Inflamável por HumanAgain
Capitulo 11 - Controle-se, Narael!
Não se podia negar que Merit era uma boa anfitriã. Após o jantar, para melhor recepcionar os seus hóspedes, a bruxa acendeu uma fogueira nos fundos de sua casa e fez com que todos se sentassem ao redor dela — Inclusive Darian, visivelmente desconfortável. Seu objetivo era instaurar a leveza e a paz por ali, entrosando-se com seus novos amigos, mas somente ela e Serpente pareciam estar se divertindo. Ambas conversavam amistosamente num longo gancho que parecia não ter fim; Mal se conheciam, mas já tinham muitos assuntos a tratar.
Enquanto isso, Arien e Narael apenas olhavam uma para a outra, tendo pouca iniciativa para iniciar uma conversa. Não estavam nas cerimônias promovidas pela mansão Nalan nem nas confraternizações Eran, aquele ambiente estranho cercado por gente desconhecida era como um grande pesadelo.
Um pouco menos preocupada que Narael, Arien segurava suas mãos com força e afinco. De vez em quando, sorria com o canto da boca e encostava sua cabeça nos ombros da jovem Wuri. Aquilo, por alguma razão misteriosa, fazia Narael se sentir mais segura.
E foram justamente as investidas carinhosas de Arien que lhe deram coragem para finalmente iniciar uma conversa:
— Acha que podemos confiar nessa gente? — Sua mente fervilhava. Conheciam Merit e Darian há poucas horas, e Serpente estava com elas não fazia sequer um dia.
Arien respirou fundo.
— Meus irmãos me ensinaram a não confiar em ninguém. — Ela mal podia esperar para sentir o abraço fraternal de sua família novamente. — Mas eu acho que isso incluiria você, não?
— É diferente. — Defendeu-se Narael. — Eu não sou como eles.
Arien abafou uma risadinha. Havia uma arrogância sutil nas palavras de Narael que as tornavam um pouquinho engraçadas.
— Tem razão. Você é uma princesa. — Alfinetou Arien. — Não é como esses pobres imundos e sujos.
Logo, Narael sentiu suas bochechas corarem.
— Eu não quis dizer isso… — Suas mãos tornaram-se quentes no mesmo momento. — Você me entendeu, Arien.
— Entendi. Eu estava brincando. — No entanto, nenhuma das duas podia negar que havia um resquício de verdade na brincadeira. — Também não acho que seja muito seguro. Mas quais as nossas outras opções?
Ela havia confrontado a si mesma com aquela frase durante umas centenas de vezes na última hora. Se houvesse outra opção, com certeza as duas já teriam saído daquele cenário macabro o quanto antes.
Narael odiava não estar no controle das situações.
— É minha culpa… — E reprimiu uma lágrima teimosa. — Se eu não tivesse incendiado meu quarto…
Arien levou o indicador aos lábios da garota Wuri. Fez um sinal para que ela parasse de falar e deu-lhe um beijinho na bochecha.
O que talvez tivesse aquecido a moça mais do que qualquer manifestação de seus poderes.
— Está tudo bem. Já passou, tudo bem? — E deslizou os dedos pelos braços de Narael. — As coisas não são como deveriam ter acontecido. As coisas são do jeito como elas aconteceram.
Narael respirou fundo. A leveza e descontração de Arien eram muito bem vindas naquele momento, mas ela não conseguia ser otimista diante de toda aquela confusão.
Na ânsia de fazerem suas preocupações se esvaírem, Narael procurou outro objeto para destinar sua atenção. Tudo ali era muito bonito; As árvores dançavam ao som do vento, os grilos chilreavam repetidamente e os vagalumes, com suas traseiras brilhantes, eram como pequenos pisca-pisca que se destacavam ao luar. Se a moça se esforçasse, aquela atmosfera não se pareceria tanto com um pesadelo.
Num canto escuro onde a luz da lua e as chamas da fogueira não alcançavam, estava Darian. Metade de seu rosto estava parcialmente iluminado, a outra metade mergulhada por completo nas trevas. Ele era um garoto estranho; Não gostava de interagir, não se arriscava a uma aproximação. Estava desenhando alguma coisa na terra com um galho pontudo e parecia completamente alheio a qualquer coisa.
