Inflamável por HumanAgain
Capitulo 13 - No além existe amor?
— Julien Regin… — Darian levou uma das mãos ao couro cabeludo. — Você se lembra de como chegou aqui?
Julien fez que não com a cabeça.
— Eu só me lembro da lâmina de Triard Saphira… E, então, um clarão… — O fantasma estreitou os olhos, como se tentando recordar. — Não me lembro. Eu devo ter alguma memória do mundo dos mortos, mas acho que ela foi apagada quando eu retornei para cá.
Darian até cogitou lhe lançar uma resposta, mas um burburinho tomou conta da cena. O rapaz se virou e deparou-se com Arien e Narael caminhando uma rente a outra nos jardins de Merit Kantaa.
— Além de mim… — Sussurrou Darian, notando que as garotas caminhavam em sua direção. — Mais alguém pode te ver?
— Eu não faço ideia. — De fato, Julien não era uma boa fonte de informação.
E assim foi feito. As duas garotas, dado momento, interromperam sua caminhada e pareceram notar que havia um fantasma perto de Darian; O rapaz lançou um sorriso amarelo e Arien retornou num impulso para dentro da cabana, parecendo assustada com alguma coisa. Já Narael, mais corajosa, se manteve ali, estática e imóvel.
— N-não precisa se assustar, N-narael. — Darian sempre gaguejava quando próximo à jovem. Droga! Quando iria ele aprender a conversar com as pessoas? — É só um…
— Fantasma pelado. — E os dedos de Narael se iluminaram com pequenas chamas amareladas. — De onde essa coisa surgiu?
— Ei! Mais respeito! — Repreendeu Julien. — Eu não sou “coisa”, eu sou apenas uma pessoa morta. E tome cuidado com essa mão; Aliás, o que diabos é isso na sua mão? Será possível que eu estive morto por tempo o suficiente para o mundo ser bizarro e eu não perceber?
— E-eu o trouxe. — Darian viu-se obrigado a admitir. Não teria condições mentais de formular qualquer mentira convincente, afinal. — Ele não te fará mal… Eu acho.
Foi naquele momento que Merit e Serpente, conduzidas pelas mãos de Arien, surgiram em meio à grama alta. Ao focalizar a alma que estava ali, bem à sua frente, o espanto da loura foi quase que imediato; Serpente, no entanto, o olhou de cima a baixo e parecia ter encontrado algo muito engraçado.
— Eu não fui avisada de que encontraria algo tão gráfico assim. — Observou ela, mas ainda assim não desmanchava o sorriso. — Faz mais de trinta anos que eu não vejo um destes. É um pouco maior do que os que eu me deparei.
Imediatamente, Julien se deu conta a que ela se referia.
— Você pode parar de falar do meu p*nis? — E o espírito levou as mãos para o órgão genital, tampando-o. — Eu sou um morto encabulado, tudo bem?
Enquanto Serpente se divertia com a cena, Merit parecia preocupada com outra coisa.
— Darian… — Agora, Merit falava mais sério do que jamais havia falado. — Quando você tinha amigos imaginários, na infância… Eles eram criaturas da sua imaginação… Ou eram espíritos?
Darian não sabia dizer. Era criança demais para notar a diferença. Contudo, o que lhe era curioso, vários de seus amigos imaginários alegavam estar mortos de alguma forma; Ele não se prendia muito a este detalhe… Até o momento.
— Mãe… — As mãos de Darian tremiam. — Você acha que eu… Tenho poderes?
Merit não disse nada. Apenas encarou o espírito com seus dois cintilantes olhos azuis e, sem desviar o olhar, disse:
— Entrem. — O tom de voz de Merit era gélido e mórbido. — Eu vou pegar o livro e já volto.
***
Na cozinha de Merit, Arien ficou com a cadeira solitária. Julien sentou-se com Darian no chão e o silêncio que recobria o ambiente era mortal. A única que não parecia abalada, assustada ou surpresa era Serpente; Parecia encarar toda aquela situação como uma grande brincadeira.
— Por quanto tempo eu estive morto? — Julien quebrou o silêncio.
