morto? — questionou, apenas para ter certeza. Contudo, acreditava ser improvável que tivesse deixado o mundo dos vivos; ele não se sentia morto, e Darian tinha uma conexão implícita com a morte.
Como era de se esperar, Digan fez que não.
— Talvez você deva olhar às suas costas. — E o homem lançou uma piscadela, apontando na direção do rapaz.
Darian se virou. O que viu, contudo, não era o que esperava. Seu corpo, aquele garoto magrelo e franzino que não conseguia sequer conseguir passar manteiga no pão, fugia de tiros com maestria.
Não era ele que habitava aquela carne. Darian sabia que não.
— Julien? — Era a única resposta possível. Digan assentiu.
— Deixe que seu padrinho tome conta dessa situação por um momento. — Sorriu o morto. — Por enquanto, fique aqui comigo. Preparei um jogo para você.
Darian sentou-se na cadeira que o esperava, mas não mexeu as peças.
— Eu não sei jogar xadrez — comentou, encarando a disposição dos objetos.
— Não é xadrez. São damas. — Bom, isso apenas confirmava os dizeres de Darian. — É bem mais fácil, eu vou te ensinar. Enquanto isso, tome um gole de café.
— Eu não gosto de café. — Tudo aquilo era muito esquisito. Enquanto seu corpo se envolvia em uma batalha sangrenta, sua alma jogava damas e tomava café com um morto.
— Ah, não importa. — Digan fez um sinal com a mão. — Não é café de verdade. Esse líquido assume o gosto da sua bebida preferida. No meu caso, é café.
Darian deu de ombros. Tomou um gole da caneca em mãos, e a bebida tinha um gosto açucarado de refrigerante. A melhor das coisas que Merit trouxe da cidade, pensava.
— O que estou fazendo aqui? — Afinal, havia de ter um propósito.
— Esperando seu padrinho espiritual usar o seu corpo. — Digan bebericou o café. — Ele não deve demorar muito. Enquanto isso, fique aqui para passar o tempo. Tudo é tão tedioso no mundo dos mortos…
— E se ele morrer? — Darian não podia negar que havia essa possibilidade.
— É possível que aconteça — disparou Digan. — Mas, se acontecer, você saberá. Por enquanto, relaxe. Não é problema seu.
— Definitivamente é. — Uma vez que o corpo usado era o seu, Darian achava que tinha direito de participar das escolhas a respeito dele.
Digan, contudo, apenas lançou um sorriso de canto de boca.
— É a sua vez. — Apontou para o tabuleiro.
Aquela cena se repetia vertiginosamente em sua cabeça. Darian a havia revisitado cerca de quatro ou cinco vezes, e até o momento não encontrara propósito. Era um passeio inusitado… Tirar férias de seu corpo para jogar damas com um morto.
Julien, contudo, não o deixaria refletir sobre as coisas estranhas que haviam acontecido mais cedo em paz.
— Então eu destrocei aqueles filhos da puta com o revólver! — E contraiu seu bíceps, como se tivesse um corpo físico. — Eles jamais voltarão a te incomodar, Darian, porque estão mortos! Mortinhos da Silva!
— Julien, — Darian interrompeu. — Como você conseguiu fazer isso?
O fantasma, a princípio, não entendeu a pergunta. Franziu o cenho, uniu as sobrancelhas.
— Eu já falei, treinei durante minha vida inteira. — E se sentiu levemente ofendido pelo questionamento. — Eu era um revolucionário. Como minha filha, Loenna. Garanto que assim que eu conversar com ela, ela desistirá dessa ideia estúpida de perseguir as pessoas, e…
— Não, Julien — repreendeu Darian. — Como você conseguiu entrar no meu corpo?
Enfim, o fantasma compreendeu.
— Não sei. — Coçou a própria nuca. — Eu só pulei em você, e… Foi uma ideia. Que deu certo.
