Inflamável por HumanAgain
Capitulo 20 - Cabelo, meu precioso cabelo...
— Quantas vezes você fez isso antes? — O barulho da tesoura era aterrorizante para Narael. Jamais havia cortado seu cabelo em outro lugar que não nos cabeleireiros mais renomados de Carmerrum; deixar seu visual nas mãos de uma ladra desleixada era como um conto de terror.
— É a primeira vez — confessou Serpente, para a infelicidade da garota, sem demonstrar um fio de preocupação sequer.
— Serpente, se você estragar o meu cabelo… — grunhiu Narael, sentindo as pesadas mãos da mulher mais velha em suas longas madeixas escuras. — Eu juro que vou te queimar todinha.
Serpente esboçou um sorriso divertido.
— Nesse caso, teremos churrasco de carne de cobra. — Não se intimidou pela ameaça de Narael. À jovem Wuri, restou apenas bufar, irritadiça.
A falta de luz e habilidade da cabeleireira deixavam Narael com a certeza de que odiaria seu visual após o corte. Mas foi apenas quando a tesoura lambeu seus cabelos, passando pouco acima do ombro, que a garota sentiu um verdadeiro aperto em sua garganta.
— Pronto. — Serpente, alheia a qualquer descontentamento de Narael, segurou aproximadamente trinta centímetros de cabelo como se não fosse nada. — Vou pegar um espelho para você.
E entregou o resultado de sua peripécia para a moça, agarrando um espelho à sua frente logo em seguida. Narael sentiu-se mal apenas em segurar a grande quantidade de cabelo que não mais estava em sua cabeça, mas ao ver seu reflexo, soltou um grito.
Ela não estava feia. Estava pavorosa.
— O que você fez? — E passou as mãos pela nuca, alisando os fios pretos curtos que pendiam dela. — Eu estou parecendo um menino.
— Então está irreconhecível, o que era nosso objetivo. — Serpente bateu com as mãos no corpete preto, livrando-se do cabelo que havia se prendido nele. — De nada, Narael.
A jovem sentiu seu corpo inteiro queimando. Fuzilou Serpente com o olhar e pensou seriamente em cumprir sua promessa de incendiá-la, mas Merit interveio antes que a garota Wuri pudesse culpar alguém por sua péssima aparência.
— Não acho que somente o corte de cabelo irá safá-la, Narael. — A bruxa levou uma mão ao queixo. Ainda estava praticamente sem cor, e uma enorme faixa corria de sua axila até seu pescoço; para sua sorte, havia ferido o lado direito do corpo, e era canhota. — Talvez a gente precise maquiar você e Arien.
O olhar da garota se voltou a Arien. Seus cabelos estavam bem mais curtos que os de Narael; antes volumosos, os cachos de Arien haviam praticamente desaparecido, e a moça estava quase careca. Não parecia se importar tanto com isso quanto a garota Wuri, contudo.
— Vão me reconhecer de qualquer forma — resmungou Narael. Não estava gostando daquela ideia; queria ficar diferente, e não horrenda. — Eu estou quase o tempo todo maquiada.
— Como palhaça? — devolveu Merit; Narael teve certeza que aquela era uma provação por ter fugido das aulas e fumado escondido.
— Vocês vão me maquiar de… — A palavra sequer queria deixar sua garganta. — Palhaça?
— Você e Arien — reforçou a bruxa, pouco preocupada. — Assim, passarão por artistas de rua e não serão reconhecidas. Vou pegar meu estojo de maquiagens.
E, mais uma vez, estavam tomando decisões por Narael sem consultá-la. Bem, ao menos desta vez ela estava sendo transgressora; o que não ajudava muito, porque ela estava feia, fedendo e querendo incendiar tudo o que via pela frente.
Sem opção, restou à jovem Wuri sentar-se abaixo de uma árvore, observando o sol nascer ao longe. Serpente se retirou para ajudar Merit, que ainda sentia muita dor, e Darian estava brigando com Julien em algum lugar longínquo. Dessa forma, as meninas se viram sozinhas.
