Inflamável por HumanAgain
Capitulo 16 - Os mortos nos observam
No restante do dia, Laeran teve um tratamento de princesa. Comeu da comida que Serpente caçou — Sem ter que providenciar nada! —, fez uso dos emplastros que Merit produziu, tudo sem mover um músculo. A cada meia hora, uma das três, entre Merit, Serpente e Arien, adentrava o quarto da forasteira para ter certeza de que ela estava se recuperando bem, que os pontos não haviam aberto, que ela não precisava de nada. Narael quase se arrependeu de ter prestado socorro à moça mais cedo.
O único que se mantinha neutro à confusão toda era Darian. Ele parecia mais preocupado em suas rusgas com Julien, mas era alguém com quem Narael conseguia desabafar. Ao menos, ele não a julgaria de antemão.
— Eu acho que minha mãe deveria tomar mais cuidado com quem ela coloca dentro de casa. — Era a opinião do garoto. Embora talvez soasse ofensiva às meninas, Narael não se importou. Sabia que não era nada pessoal. — Nem todas as pessoas são boas.
Merit seria capaz de ler as intenções de cada desconhecido que pisava em sua cabana, mas ainda assim Narael concordou. Não sabia qual a extensão que o poder da Kantaa tinha, ou se ele era capaz de falhar. Os poderes de Narael por vezes falhavam também.
Esta foi a única frase que a garota conseguiu arrancar de Darian, visto que o jovem Kantaa não era de muitas palavras; Ao menos, não com ela. Depois que Julien aparecera, sua voz tímida era muito mais frequentemente ouvida, porque eram recorrentes os conflitos entre o rapaz e o fantasma.
De noite, o ódio de Narael apenas se intensificou. Fazia frio lá fora, de forma que Laeran e Arien dormiam agarradinhas. Quando questionada, Arien apenas respondeu:
— E você por acaso precisa de alguém para te aquecer, Narael?
Era verdade. A raiva que emanava de Narael gerava calor o suficiente para que seu corpo todo entrasse em combustão. Mas, ainda assim, não era justo que Arien ficasse tão próxima de uma completa desconhecida.
A jovem Wuri não conseguiu dormir. Arquitetava planos diabólicos em sua mente, alguns envolvendo apenas defesa pessoal — Para o caso de Laeran não ser tão boazinha assim. —, outros envolvendo efetiva agressão à nova integrante do grupo; Destes últimos, ela não se orgulhava nem um pouco. Bem, ao menos Merit não estava ali para saber que Narael desejava chamuscar Laeran por completo.
Pontualmente às sete da manhã, em que Narael e Darian costumavam acordar para iniciar seus treinos, Laeran já estava de pé. Tentou cumprimentar a garota Wuri, mas recebeu de volta apenas um olhar gélido; Gélido demais para quem entra em combustão com tremenda facilidade, inclusive. Como já era de se esperar, Narael foi a única que tratou a visitante com indiferença, porque todos — Inclusive Darian. — corresponderam aos seus cumprimentos.
Quando Narael fitou o garoto com seu olhar julgamental, porém, Darian logo se defendeu:
— Eu estou sendo educado. — Sussurrou.
E ela não poderia esperar outro comportamento do rapaz. Ele não se impunha, não sabia se defender com outra pessoa que não fosse Julien. Ao menos, ele lhe fornecera compreensão, e isso era muito.
— Então, Laeren… — Serpente abocanhou a goiaba que colhera de manhã cedo, tão logo o relógio marcou cinco da manhã. Ela despertava antes que todos os outros. — Como passou a noite?
— Bem. Arien foi uma companhia incrível. — E sorriu para sua nova amiga. Narael quis se consumir por inteiro. — Mas acho que já estou indo embora. Devo partir no final da tarde.
Serpente ergueu uma sobrancelha, e Arien foi incapaz de esconder sua insatisfação. Narael, ao contrário, suspirou em alívio.
— Algo de errado, mocinha? — Questionou Serpente. Também havia se esforçado para ser uma boa anfitriã.