Darian abriu a boca para dizer alguma coisa — nem mesmo ele sabia o que —, quando Narael apareceu na porta do quarto para lhe dar a notícia que esperava.
— Darian… — Embora tivesse escapado ilesa daquele confronto, a garota parecia assustada. Havia visto coisas que não queria, certamente. — Merit e Serpente pediram para você arrumar suas coisas. Iremos partir daqui a uma hora.
— Para onde? — Darian não compactuava com aquele plano maluco das mulheres mais velhas, mas não tinha como negar que ficar naquele casebre (que agora fedia sangue) era pouco produtivo.
— Não me faça perguntas. — Narael deu de ombros. — Vamos usar a cavalaria de Loenna para encontrar algum lugar em Quentin Nalan. E isso é tudo que eu sei.
Dado o recado, a garota Wuri preparou-se para se retirar. Contudo, Darian ainda tinha um assunto a ser tratado com ela.
— Narael… — chamou, tímido.
A garota se virou de súbito. Estava linda, mesmo com o cabelo cortado irregularmente; O jovem se perguntou quais as possibilidades dos dois terem um futuro juntos, se não fosse Digan. Embora a achasse deslumbrante, não conseguia mais se arriscar a ter qualquer coisa com ela.
— Sim? — Narael estava curiosa.
— Eu… — O rapaz mordeu o lábio inferior. — Encontrei com seu pai durante a batalha. Achei que gostaria de saber.
Narael arregalou os olhos. Digan era um assunto sensível para ela; tinha certeza que sua vida seria muito diferente se tivesse crescido junto à figura paterna.
— E o que ele disse? — Ela estava sedenta em descobrir.
Darian forçou a mente. Não tinha muitas informações daquele encontro além do jogo de damas e do café que não era café.
— Ele me disse para protegê-la — respondeu Darian. Narael esboçou um sorriso com o canto da boca; seria mais fácil a garota protegê-lo do que o contrário.
— Diga que estou muito grata pela preocupação. — Escolheu ser educada, embora ambos soubessem que aquele pedido era ridículo. — Sei que você fará o máximo para que isso aconteça.
Darian assentiu com a cabeça. Havia outro assunto que ele queria tratar com ela, porém, e a conversa com Digan fora apenas um pretexto.
— Narael… Sobre o nosso beijo… — tossiu. — Eu acho que tenho algo a dizer para você.
Ela esfregou o antebraço.
— É — concordou. — Eu também.
Darian não sabia de onde reuniria coragem, mas teria de dizer; aquele assunto não poderia ficar mal resolvido. Os dois tiveram um envolvimento, afinal, mesmo que breve.
— Eu acho… — Os olhos de Darian estavam em seus próprios pés. — Que a presença de Digan me impactou tanto que eu não consigo mais… Você entende, não é?
Narael sorriu com doçura. Não era o tipo de confissão que ela estava esperando, mas, no fundo, não esperava nada.
— Darian, eu sinto o mesmo. — Ainda havia pendências com Arien a serem resolvidas, mas isso a deixava tão confusa que Narael preferia manter tal questão para si mesma. — É complicado estar com alguém que pode incorporar o meu pai a qualquer momento. Me assusta um pouco.
Agora que Digan e Darian estavam relativamente próximos — afinal, eles haviam tomado café e jogado damas juntos! —, estar com Narael seria impensável. Não era o tipo de proximidade que ele queria ter com seu sogro.
— Acho que não foi feito para dar certo — concluiu o rapaz. — Foi só algo esporádico.
Mais uma vez, Narael balançou a cabeça verticalmente. Não sabia como tratar daquele assunto com o jovem Kantaa, mas uma vez que essa conclusão havia partido dele, era um alívio poder concordar com ela.
— Eu ainda quero ser próxima de ti. — Afinal, ambos haviam descoberto que tinham mais em comum do que imaginavam. — Mas talvez eu não queira…
— É — cortou o menino. — Eu também não.