Elas se entreolharam. O que havia acontecido com a polícia de Loenna não poderia ser esquecido, mas o momento logo depois da partida de Laeran também não; Narael tinha sentimentos ambíguos em relação a Arien. Ela ainda era a sua chave de controle, o que significava que o amor ainda estava ali. Contudo, o que dissera outrora fora tão… Sórdido. Cruel. Pesado.
E Arien, a jovem Eran que por pouco não estava morta, pensava o mesmo. Narael salvara sua vida e não fora apenas uma vez, além de ter impedido que ela passasse por um trauma horrível; estava certa sobre Laeran, a ladra fora responsável por um ataque noturno. Contudo, ela ainda disse se arrepender de ter protegido a vida de Arien. Um ataque verbal desse nível não se apaga de forma tão simples.
Por um momento, o silêncio reinou. Arien tinha desculpas a pedir, sabia que tinha; Narael, adicionalmente, precisava se abrir para sua amada. Entretanto, nenhuma das duas conseguia dar o primeiro passo; as últimas palavras que trocaram ressoavam na mente das garotas, como o som persistente de um berrante, deixando claro que havia algo mal resolvido ali.
Foi quando Arien, ainda calada, espiou com o canto de olho o espelho que Serpente havia abandonado, próximo a Narael. Impulsionou seu corpo até ele e o pegou em suas mãos, vendo pela primeira vez como o corte de cabelo havia ficado.
E, dando-se conta de que seus preciosos cachinhos não estavam mais ali, a jovem Eran começou a rir. Expurgou todo o conteúdo de seus pulmões numa gargalhada longa e barulhenta. Narael, que também havia passado por aquele trauma, não entendia o que havia de tão engraçado em um corte de cabelo.
— Por que está rindo? — Foi a primeira frase que teve coragem de trocar com Arien, após dias sem se falarem.
— Eu estou ridícula. — Limpou uma lágrima que escapava por seus olhos. — Achava que Kyedar não sabia cortar cabelo, mas Merit…
Narael rascunhou um sorriso doce. Lembrava-se de Kyedar, um dos irmãos de Arien. Ele a havia tratado mal, mas tinha um carinho caloroso pela irmã caçula.
— Eu também estou. — Pela primeira vez, Narael cogitou achar graça em seu corte torto. — Isso aqui está completamente irregular. Eu vou matar Serpente.
— Acho que as duas precisam aprender a cortar cabelo. — Arien repousou as mãos sobre a barriga, cessando sua risada aos poucos.
A outra concordou. Contudo, uma vez quebrado o gelo, sabia que tinha outros assuntos a tratar além das parcas habilidades do casal de mulheres mais velhas com a tesoura.
— Arien… — A garota Wuri passou a língua pelos lábios. — Eu preciso conversar com você. De verdade, feito adulta.
A moça Eran encheu seus pulmões com uma intensa quantidade de ar. Tinha alguns pontos a se desculpar, e outros tantos para pedir respostas.
— Você estava certa. — Doía a ela admitir que confiara em uma traidora. Contudo, não havia outra verdade. — Laeran não era uma boa pessoa. Eu confiei demais nela. Eu, Merit e Serpente.
— Não é exatamente sobre isso que eu queria conversar. — Embora tenha, de fato, sido um erro acolher a jovem ladra, Narael acreditava que não era hora de discutir erros passados. — Quando eu disse que deveria ter deixado Loenna te matar. Se lembra?
Arien suspirou.
— Eu jamais poderia esquecer.
— Só queria dizer que falei isso na hora da raiva. — Não poderia amenizar o peso das palavras ditas, mas faria o máximo para deixar Arien saber que não pensava aquilo de fato. — Eu não me arrependi de ter fugido com você. De todas as escolhas que eu tomei, acho que essa foi a mais acertada.
— Mesmo se você tivesse dito isso em calmaria, — rebateu Arien. — eu entenderia. Fui estúpida, te acusei de coisas que você não merecia. É claro que você está certa em desconfiar das pessoas, nem todo mundo é bom.