— É difícil responder essa pergunta… — Serpente era a única que ainda tinha forças para dizer alguma coisa. — Quando você morreu, fantasma?
— Julien. O meu nome é Julien. — O espírito corrigiu. — Me lembro de ter morrido em 1860. Foi através da lâmina de Triard Saphira, em nome de Fowillar Saphira…
— Então bem vindo ao século XX. — Serpente ergueu as palmas das mãos. — Estamos no ano de 1905. Você já está morto há 45 anos.
— Meu deus… — Julien repousou a mão sob o queixo. — Imagino que o mundo tenha mudado bastante desde então.
— E mudou. — Desta vez, Narael tomou a coragem de se manifestar. — Carmerrum, principalmente. Prazer, meu nome é Narael Wuri… Do lado de lá, eu sou conhecida como a filha da guerra.
— Guerra? — Julien ergueu uma sobrancelha. — Então houve uma guerra, afinal.
— Ah, e como houve. — Serpente sorriu e levantou seu olhar, sonhadora. — Eu me lembro até hoje… Do povo se levantando contra os Kantaa, os Eran e os Saphira. Foi lindo de ver.
Arien se sentiu desconfortável no mesmo minuto. Por mais que soubesse das atrocidades que o pai cometera, as histórias que seus irmãos mais velhos contavam sobre Loenna Nalan ter erguido sua cabeça em sinal de triunfo lhe arrepiavam a espinha. Diziam que, apesar dos pesares, Morius era um bom pai; Arien gostaria de ser velha o suficiente para ter experienciado seu amor paternal.
— Isso… Isso é lindo. — O fantasma, feliz com a informação, abriu um sorriso. — Eu lutei a minha vida inteira para que isso acontecesse. E nós vencemos?
— Vencemos. — Serpente sorriu. Havia experienciado a guerra de forma íntima. — Hoje, os Eran, Saphira e Kantaa não mais dominam Carmerrum. O país é governado pela líder da revolução… Loenna Nalan.
E, por um segundo, Julien pareceu confuso; Afinal, era coincidência demais para ser verdade.
— Loenna Nalan é o nome da minha filha. — Disparou ele, e nisto a própria Serpente pareceu surpresa.
— Deve ser um homônimo. — Disse Serpente.
— Loenna Nalan. Irmã gêmea de Quentin Nalan. Filha de Gara Nalan. Nascida em 05 de março de 1858. — Ele enumerou os atributos, um por um. — É desta Loenna a que você se refere?
— Bem… — E Julien havia conseguido trazer espanto ao rosto de Serpente; Logo ela, que já havia visto de tudo. — Não é um homônimo. Curioso, Loenna nunca me comentou que tinha pai…
— Você a conheceu? — E, mal sabia Julien, sua dúvida era a mesma de Arien e Narael.
— Melhor do que você imagina. — E lançou uma piscadela, deixando tanto Arien quanto Narael insatisfeitas com a resposta; Julien, no entanto, contentou-se com aquela devolutiva.
— Bem… — Era impossível para um fantasma chorar, mas via-se a emoção de Julien estampada em seu rosto. — Dizem que o fruto nunca cai longe da árvore… Que orgulho de minha pequenina… Ela está fazendo um bom governo?
— Ah, isso você vai ter que perguntar para as meninas. — Serpente devolveu o olhar para Arien e Narael. — Eu não visito Carmerrum já tem um bom tempo.
E, nisso, as duas amantes se encararam. Não sabiam o que dizer sobre Loenna Nalan; Por onde começariam? E, pior ainda: Como terminariam? Contariam para Julien que sua filha, de ideais tão puros e justos, havia se tornado uma lunática por poder? Será que ele acreditaria? Como ele reagiria? O homem havia acabado de retornar ao mundo dos vivos, certamente não iria querer receber uma informação tão dura logo de cara.
— Bem… — Começou Narael, mas foi interrompida pelo vislumbre de Merit Kantaa carregando o mesmo livro que trouxera quando perguntou a ela sobre os magos. Ele estava menos empoeirado desta vez, mas continuava velho.
— Ufa! Aqui está. — E Merit limpou o suor da testa com o braço. — Por Deus, cada dia isso fica mais pesado!