— Você sabe o que ele está fazendo? — Disse, voltando-se a Arien. A moça deu de ombros.
— Não sei. Tentei conversar com Darian, mas ele não parece ser uma pessoa de muitas palavras. — E suspirou. — Você pode tentar perguntar a ele, se quiser. Mas eu chutaria que ele prefere ficar sozinho...
E, de fato, Darian não se comportava como alguém muito receptivo a companhias. No entanto, ainda assim Narael decidiu se aproximar. Pé ante pé, para não assustar o menino, a jovem abandonou Arien e dirigiu-se ao canto escuro do loirinho.
— O que está desenhando? — Perguntou ela, assim que o alcançou.
Darian não reagiu bem; Pulou para trás e quase bateu com as costas em uma árvore. Piscou algumas vezes, demorou um tempo para se recompor. Narael notou, enquanto isso, que os rabiscos do garoto na terra formavam um rosto.
— E-eu? — Ele tremia. Seus lábios estavam brancos. O maior pesadelo de Darian Kantaa era, sem dúvidas, interagir com desconhecidos. — N-nada. É apenas um r-rosto.
— Este rosto é de alguém? — Insistiu Narael. Talvez conseguisse vencê-lo pelo cansaço.
— Eu… — Ele mordeu o lábio. Estava nervoso, e Narael conseguia notar o tom de sua voz oscilando. — Eu g-gosto de imaginar como seria meu pai.
Isto fez a garota Wuri observar mais atentamente o desenho de Darian. Ele não era um artista muito talentoso; O rosto genérico ali retratado mais se parecia com rabiscos infantis. Poderia ser a retratação de absolutamente qualquer pessoa.
O que, no final, não importava muito, porque Darian não tinha informação nenhuma sobre o próprio pai. Ser a cópia exata de Merit não lhe permitiu sequer imaginar qual seria a sua parte paterna.
— Como você imagina seu pai? — Perguntou Narael.
Darian se manteve em silêncio por alguns segundos.
— Eu… Não faço ideia. — Aos poucos, aquele menino tímido e quieto deixava de lado as amarras que o mantinham engessado. — Gosto de imaginar que ele era um homem incrível, de muita honra e moral, que lutava bravamente pelo que considera correto. Mas… Temo que seja apenas mais um beberrão.
— Isso seria um problema?
E, novamente, Darian se calou. No entanto, Narael sentiu que algo fermentava em sua mente; A grande indecisão era sobre contá-la ou não.
— Não. — E negou com a cabeça. — Mas não sei como fui concebido. Minha mãe não me dá muitos detalhes sobre isso.
— Bom… — Para Narael, o motivo de tal mistério era óbvio. — As mães não costumam contar essas coisas para os filhos. Se é que você me entende.
— Uma vez, eu perguntei se meu pai a tomou à força. — Agora, ele parecia não mais estar conversando com Narael; Darian estava revelando seus detalhes mais íntimos a si mesmo. — Ela desconversou. E eu tenho medo do que isso significa… Tenho medo de estar certo.
E, com o olhar distante, Darian sentou-se ao chão e abraçou seus próprios joelhos. Parecia prestes a chorar.
Compadecida, Narael o abraçou. Ele esboçou um sorriso ao sentir o toque dos braços da garota em seus ombros.
— Você pode estar errado. Talvez ela o tenha amado tanto… — Tentou ela consolar. — Que lembrar-se dele seja dolorido.
— Por que não estão juntos, então? — Era um questionamento pertinente.
— Talvez ela tivesse que se afastar dele. Talvez fosse perigoso para você. Ou, talvez… — Foi a vez de Narael de revisitar suas memórias pessoais. — Ele esteja morto.
Darian voltou sua atenção para a garota. Notou, então, que não era mais o protagonista.
— Você parece estar falando da sua própria história.
Narael tomou o galho das mãos de Darian. Em cima do desenho infantil que o rapaz havia feito, ela começou a rabiscar alguns detalhes; Deu forma aos olhos, ao nariz, ao rosto e ao cabelo. Agora sim, via-se um rosto bem delineado: Um homem de traços leste-asiáticos, nariz arredondado, rosto quadrangular e cabelos curtos bem penteados.