— Mas é importante que você saiba que não foi. — Afinal, em seus momentos sãos, Narael jamais diria algo para machucar a amiga e amante. — Eu fui tão podada pela minha mãe e por Loenna que ser descredibilizada me desperta sentimentos horríveis. Não gosto de não ser levada a sério.
— Eu entendo tudo isso. — Arien se dava por vencida. Sentia-se envergonhada, queria retirar tudo o que fizera antes; Narael só queria protegê-la. — Eu deixei-me enfeitiçar por Laeran, aqueles olhos castanhos bonitos e aquele sorriso aconchegante. No final das contas, ela não valia nada.
Um bolo se formou na garganta de Narael. Não estava pronta para ouvir aquela confissão de Arien; todas as suas suspeitas eram reais, e Laeran era uma ameaça real ao seu amor.
Amor? Era isso que sentia pela garota Eran?
— Você… — Narael rodopiou os polegares em torno deles mesmos. — Você quis ela em algum momento? Se é que entende o que eu estou falando…
— Talvez. — Arien não negou. — Eu me encantei com ela a princípio. Assim como me encantei com você. Não tinha planos de me envolver com a moça, mas não posso negar que… Bem, não importa.
— Definitivamente importa — reforçou a princesa.
— Não posso negar que ela me atraía — disparou Arien, num emaranhado de palavras quase indistinguível. — Talvez o que eu senti por ela seja o que você sente por Darian.
— Eu não sinto nada por Darian. — E isso se tornou ainda mais claro com a súbita incorporação de seu pai no corpo do garoto.
— Bom… — Embora fosse um sabor amargo, Arien teria de engoli-lo; a culpa do envolvimento de Narael com o jovem Kantaa era unicamente dela, sua amante inconsequente. Não havia do que reclamar. — Você o beijou.
— Não preciso sentir algo por alguém para beijar. — Era algo mais complexo do que isso, mas, por hora, Narael preferiu simplificar.
— Eu preciso. Eu acho. Mas não sei de nada. — Arien deu de ombros. — Laeran era bonita, e eu me identifiquei com ela. Dá pra dizer que isso é algo, eu penso.
— E… — Era uma pergunta cruel, mas Narael precisava fazê-la. — Você me deixaria de lado por ela? Se a estadia de Laeran se prolongasse, e ela não tivesse nos dedurado.
Arien balançou a cabeça horizontalmente.
— Fui reprimida demais pelos meus irmãos para aprender a controlar meus sentimentos — ponderou. — Mas não, Narael. Eu jamais te trocaria.
— Bem… — O incômodo que a jovem Wuri sentia era uma pedra no sapato; pequeno, mas suficientemente presente para afetar o seu humor. — Não foi o que pareceu.
Silêncio; apenas o cântico dos passarinhos foi ouvido pelas jovens. E Narael tinha medo do que aquela longa pausa significava. Não era necessário ser um gênio para saber que Arien estava formulando uma resposta.
— Você também pareceu bem interessada em Darian. — Arien dizia isso não como uma acusação, mas como uma constatação.
Apesar disso, Narael sentiu-se ultrajada.
— Eu só beijei Darian porque achei que tudo estava acabado entre nós! — defendeu-se.
— E não está?
Narael encarou os próprios pés. A respiração pesada tomava conta do ambiente. Nunca se imaginou realmente namorando alguém; embora tivesse seus romances efêmeros com garotos que conhecera em bailes, Narael jamais cogitou tomar um deles como seu namorado, parceiro, confidente. Nisso, também se incluía Darian.
Com Arien, contudo, era diferente.
— Está. — O orgulho não a deixaria assumir que queria a Eran de volta, mesmo após todos os seus erros. — Mas não precisava ser assim. Você sabe que não.
Arien inspirou fundo.
