Esqueletos do armário
CENA VII
Berenice olha para Morgana pesarosa, com uma grossa pasta nas mãos. Morgana olha para baixo, sem expressão alguma. Um segurança está na porta da sala, e Berenice gesticula para que ele saia. Ele nega.
BERENICE
Por favor, é assunto particular.
SEGURANÇA
Não posso deixar você sozinha com uma paciente.
BERENICE
Minha sobrinha não faz mal pra ninguém.
Sua voz se altera.
SEGURANÇA
Mas se acontecer alguma...
BERENICE
Eu me responsabilizo.
Ela lança um olhar sisudo para ele, que pega seu rádio e avisa que está saindo, fechando a porta em seguida. Berenice toma o ar e abre a pasta onde estão os papéis.
BERENICE
Trouxe essa cópia da decisão pra você...
Berenice aponta para o papel que está na direção de Morgana, que sequer olha para ele. Por conta disso, Berenice continua a explanar o conteúdo.
BERENICE
Morgana, o juiz acordou algumas coisas que eu quero que você saiba.
Berenice leva o papel até a direção dos olhos de Morgana, que os olha de soslaio.
BERENICE
Ele decidiu que você e Isolda vão ficar sobre minha responsabilidade, ok? Só passaram pro papel o que já está acontecendo mesmo, e... Quero saber se você fica confortável com isso. Está tudo bem?
Morgana concordar com um tímido aceno.
BERENICE
Como herdeira direta, o dinheiro do seu pai e as ações agora são suas, mas, por enquanto, eles ficam no meu domínio. A... Isolda também não ficou desamparada.
Morgana olha para aquilo desconfortável, e vira o rosto na tentativa de evitar a conversa. Já Berenice, depois de expirar suavemente, leva a mão até o papel, chamando sua atenção.
BERENICE
Querida, sei que a última coisa que quer saber é disso, mas preciso te informar sobre o que está acontecendo.
Morgana dá com os ombros como resposta.
BERENICE
Ele também concedeu o direito de vocês não serem associadas a nenhum dos sobrenomes registrados para evitar maiores transtornos. Saindo daqui vou começar o trâmite para isso... Você ainda está de acordo com isso?
Morgana concorda sem falar nada.
BERENICE
Como o rosto de vocês não foi amplamente divulgado, vai ser um processo mais simples. Eu escolhi o Rodrigues Alencar pra vocês, coloquei o Alencar que é do meu sobrenome pra que, se acontecer alguma coisa, vocês...
MORGANA
Tia.
Sua voz sai rouca e falhada.
BERENICE
Sim, querida?
MORGANA
E a mamãe?
Berenice desvia o olhar, pressionando os lábios.
BERENICE
Sua mãe ainda vai passar mais um tempo...
MORGANA
Por que ela não vem me ver?
Os olhos de Morgana se enchem de lágrimas, mas ela evita que elas o caiam piscando sucessivas vezes. Berenice se levanta, e se ajoelha ao seu lado, passando a mão em sua cabeça.
BERENICE
Não fique assim, ela precisa de tempo pra...
MORGANA
Ela tá com vergonha de mim, mão é?
Lágrimas caem dos olhos de Morgana, que continua olhando para o lado, a mão direita cobrindo a boca, os lábios que continuam tremendo. Berenice continua acariciando sua cabeça, deslizando os dedos por seu cabelo.
BERENICE
Sua mãe só precisa de um tempo pra se estabelecer, e eu estou aqui, tá bom? Estou aqui pra vocês duas.
O último parágrafo se repete.
De uns tempos pra cá, não tive mais cabeça para nada. Eu vivo no modo automático de acordar, comer, trabalhar, ir pra casa e dormir. Não lembro da última vez que li algo por prazer, ou que terminei uma leitura, ou que senti aqueles lapsos repentinos de uma suposta felicidade que estava sentindo uma vez ou outra. A única vontade que tenho é de dormir, e dormir, e dormir...