Aliviada por cortar o assunto, Narael dirigiu seus olhares até Merit e seu guia para magos. A bruxa abriu o livro em uma página qualquer, o folheou até encontrar o que queria e deslizou seu dedo alongado pelas palavras que ali estavam grafadas.
— Aqui fala um pouco sobre ele. — Merit lambeu os lábios. — O mago da morte.
— Mago da morte? — Julien curvou as sobrancelhas. — Como assim?
— É um pouco complexo para ser explicado agora. — Respondeu Narael. — Você vai entender mais tarde, eu espero.
— Bem, retomando… — Merit estava extremamente concentrada em seu livro. Por um momento, pareceu-se esquecer de que havia mais alguém a sua volta. — O mago da morte é capaz de se conectar com o mundo dos mortos. Ele pode incorporar espíritos e fazer a ponte entre o além e o mundo dos vivos.
— E-eu sou esse mago? — Questionou Darian, que havia se mantido em silêncio até agora. — Mas eu nasci no dia dois!
— Darian… — Merit voltou-se ao seu filho. — Eu nunca lhe contei. Você… — A loura ouviu Serpente pigarrear. Sabia a que a amante se referia, mas não teria coragem de revelar a verdade naquele momento. — Você nasceu próximo da meia noite. Eu assumi que seu nascimento fora no dia dois, mas por questão de minutos, você poderia ter nascido no dia três. E foi o que aconteceu.
Darian, cabisbaixo, fez que sim e voltou seu olhar aos pés. Não queria ser um mago; Como iria ele lidar com poderes, se não sabia lidar nem com as relações humanas?
— Continuando… — Merit lambeu um dedo e, com ele, virou a página. — Seus poderes geralmente se manifestam entre 18 e 20 anos, como todos os magos, mas nada impede que os poderes do mago apareçam em qualquer idade até os 25. Bem, Darian, meu erro foi assumir que você não tinha poderes porque já havia passado dos vinte…
— Eu posso levar Julien de volta? — Perguntou o rapaz, esperançoso. Julien franziu o cenho; Não sabia se aquela pergunta deveria ofendê-lo ou não.
— Sobre isso, tem um parágrafo aqui que vai te interessar. — Merit apontou para o final da página seguinte. — Os magos da morte podem ter um padrinho espiritual. Isso nada mais é do que uma alma invocada em um momento de vulnerabilidade que estará presa ao mago, com a única função na terra de fazer-lhe companhia e dar conselhos. Esta alma não desaparece e deve obrigatoriamente acompanhar o mago onde ele for. O mago pode escolher seu padrinho, mas caso não o faça, será enviada uma alma qualquer. Este processo não pode ser alterado e nem desfeito. O vínculo com o padrinho espiritual é eterno.
— Que ótimo. — Darian bufou. — Estou preso a um fantasma pelado para o resto da minha vida.
— Bem, se você está achando isso ruim… — De fato, Julien estava ofendido. — Eu tenho como única função dar conselhos e ser amigo de uma criança!
— Criança? — Indignou-se Darian. — Quantos anos você tinha quando morreu?
— Vinte e cinco. — Respondeu Julien.
— Você é menos de quatro anos mais velho que eu! — Protestou o jovem Kantaa. — Como diabos eu sou uma criança?
— Meu querido, eu sou pai! Tenho uma esposa e dois filhos. — Alegou Julien. — E você, o que é?
— Você era pai. — Grunhiu Darian. — Porque você está morto agora!
De uma só vez, Merit bateu com as duas mãos em cima do livro, fazendo um barulho alto e surdo correr pela cozinha.
— Parem com isso. — Impôs-se Merit. — Vocês dois têm um vínculo eterno e é melhor que se deem bem.
— Eu só queria controlar meus poderes… — Darian resmungou. Havia invocado seu padrinho espiritual sem nem se dar conta e não tinha certeza de que conseguiria controlá-los em outras ocasiões.
— Você e Narael aprenderão a controlar os poderes com o tempo, quando praticarem. Não existe outra maneira. E eu estou disposta a ajudá-los, mas vocês terão que ser pacientes. — Disse Merit. — Tem mais alguma pergunta, Darian? Estou aqui para esclarecer.