Narael encarou Darian. E Darian encarou Narael. O fim daquela conversa foi marcado com um sorriso mútuo e uma compreensão amigável. De fato, não haviam nascido para ser um casal.
— Eu vou ajudar Arien a fazer as malas — despediu-se a jovem Wuri. — Merit deu alguns vestidos para ela. No meu caso, fica um pouco complicado, porque nenhuma das roupas de sua mãe me serve…
— Você vai encontrar vestidos bonitos na cidade — confortou Darian. — E poderá tirar essa camisola fedida.
Narael repousou as mãos na cintura, franzindo o cenho. Apesar de tudo, estava sorrindo.
— O que tem de errado com a minha camisola? — Era uma das suas roupas de dormir preferidas, afinal.
— Nada! Nada! Não tem nada com a sua camisola! — Percebendo que havia dito o que não deveria, Darian começou a hiperventilar. — Só que você está com ela desde que chegou, e, e…
Narael riu de leve. Não estava realmente irritada com Darian; percebendo a leveza nas feições da garota Wuri, o rapaz se pôs a rir também.
— Te vejo lá. — Ela se despediu. — Até mais ver, Darian.
Com um aceno, Narael sumiu pelos corredores fedendo a putrefação. Darian, embora tivesse acabado de ser rejeitado, sentia-se mais leve; não queria magoar Narael, e não queria que aquele martírio se arrastasse por muito mais tempo.
— Boo! — Ouviu, em sua cabeça. Era a voz de Julien.
Darian pulou com o susto. Procurou o fantasma por toda a extensão do quarto, mas ele não estava lá; certamente o havia escutado, mas de onde?
— Julien? — Apertou os olhos. — Onde você está?
— Aqui, seu idiota. — A voz do homem seguiu reverberando em seu cérebro. — Dentro de você.
Claro. O único refúgio daquele fantasma reclamão era o corpo de Darian.
— Como você fez isso? — Afinal, ele ainda habitava seu corpo; não era como a possessão de outrora. — Eu ainda tenho pleno controle das minhas ações. Não é possível que…
— Aparentemente, eu posso escolher se tomo conta de você ou se só fico na sua cabeça — respondeu Julien. — Acabei de descobrir. Mas você precisa permitir que eu tome conta do seu corpo para que eu de fato me incorpore em você.
Aquilo estava começando a ficar confuso.
— Eu deixei da outra vez? — Afinal, ele não se lembrava.
— Claro, idiota — O jeito delicado de Julien o tocava. — Você rezou para que alguém o ajudasse, não foi? Esse alguém fui eu.
Agora, tudo fazia mais sentido. Deveria ter conversado com Julien antes de tentar controlar seus poderes; estava claro que não conseguiria fazer isso sem uma conversa intensa e verdadeira entre ele e os espíritos.
— Mas, mudando de assunto… — O tom de Julien era goz*dor. — Gostei da maneira como você falou com Narael. Foi maduro, um homem de verdade. Mostra que você não é mais uma criancinha.
— Eu tenho 21 anos — resmungou Darian, abrindo a gaveta para pegar suas cuecas. Todas elas foram costuradas por Merit.
— Bom, e pela primeira vez se comportou como um homem — acrescentou Julien. Darian deu o dedo para o fantasma. — Você vai encontrar outra garota, rapaz. Uma bem mais bonita, e que não tenha problemas com o pai.
— Eu não pedi a sua opinião — resmungou, enquanto organizava suas camisas.
— Você sempre precisa das minhas opiniões, garoto, mesmo que não as queira. — Julien era verdadeiramente inconveniente, mas ainda estava no crédito; não era todo dia que um fantasma irritante salvava sua vida, afinal. — Agora vamos lá, arrume isso daqui antes que você fique para trás.
Darian revirou os olhos, mas obedeceu ao comando do fantasma. Poderia não admitir, mas estava ansioso para deixar o casebre de Merit; pela primeira vez, iria viver uma aventura. E, mais do que nunca, estava louco para conhecer o mundo lá fora.
Fim do capítulo
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