— Não. Apenas me sinto muito melhor, e preciso voltar à ativa. — Justificou-se. — Não é nada contra vocês, eu apenas…
— Narael está com ciúmes, apenas. — Interviu Merit. — Não precisa sair daqui tão cedo por conta dela.
Laeren encarou Merit, assustada. O restante voltou suas atenções a Narael, sendo que a expressão de Arien denotava repreensão. A respeito disso, a jovem optou por ignorar; Arien estava enfeitiçada por aquela aventureira dos infernos. Destinou seu olhar raivoso apenas para a bruxa, que usara seus poderes na pior ocasião possível.
— Uh oh. — Merit havia percebido que falara demais. — Acho que fiz bobagem…
— Como você sabe que isso é um problema? — Laeren ainda não estava acostumada com as bizarrices que aconteciam dentro daquela casa. Era fogo, fantasmas e uma leitora de mentes; Coisas surreais demais para que uma simples aventureira pudesse compreender.
— Merit lê mentes. — Arien tomou um gole de seu café. — Darian fala com fantasmas e Narael pega fogo. É por isso que o fantasma que você está vendo não é uma ilusão. Ele é real.
— Sua mente jamais conseguiria projetar uma ilusão tão bonita assim. — O morto piscou.
Laeren encarou os três, assustada. Demorou-se um pouco mais em Julien, que lançou um tchauzinho desajeitado. Quando seus olhos encontraram-se com os de Narael, a garota lhe enviou uma ameaça velada; A aventureira logo percebeu que teria problemas.
— Eu… Acho que bebi demais. — E pegou sua bolsinha no centro da mesa. — Obrigada por me ajudarem. Já estou indo.
— Mas é cedo! — Protestou Arien, e Narael revirou os olhos. — Só porque eu te contei dos poderes do pessoal?
— Não, eu só… — Levantou-se, deixando cair a xícara de café que tomava. — Preciso ir. Obrigada por tudo, gente.
E, sem sequer dar satisfações, Laeren disparou como um raio pela porta da frente. Arien arregalou os olhos, incrédula, e Narael apenas saboreava seu café. Não sabia exatamente qual dos três afugentara a intrusa, mas estava incrivelmente grata ao universo por este desfecho.
— Ela é católica. — Respondeu Merit. — Não sabe lidar bem com um fantasma diante de seus olhos.
— Caramba, que menina chata. — Disse Julien. — Se eu visse um fantasma, iria perguntar para ele várias coisas sobre o pós vida.
— Julien, você é um fantasma. — Devolveu Darian.
— Mas eu não me lembro de nada sobre o pós-vida! — Parecia indignado. — Na verdade, eu não me lembro de nada além do fato de que Triard Saphira é um grande imbecil. E acho que ele é um bosta no mundo dos mortos também, porque…
— Bom… — Se dependesse de Julien, aquela conversa se alongaria infinitamente; Coube a Merit intervir em favor de seu fim. — Hoje, especificamente, não teremos treino pela manhã. Vocês dois podem curtir o dia da forma em que acharem melhor. Depois do almoço, porém, voltaremos com força total, então não se atrasem.
Darian ergueu as mãos para o alto, grato por essa benevolência da própria mãe, enquanto Narael se limitou a anuir. Olhou de soslaio para Arien, que não estava nada feliz; A moça Eran se irritou e deixou a mesa do café, seguindo caminho em direção à claridade da manhã.
Narael decidiu que a acompanharia, porque, afinal, a amava; E, se havia algo incomodando-a (mesmo que fosse o feitiço da aventureira maligna), a jovem gostaria de descobrir.
Não demorou muito tempo para ser completamente repelida pela garota dos cachinhos escuros, no entanto.
— O que você está fazendo aqui? — Rugiu Arien, nitidamente desconfortável com a companhia da amada.
Narael piscou uma vez. Duas. Três. Arien jamais a havia tratado assim! O que acontecia com a garota Eran? Ela era sempre tão simpática…
— Eu quis acompanhar você. — Respondeu, como se fosse óbvio. — Conversar. Jogar conversa fora. Igual todos os dias…
— Bem, pois eu não estou interessada hoje. — Resmungou a garota. — Me deixe sozinha, sim?