O garoto fez que não com a cabeça. Ele estava cheio de dúvidas, mas não conseguia verbalizar nenhuma delas.
— Então, se me permite, eu gostaria de me retirar com Serpente para o quarto. Nós temos… Assuntos particulares para tratar. Enquanto isso, Darian e fantasma, tratem de se dar bem. Será uma vida muito insuportável se vocês se mantiverem brigando um com o outro.
Serpente riu e, dando de ombros, retirou-se junto de Merit. Arien e Narael, objetivando fugir das perguntas do fantasma relacionadas à Loenna, despediram-se de Darian e de Julien e correram até o gramado, a fim de conversarem, aproveitarem a natureza, namorarem ou qualquer coisa desse estilo. Enfim, Julien e o garoto estavam sozinhos.
— Bem, acho que a gente vai ter que aprender a se dar bem, fantasma pelado. — Disse Darian, revirando os olhos.
— Eu espero que a gente consiga, criança. — Respondeu o fantasma, com igual entusiasmo.
***
Narael observou os pássaros dançarem sincronizadamente aos céus. As folhas das árvores se remexiam com a brisa quente que soprava ao sul. Estava hospedada junto a um médium e um fantasma nu, mas quem lhe tirava a paz estava diretamente do seu lado.
Queria dizer algo a Arien. Sabia que queria. A timidez, no entanto, a mantinha calada; Lembrava-se de detalhes da noite anterior, de como a boca da garota Eran passeara sobre seu corpo, de como seus beijos molhados invadiram seu interior e despertaram sua chama interior como um fósforo num balde de gasolina; Narael conseguia ainda sentir o toque delicado da amiga por cada dobra de seu corpo. E, agora, elas não eram mais amigas. Não. Havia algo a mais entre ambas, algo que nenhuma das duas conseguiria qualificar.
Arien também notou o silêncio estarrecedor. Não ousava dizer uma palavra sequer; Ao contrário, demonstrou sua afeição por Narael entrelaçando seus dedos nos dela.
A jovem Wuri rapidamente retirou a mão. Arien a olhou, com curiosidade e frustração.
— Fiz algo errado?
Narael não sabia o que responder. Desde o princípio isso soava errado; Ela jamais havia estado com outra mulher. Na verdade, jamais havia estado com ninguém, e isso soava esquisito. Mas talvez não fosse culpa de Arien, ou da própria Narael, possivelmente isso era culpa do próprio destino.
— Não. — Ela negou. — Nada de errado.
— Então por que se afasta? — Insistiu Arien.
Afinal, qual o grande problema em se envolver com outras mulheres? Loenna fazia isso, Aya fazia isso. Mas, de alguma forma, isso bagunçava os pensamentos da garota Wuri, que jamais havia se imaginado como uma delas. Era difícil entender o que se passava dentro de si.
— O que aconteceu ontem à noite? — Ela precisava saber. Precisava formular seu veredito, entender como se sentia.
— Você sabe o que aconteceu ontem à noite. — Arien também parecia arredia. A hesitação de Narael havia pulverizado todas as suas certezas. — Pensei que também tivesse gostado.
— Eu gostei. — Ela não podia negar. — É só que… Jamais imaginei-me assim. Não com você.
Arien tomou sua mão na dela e, desta vez, Narael não se afastou.
— Eu me imagino com você há muito tempo. — E abriu um sorriso. — Desde que nossos olhares se cruzaram, eu soube que era você.
Fumaça escapou pelos dedos da princesa e, ao queimar as palmas da moça Eran, Arien desvencilhou-se dela. No entanto, o sorriso continuava adornando seu rosto, tão intenso quanto a luz do sol.
— Acho… Acho que eu preciso pensar. — Faltava ar a Narael. Muitas dúvidas, nenhuma certeza. E seu corpo já estava começando a queimar, literalmente. — Vou beber um copo de água na cozinha. Já volto.
Arien assentiu, enquanto observava Narael adentrar a barraca. No entanto, não esperou a amante retornar.
Ela também precisava pensar, no final das contas.
Fim do capítulo
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