— Sou filha de Digan Wuri. — Disse ela, a peito aberto. — Morreu na guerra, lutando contra os Kantaa. Dizem que era um homem de muita garra e honra, mas minha mãe diz que era um verdadeiro piadista. Era impossível estar triste na frente de Digan, porque ele sempre tentaria animá-lo. Bem… — Suspirou. — Eu gostaria de tê-lo conhecido. Mas ele se foi antes mesmo que eu viesse ao mundo.
Quieto como sempre, Darian apenas concordou com a cabeça. Por alguma razão, sentia-se mais confortável na presença de Narael do que na de demais estranhos; Ela conseguia fazer com que ele abrisse seus pensamentos e suas angústias.
— Bem… — E soltou, sem refletir muito: — Talvez meu pai tenha matado o seu.
Narael arregalou os olhos, surpresa, e Darian logo notou que havia dito o que não deveria.
— Desculpe! — Defendeu-se ele. — Isso foi um pouco mórbido. Eu… Gosto da morte. Mas não de uma maneira ruim, eu gosto da morte de uma maneira… — E logo percebeu que suas justificativas estavam tornando tudo pior. — Droga. Desculpe. Se meu pai matou o seu, saiba que ele é um otário.
— Está tudo bem. — Recompôs-se Narael. — Faltou um pouco de tato da minha parte também. Me esqueci de que você é um Kantaa…
— É o meu maior defeito.
E Narael não havia percebido que tinha sido uma piada até que Darian esboçasse um sorriso de canto de boca. Bem, ele estava tentando. E havia uma graça inerente em suas tentativas, tanto que Narael se pôs a rir baixinho também; Foi interrompida, contudo, pelo próprio Darian:
— Seu pai te ama muito. — Disse.
Narael franziu o cenho.
— Por que isso agora? — Por algum motivo, as palavras do garoto soavam como se tivessem saído da boca do próprio Digan; Era uma sensação esquisita…
Darian mordeu os próprios lábios.
— Eu apenas… Eu senti… — Seu rosto enrubesceu; O Darian tímido de sempre estava de volta. — Esquece. Eu sou um palerma.
E Narael chegou a abrir a boca para consolá-lo, dizendo que ele não deveria se culpar tanto, mas um rugido estridente invadiu os seus ouvidos.
Quando olhou em direção ao barulho, a única coisa que conseguiu vislumbrar foi um imenso e majestoso leão faminto correndo em direção a si.
Crente de que ia morrer, Narael berrou o mais alto que podia; Nisto, sentiu suas mãos esquentando, segundos antes de lançar um mar de chamas para o alto; O fogo atingiu o leão, que, chamuscado, gem*u de dor. Ele recuou para trás e, como um gato assustado, tentou fugir, mas consumido pelo fogo de Narael, caiu sobre a grama e berrou até que toda a sua carne fosse não mais do que cinzas.
Um esqueleto chamuscado de leão ornava o belo acampamento que Merit havia preparado para seus hóspedes.
— Essa foi por pouco. — Disse ela a Darian.
Mas Darian não estava mais lá. Ninguém estava lá. E não demorou muito para que a jovem Wuri percebesse o que tinha feito: Tão iluminado quanto o inferno, a floresta ao seu redor estava em chamas.
Ela berrou. Tentou clamar por ajuda, clamar para que alguém controlasse o fogo; Talvez algum bombeiro das selvas, talvez Deus. Ela estava sozinha e rodeada por crepitantes chamas que haviam saído de si própria, que engolia o verde da floresta tal como a noite engolia o dia.
Narael queria chorar. Era o seu fim, e desta vez causado por ela mesma.
Foi quando Merit, Serpente e Darian emergiram do nada com imensos baldes de água. Eles não seriam capazes de conter, sozinhos, todo aquele desastre, pensou ela; Foi quando ela encarou novamente o incêndio e percebeu que as chamas não eram tão imensas quanto ela havia visto da primeira vez; Talvez suas preces tivessem dado resultado, talvez as chamas tivessem se suicidado, ou, o que provavelmente havia acontecido, no calor do momento Narael maximizou os acontecimentos.