— O que aconteceu? — Incrédula, Narael era incapaz de processar a reação de sua amada. Ela estava daquele jeito por causa de uma forasteira? — É por causa da Laeran?
— O que você acha? — Devolveu.
Só poderia ser aquilo. Claro; Que outro motivo Arien teria para estar tão arredia?
— Você está assim porque eu não gostei da ladrazinha? — E pronunciou a última palavra com desgosto, sentindo o ódio escorrer por sua voz. — Não gostei mesmo. Ela não me parece confiável.
— Você não confiou em Serpente. Você não confiou em Merit. — Lembrou Arien. — Você não confia em ninguém que não seja de confiança da maldita Loenna!
— O que? — Aquelas palavras atingiram Narael como um tiro, rasgando-a de cima a baixo. — Do que você está falando? Eu sou apenas precavida. Estou tão contra Loenna quanto você, se não está lembrada.
— Ah, está. — Debochou Arien. — É por isso que quando Aya foi presa, você não disse uma palavra!
Mais um baque. O que Arien queria dizer com aquilo? Que Narael era covarde? Ou, pior… Que ela era conivente com os mandos e desmandos da rainha cruel?
— Eu me acovardei naquela ocasião. — Foi obrigada a admitir. — Isso não significa que eu defenda Loenna. Deus, Arien, eu estou aqui por sua causa! Loenna queria te matar, e eu tentei te proteger!
— Você poderia ter me salvado. — A garota cruzou os braços. — Bastava contar a verdade. Mas você não quis, não é mesmo? Porque isso colocaria culpa nas suas costas.
— Eles não acreditariam! — Uma garota que pega fogo? Loenna não acreditaria nesta história nem mesmo se visse com seus próprios olhos. — Por que está me tratando assim? Estávamos tão bem até ontem…
Arien suspirou fundo.
— Você tratou Laeran como um completo lixo. — Contou a moça. — Eu me identifiquei com ela. A “ladrazinha”, como você diz, também perdeu os pais, sabia? Você acha que, porque é uma princesa predestinada a governar todo o reino, todo o resto não vale nada.
— ISSO É MENTIRA! — Uma chama se acendeu nas mãos de Narael. Ela estava prestes a chorar. — Por Deus, Arien, eu abandonei tudo por sua causa. Eu sequer quero ser rainha. Você não entende…
— Você se arrependeu de estar aqui, não é? — Uma lágrima se formou no olhar de Arien. — Eu contei a Laeren que fugiu junto comigo. Ela diz que você não parece orgulhosa da decisão que tomou.
— O QUE? — Narael estava indignada. Agora, seu couro cabeludo também mergulhava em chamas. — VOCÊ CONTOU ISSO PARA A LADRA?
— Serpente também é uma ladra, e eu confio nela plenamente. — Arien precisava rever seus conceitos, pensou Narael. — Me diz, Narael, você se arrependeu?
Narael cerrou seus punhos. Trincou os dentes, permitiu que todo o calor se esvaísse de si. Estava consumida pelo ódio e pela raiva. Laeren era mais cobra do que ela havia imaginado, estava até mesmo estragando a perfeita relação que ela e Arien tinham.
— Sim. — Cuspiu as palavras, sem pensar muito. — Eu me arrependi. Porque você não vale o esforço, Arien. Eu deveria ter deixado Loenna te matar.
Arien suspirou fundo. Encarou o céu, buscando reter a lágrima dentro de seu olho; Também estava inflamada de ódio e raiva, não querendo mais sequer encarar a presença de Narael.
— Muito bem. Essa é você, Narael. — Disse, pausadamente. — Eu nunca mais quero ver você na minha frente.
— Eu também não. — Respondeu a jovem Wuri, irritando-se com Arien. Como podia ser tão influenciável? — Se você prefere acreditar numa desconhecida a acreditar em mim, acabamos por aqui.
Arien anuiu com a cabeça. De uma só vez, deu as costas para a antiga amada, deixando-a só com seus pensamentos.