— Serpente me disse que o amor é um sentimento esquisito. — Serpente se tornara, afinal, a figura materna que Arien nunca teve. — Eu estive pensando nisso. Não sei muito como te dizer, Narael, mas eu sei que o que sinto por você é único e permanente. O que eu senti por Laeran foi passageiro, mesmo que ela não tivesse nos dedurado.
— Não me anima saber que você cogitou se entregar a ela. — Narael estava, ainda assim, emburrada. — Como pode ter certeza que me ama?
— Aí é que está — Arien retrucou. — Eu não cogitei. Não posso controlar por quem me atraio, mas posso controlar a quem eu me entrego. E nunca, em momento algum, pensei em me entregar a Laeran. Eu te amo, garota, por mais que você não acredite nisso.
Narael mastigou o canto do lábio. Não sabia o que pensar de Arien; sequer sabia o que pensar de si mesma.
— Eu não sei no que você está pensando, Narael, — Só então a jovem notou que estava há quase um minuto em silêncio. — mas eu estou ciente dos meus erros. Eu vou entender se você não quiser mais o meu amor. Eu fui intensa, me precipitei e estraguei tudo. Existem coisas que não são possíveis de serem reparadas.
Tudo o que Arien falara para Narael abrira uma ferida; a atração que ela confessava ter sentido por Laeran também. Mas, apesar de tudo, a princesa não conseguia negar que havia algo entre elas. Algo forte, algo palpável. E não poderia ser jogado no lixo de tal forma.
— Arien, eu… — No fundo, ela também amava Arien. Sabia que amava. — Eu estou confusa. Só isso. Desde que você apareceu, minha vida mudou de cabeça para baixo. Daí, apareceu outra pessoa, mudou tudo o que a gente vinha tendo… É algo intenso demais para eu ignorar. Além disso, eu jamais me vi com uma menina. Estou em uma situação completamente nova, sabe?
Arien rascunhou um sorriso com o canto da boca, e pela primeira vez pareceu ter achado graça naquela conversa.
— Essa atração te assusta?
— Muito — confirmou Narael. — Quer dizer, eu sempre soube que gostava de meninos. Era algo claro para mim, mais claro que a luz do dia. Só que… Você veio, e…
— Acho que é justo dizer que você se interessa por ambos. — Embora jamais tivesse conhecido a Narael que se interessa por homens, Arien acreditava que ela era indissociável da Narael que gostava de mulheres. — Dizem que Loenna também se interessa por pessoas, independente de gênero.
— Sim — Embora fossem apenas boatos, Narael já havia visto o suficiente para confirmá-los. — Mas Loenna não é uma boa pessoa. Eu não quero ser como ela.
— Loenna é uma pessoa ruim porque é tirana, e não porque beija homens e mulheres — lançou Arien. — Não há problema em ser como ela nesse aspecto.
A garota Wuri se calou. Era uma reflexão que deveria ter consigo mesma, num momento de ócio e placidez. Definitivamente não era o caso; estavam fugindo de uma polícia sanguinária juntamente com uma bruxa, uma ladra e um médium.
— Mas, se estiver muito pesado para você… — Arien abriu um sorriso doce. — Eu espero até que possa formular essa conclusão. Sei que errei, e que o perdão não é algo que vem tão fácil.
— Quanto tempo você irá esperar? — questionou Narael.
— Todo o tempo do mundo.
Foi a vez da jovem Wuri sorrir. Queria ter Arien por perto, mas ainda não estava certa se estava confortável para retomar o romance; tanto por questões pessoais quanto pelos erros da garota Eran.
— Bom… — Sentiu uma chama percorrendo por todo o seu corpo. Ela estava leve; isso era algo inédito. — Nesse caso… Acho que podemos ser amigas.
Arien sorriu.
— Eu não aguentaria ficar brigada com você por muito tempo.
E, selando sua união, as garotas se levantaram para abraçarem-se. Narael adorava o cheiro de Arien, e Arien adorava o toque de Narael. A chama que antes percorria pelo corpo da moça Wuri se tornou mais intensa, e logo se extinguiu.
Arien ainda era a sua chave de controle, afinal.
Fim do capítulo
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