Com apenas dois baldes de água, as chamas já estavam consideravelmente menores. Darian tirou sua camisa para abafar o fogo de uma moita que se consumia e Merit coroou a equipe de combate aos desastres causados por Narael ao jogar o último conteúdo do balde num reduto de chamas por ali. Enfim, eles não iriam morrer.
Arien parecia perdida. Ela tossia, após ter inalado muita fumaça, mas estava bem.
— O que aconteceu? — E encarava os resquícios de arbusto queimado. — Narael?
Não foi o pior dos acidentes causados pela garota, mas Merit a encarava com um ar de repreensão. Pior que isso: Serpente a encarava com olhares travessos, como se enxergasse em tudo aquilo uma grande piada.
Isso deixava a garota Wuri levemente irritada e ligeiramente quente.
— Acho que nós temos um problema aqui. — Notou Serpente, sem deixar de sorrir.
— Eu… — Narael se pôs a falar, mas foi interrompida por uma Merit irritadiça:
— É claro que não foi de propósito. Nós sabemos disso. — A garota se preparou para uma bronca da bruxa: Nada com o qual ela não estivesse acostumada. — Mas isso não pode continuar, Narael. Eu não posso permitir que você incendeie a minha casa.
E, mais uma vez, Narael era expulsa do lugar que havia arranjado para dormir. A ela, só restou dar de ombros e concordar; Não podia forçar Merit a acomodá-la em sua casa.
— O que? Não. — Merit fez uma careta. Apesar dos apelos da garota, ela continuava lendo-a. — Eu não estou te expulsando. Quem você acha que eu sou? Uma bruxa?
Era basicamente assim que Narael via Merit, mas preferiu não se manifestar; Não que fosse necessário…
— Bom, nem todas as bruxas são ruins. — Ela sequer tinha tempo para formular seus pensamentos. — Eu, por exemplo, sou um amor de… Meu deus, que nojo. Comer fezes?
— Pensei nisso para que você parasse de me ler. — Disse Narael, visivelmente irritada. — Me diga o que pretende fazer comigo como qualquer pessoa normal faria.
Merit suspirou.
— Vocês sabem que ler vocês é meu passatempo preferido, certo? — Narael olhou feio. — Certo, não está mais aqui quem falou. Bem, Narael… Já que você não consegue controlar os seus poderes, minha ideia é ajudar a controlá-la. Posso te ensinar a fazer isso, sou mais velha e mais experiente.
Então a ideia de Merit era, basicamente, aulas. Mais aulas. Para quem pensou que não pudesse ficar pior…
— Te garanto que as minhas aulas são mais legais do que as que você teve na sua casa. — Ignorando os apelos de Narael, Merit a leu mais uma vez. — Aquelas realmente me parecem bem cha…
— PARE DE ME LER! — Berrou a garota, e uma fumaça acinzentada subiu de sua cabeça. Merit ergueu as duas mãos em sinal de rendição.
— Está bem. Que menina amarga! — Resmungou. — Bem, acho que é isso. Amanhã de manhã começamos, certo?
Narael suspirou fundo.
— Eu tenho opção?
— Não. — Merit lançou uma piscadela. — Até amanhã, senhorita Wuri. Espero vê-la mais otimista no dia seguinte.
E, com um aceno, adentrou a casa. Darian a seguiu, encabulado, e Serpente não tardou a acompanhá-los.
Logo, estavam elas, as duas garotas solitárias que haviam iniciado toda aquela desgraça: Arien e Narael.
A mais nova bufou. Queria poder evaporar, sumir, acordar de um sono terrível e voltar para as suas aulas entediantes e sua rotina de sempre. Ter poderes era uma sina terrível, apenas loucos como Merit conseguiam tirar algo de positivo nisso.
— Eu só queria ser normal. — E seus olhos encheram de lágrimas.
A doce Arien sorriu. Abraçou-a pelo lado e recostou sua cabeça nos ombros de Narael; Ela era uma boa amiga.
— As coisas vão melhorar. — E a apertou entre seu corpo. — Você vai ver, Narael.
Fim do capítulo
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