E, neste momento, tudo o que Narael queria era perseguir Laraen até a morte e queimá-la até transformar seus ossos em cinzas. Sabia que era capaz disso, e só não realizava tal feito por não querer lidar com o peso de ser uma assassina.
***
— Então… — Julien tamborilava os dedos em sua coxa, sentado ao lado de Darian. — A moça nova ficou com medo de mim?
— Ao que tudo indica… — Darian prometeu a si mesmo que não se estressaria com Julien naquele dia. Responderia a ele o mínimo e apenas o mínimo.
— Ela era bonita. — Comentou o morto. — Será que estava disposta a ter uma relação com alguém que já passou deste plano?
Darian não respondeu. Manteve-se desenhando rostos na terra batida do chão. Um deles havia de conter as feições de seu misterioso pai.
— Que piada, eu nem sei se meu pinto funciona ainda. — E deu de ombros. — Queria voltar a ter um corpo de carne e osso.
Novamente, Darian o ignorou. Se o fantasma quisesse respostas, que fosse tratar com Merit.
— Você já transou com alguém, Darian? — Inconveniente como sempre, Julien disparou uma daquelas perguntas íntimas que ele adorava fazer. — Aliás, você se masturba? Já estamos juntos há algum tempo e eu nunca te vi fazendo isso…
— Por que você quer me ver fazendo isso? — A presença de Julien era justamente um dos fatores que o inibia; De qualquer forma, Darian nunca foi um rapaz de alta libido.
— Não quero. Estou muito bem, obrigado, sem olhar para o seu pinto. — Julien foi categórico. — Só estou perguntando, porque nunca vi um moço da sua idade que não se masturbasse.
Darian resmungou alguma coisa em desaprovação, mas novamente se manteve em silêncio. Aquelas perguntas estavam ficando pessoais e constrangedoras demais.
— Você gostaria de fazer isso para Narael, não é? — Provocou o espectro. — Eu sei disso.
Arregalando os olhos, Darian se engasgou com a própria saliva. Tossiu algumas vezes, expeliu algumas bolas de catarro; Talvez ele jamais houvesse se tocado pensando em Narael, mas certamente gostaria de dar-lhe um beijo.
— Isso não é muito sexy de sua parte. — Continuou Julien a alfinetar. — Meu deus, Darian, que nojo!
— Como você sabe disso? — Ele se sentia nu. Exposto. Como se todo mundo soubesse dos meandros de sua vida. — Sobre Narael…
— Não é muito difícil de descobrir, menino. — O fantasma poderia ser inconveniente, mas não era burro. — Você olha para ela o tempo todo. E é a única pessoa com quem você arriscou trocar algumas palavras, com exceção de mim, claro, porque eu sou irresistível. Você é louco para conhecer melhor aquele corpinho, eu sei disso.
As bochechas de Darian ficaram vermelhas. Nunca, em seus vinte anos de existência, ele havia se interessado romanticamente por alguém; e, agora, não tinha aquele interesse somente revelado, mas também completamente dissecado pelo fantasma.
— Eu não penso em sex*. — Não na maior parte do tempo, ao menos. — Mas talvez eu gostasse de… Hum… Beijar Narael.
— Você é estranho. Na sua idade, eu pensava em sex* o tempo todo. — Mais uma informação sórdida que Darian não precisava saber. — Mas, se quer minha opinião, você jamais irá beijá-la se continuar inerte. Precisa tomar uma atitude, seja homem!
— Eu não acho que vou beijá-la um dia. — Concluiu Darian, com o peito pesado. — Ela gosta de Arien. Isso é nítido.
— Me parece que as duas estão brigando. — Julien levou uma mão à orelha. — Eu não sei o contexto, mas ouça bem…
Darian calou-se por um momento e colocou seus ouvidos em alerta. Ouviu Arien dizer que não queria mais ver a garota Wuri, e Narael disse o mesmo em sequência; A relação de ambas estava visivelmente abalada.
O rapaz não queria se sentir bem com a desgraça alheia, porque era uma boa pessoa (ou queria ser, ao menos). Contudo, não conseguiu evitar de esboçar um leve sorriso ao perceber o suposto fim na relação entre as duas garotas. Será que isso significava um caminho aberto para que o garoto investisse?
— Eu não vou tirar proveito disso. — Era necessário muito autocontrole para manter os seus princípios. — Narael está abalada, e eu não sou um aproveitador. Além disso… Sequer sei se ela gosta de meninos.
— Ah, meu querido, o mundo é dos espertos. — Julien lançou uma piscadela. — E, sobre ela gostar de rapazes, você jamais saberá se não tentar. Afinal, é um homem ou um rato?
— Eu sou um garoto. — Darian certamente não era um rato. No entanto, "homem" era uma palavra forte demais. Ele tinha apenas vinte aninhos! — E eu não tenho experiência alguma com mulheres. E se…
— Ah, deixa de graça! — Julien se fartou daquele lenga-lenga. — Você vai investir em Narael sim, ou eu não me chamo Julien Regin.
***
Narael estava desolada. Destruída. Acabada. Seu amor por Arien era forte o bastante para construir uma fortaleza, e agora havia se desfeito como um castelinho de areia. Tendo brigado com sua melhor amiga, sua amante, sua confidente, tudo o que a garota queria era chorar. Como havia deixado o amor escapar pelos seus dedos de maneira tão fácil?
Sentou-se debaixo de uma árvore. Por meio das folhas, os raios de sol iluminavam as bochechas rosadas de Narael. Suas mãos estavam ardentes, brilhando em uma tímida chama avermelhada. A raiva era capaz de fazê-la liberar os seus poderes, o nervosismo também, mas era a primeira vez que a garota deixava a tristeza agir.
E pensar que, para toda essa confusão, fora necessária apenas uma forasteira convincente… Como Arien era burra! Sim, agora Narael sentia raiva de sua amada, porque a trocara por uma aventureira qualquer. Talvez aquele amor jamais tivesse sido genuíno. Talvez Narael devesse tomar seu rumo e voltar à mansão Nalan, onde retomaria suas aulas e posteriormente assumiria o reino. Havia ido longe demais por uma paixão tão efêmera.
Mas, ao pensar no sorriso da menina Eran, nos seus cachinhos voando contra o vento… Narael sentia seu coração bater mais forte. Arien ainda era sua chave de controle, a pessoa capaz de fazer suas chamas tomarem a forma que ela quisesse, e isso irritava a jovem Wuri. Por que ela não conseguia simplesmente fingir que aquilo jamais houvesse acontecido, como qualquer pessoa normal?
Apanhou um pedaço de graveto do chão e rabiscou o solo. Mesmo num rápido rascunho, as feições delicadas de Arien foram identificadas. E, num ímpeto de raiva, Narael agarrou o pedaço de madeira e riscou toda a sua face, como se apagasse a moça de seu coração; Agora, a ponta do galho estava chamuscada.
Prometeu nunca mais pensar em Arien novamente. Mesmo que isso signifique jamais voltar a controlar seus poderes; Era melhor do que viver com essa dor latejante no peito. Ofegante, Narael jogou o graveto chamuscado para longe.
Há outra chave de controle. Com certeza. O universo não teria lhe fornecido tantos poderes apenas para que somente uma pessoa pudesse ajudá-la a controlá-los. Talvez Aya, ou sua mãe, ou…
— Está sozinha?
Narael pulou de susto ao ser surpreendida com uma voz misteriosa às suas costas. Ao virar-se de súbito, com uma bola de fogo em mãos, notou que era apenas Darian; O tímido e retraído Darian. Ele suava da cabeça aos pés e tremia mais do que vara de bambu, como se estivesse prestes a encarar um momento importante.
— Sim. Mas você pode se juntar a mim, se quiser. — Afinal, dispersar Arien de seus pensamentos não seria uma má ideia. — Onde está o fantasma?
— Eu… Eu o deixei dentro de casa. — Afinal, a casa de Merit não era tão distante da árvore. — Ele estava me enchendo o saco.
A moça esboçou uma risadinha.
— Julien é chatinho, não? — Tentou puxar conversa. Darian assentiu com a cabeça. — Vejo vocês brigando com frequência.
— Acho que invoquei um espírito de porco. — E riu. — Entendeu o trocadilho?
Narael nada disse. Darian, por sua vez, pareceu decepcionado pela piada frustrada.
— Ahn… Já fiz trocadilhos melhores. — Constrangido, Darian limpou o suor da testa com as costas da mão. — Mas, mudando de assunto… O que você desenhou aí?
Logo a garota se atentou ao retrato rabiscado de Arien no chão. Não querendo entrar naquele assunto, ela rapidamente o apagou com a ponta do pé.
— Não é nada de mais. — A moça se sentia idiota. — Apenas uma pessoa estúpida que apareceu na minha vida.
Darian suspirou fundo. Não tinha muito tato para situações em que requeriam sua empatia; Tendo vivido na floresta por vinte anos, a única pessoa com quem ele sabia lidar era Merit.
Ainda assim, fez o que julgou correto: Presenteou Narael com um acolhedor e inesperado abraço.
— Vai ficar tudo bem. — Garantiu. — Ela não te merecia.
E sentiu seu corpo todo esquentar enquanto acolhia a garota em seus braços. Sendo ela detentora da magia do fogo, talvez não fosse uma boa ideia colocá-la tão perto de seu peito; Ainda assim, Darian não se importou.
— Não. — Narael se permitiu chorar. Toda a angústia que guardava em seu coração, agora extravasada em um tenro abraço. — Eu fiz de tudo por ela, Darian. De tudo.
Seguiu em seu pranto silencioso, molhando a gola de Darian com suas lágrimas. Como poderia ser tão estúpida? Perdera tudo por causa de Arien, e agora também não a tinha.
— Está tudo bem. Vai passar. — O moço deu tapinhas em suas costas, incapaz de formular um conselho menos genérico. — Você vai encontrar outra pessoa.
No entanto, Narael não queria outra pessoa. Narael queria Arien.
— E, pessoalmente… — Ele pausou sua frase por um momento, como se não estivesse certo do que iria dizer. — Eu te acho muito bonita.
Ainda agarrada às costas de Darian, Narael franziu o cenho. Não era o tipo de elogio que ela estava acostumada a ouvir. Recebê-lo daquele menino tão tímido e quieto fora uma surpresa agradável.
— Bonita? — Por um momento, Narael se desvencilhou de Darian. — Você acha mesmo? Ou só quer ser legal?
O moço anuiu com a cabeça.
— Sim. Quero dizer, te acho bonita, não quero ser legal. — E logo se deu conta do que havia dito. — Não! Eu quero ser legal! Mas não ao dizer que te acho bonita, eu estou sendo sincero! Você entendeu, não é?
Narael esboçou um sorriso e bagunçou os cabelos do jovem Kantaa. Eles eram extremamente loiros e bem curtinhos, com alguns desníveis aqui e ali, como se o próprio garoto os tivesse cortado.
— Também te acho bonito. — Foi tudo o que ela conseguiu dizer. O jeito desleixado e desajeitado de Darian era atraente de uma forma que a moça não saberia explicar.
— Talvez… — Darian tomou a mão de Narael na sua; A garota pôde sentir o quanto estava gelada. — Eu possa te ajudar a superar Arien.
E encarou Narael diretamente em seus olhos castanhos. Bem, ele havia seguido o roteiro fornecido por Julien; E agora?
— Você quer me beijar? — Foi a conclusão de Narael, após um longo minuto da mais constrangedora troca de olhares.
— Eu não sei. — Ele queria. Ah, como queria. — Eu não sei como se beija. Eu nunca beijei. Eu… Ah, acho que estou me enrolando, não é? Desculpa, tomei demais o seu tempo, eu vou…
No entanto, a garota agarrou o braço magrelo de Darian. Fez com que o garoto voltasse para si; Com a mente implodindo em dúvidas, o jovem gostaria de ter perguntado a Julien como se beija antes de seguir com seu plano.
— Fique comigo. — Narael deslizou o polegar pelas palmas de Darian. — Eu gosto de você.
E, sabendo que o garoto jamais tomaria a iniciativa, Narael puxou sua nuca para perto de si, deixando que seus lábios se tocassem.
De inicio, Darian estranhou a sensação; Era pegajoso, babado e molenga. No entanto, conforme a língua de Narael explorava sua boca, o garoto mudou rapidamente de opinião. Não havia nada melhor do que beijar Narael.
E, cheio de si, o menino permitiu que sua língua abrisse caminho, entrelaçando-a com a da garota; Sentia-se como uma onda do mar brincando com o chão arenoso, entre indas e vindas, sentindo o calor que emanava do interior de Narael. Aquele momento era maravilhoso, único…
E, subitamente, ele acabou. Narael encarou o menino com seus dois belos olhos castanhos e desenhou a cabeça loira de Darian com dois de seus dedos.
— Não imaginei que fosse tão bom. — Ele disse, recordando-se de cada momento em que sua língua tocou a de Narael. — Eu quero fazer de novo.
Narael sorriu. Entendendo aquilo como um sinal positivo, Darian puxou a cabeça da garota para perto de si com a mão direita. Estava prestes a retomar o beijo intenso e ávido, quando, subitamente, sentiu uma onda gelada tomando seu corpo.
E caiu para trás. Seus olhos se reviraram, seu corpo estremeceu. A mão esquerda de Darian agarrou seu pescoço e começou a enforcá-lo, o que fez o garoto clamar por misericórdia cerca de alguns segundos depois. Algo estava acontecendo! Ele estava sendo vítima… De si mesmo?
— Darian? — Narael notou algo estranho. — DARIAN! O QUE ESTÁ ACONTECENDO?
Os olhos de Darian subitamente voltaram ao lugar e ele berrou, com uma voz que não era sua:
— DEIXE MINHA FILHA EM PAZ.
Narael recuou. Arregalou os olhos, assustada. O corpo era de Darian, sem dúvidas, mas não estava sendo habitado por ele. Aquela voz… Uma voz que Narael jamais ouvira, mas tinha certeza de que pertencia a…
— Pai? — Perguntou, receosa. — O que você está fazendo aqui?
O real Darian ainda habitava o corpo; Desperado, o garoto se debatia de um lado para o outro, tentando se livrar da fúria de Digan. Era inútil; É impossível fugir de si mesmo.
— PAI! — Seja lá quem fosse, aquilo mataria Darian se Narael não interviesse. — PARE DE SUFOCAR DARIAN. ELE VAI MORRER!
Imediatamente, os dedos de Darian afrouxaram seu toque ao redor do próprio pescoço. Talvez não fosse a intenção de Digan matar o garoto, afinal.
E, apontando o indicador para o próprio rosto, via-se nos olhos azuis de Darian uma fúria jamais vista; Digan estava louco de raiva, disposto a trucidar o garoto em seu próprio corpo.
— Não toque na minha filha novamente, está bem? — Disse, rispidamente. — Ou eu voltarei para te matar. Não duvide do que eu posso fazer.
De uma só vez, Darian desabou sob o chão, e desta vez Digan não estava mais presente. Seu corpo estava totalmente dolorido, porque fora necessária muita energia para aquela aparição; E, agora, o jovem Kantaa estava totalmente esgotado.
Com o que restava de suas forças, o menino ergueu a cabeça e lançou um olhar confuso para Narael, como se buscasse explicações. Ela, no entanto, estava tão atemorizada quanto ele; Talvez mais.
— O que… — A garota gaguejava, sentindo seus membros bambearem. — O que aconteceu?
Ofegante, Darian encarou as próprias mãos. As abriu e fechou por três vezes, apenas para garantir que estava sob controle do seu próprio corpo. Felizmente, desta vez ele estava.
— Eu… — E levou a mão direita para o pescoço avermelhado. — Eu não sei…
— Isso… — Os olhos de Narael corriam de um lado para outro. — Isso foi estranho. Muito estranho.
Darian concordou.
— Acho que jamais vou conseguir beijar alguém novamente durante toda a minha vida.
Fim do capítulo
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