A única coisa que aconteceu além de ter tido contato novamente com minha tia – o que não foi de todo ruim – é o fato de estar na sala de espera, aguardando pode entrar no local de visitação.
— Senhorita Morgana? – um rapaz entra na sala com uma prancheta em mãos – Pode entrar.
Entro na sala, e ela já está me esperando. Sento à sua frente, e Isolda me recepciona com um sorriso contido.
— Pensei que não viesse.
— Prometi não deixar de te visitar – dou com os ombros, colocando a mochila de lado – lembra?
— Às vezes quebramos nossas promessas.
Não me diga. Dou um olhar que diz nas entrelinhas isso, e ela cruza os braços, olhando para os outros visitantes.
— Como você está?
— Levando, na medida do possível – ela dá com os ombros – não é como se o programa de doze passos fosse uma colônia de férias.
— Sei bem.
— Eu... – ela continua a olhar para o lado para depois se virar para mim – peço desculpas, Morgana, pelo jeito que falei contigo.
— Tudo bem.
Não é como se fosse a primeira vez que ela fizesse isso.
— Fui injusta em falar que você é uma criança assustada. Sei que é mais do que isso.
Isso é um dos passos do programa que ela citou: se desculpar com os entes queridos como um impulso pra seguir em frente sem tanta culpa.
— Mas... – ela suspira, afundando no banco aos poucos – toda essa merd* não está fácil pra mim. Minha única vontade é de me desligar da realidade totalmente...
— Não está indo pra terapia?
— Tentando, mas quando começam a remexer na parte do passado... – Isolda ri com pesar – Eu acabo saindo.
Nada que eu não compreenda.
— Acho que ninguém gosta dessa parte.
— Tia Berenice foi falar contigo? – ela levanta as sobrancelhas, curiosa, e concordo com um aceno.
— Sim, e que tentou falar conosco uma centena de vezes e você ignorou a todas elas – lanço um olhar pra ela, que retribui com o mesmo tom de sarcasmo.
— Como se você quisesse ter contato com ela também.
— Tá, mas agora... – me aproximo da mesa – Temos que focar na sua melhora, não acha?
Isolda dá com os ombros novamente.
— Estou tentando.
— Como nas outras sete vezes? – levanto uma das sobrancelhas, e ela me lança seu habitual olhar fulminante.
— Acha que estou aqui de brincadeira?
— E você acha que eu estou brincando? – apoio meus cotovelos na mesa, tentando manter meu olhar no dela – Acha que gosto de ver você nessa situação? – ela nega, e eu continuo – Mas não tem nada que eu possa fazer. Esse tipo de coisa... Você sabe que só vai mudar quando quiser, não só pra me agradar.
— Eu quero fazer diferente, eu juro, mas... – ela pressiona os lábios – Não consigo.
— Você consegue sim – levo minhas mãos até as dela, e as seguro – eu sei que consegue, por favor...
E as pressiono com vigor.
— Se eu perder minha fé em você, o que vai restar da gente?
Ela pressiona os lábios, ainda olhando para o lado, negando com a cabeça.
— Ainda resta alguma coisa de nós?
É uma boa questão.
— Acho que... – encaro o linóleo da mesa sem foco algum - Sobrevivemos com o que restou.
— Você não sabe o que eu daria pra ter uma vida normal de novo, mesmo que o nosso normal... Fosse aquilo.
Isolda quando está triste nunca te encara de frente. Ela sempre vai tentar esconder o que está sentindo para que o outro não perceba isso. Exatamente como ela fazia.
— Você sente falta dela, Morgana? – e dessa vez, ela vira pra me olhar, mesmo que seus olhos estejam marejados.
Por mais que eu queira dizer não, nunca, minha resposta é só uma. Concordo com um aceno enquanto pressiono os lábios, suspirando, e ela volta a olhar para o lado.
— Eu também – e apoia a mão no queixo – mas não sei se consigo perdoá-la. Você já consegue?
Dou com os ombros.
— Perguntei por que pensei em entrar em contato com ela, sabe? – ela leva os dedos pelo cabelo, e logo nego.
— O quê, Isolda? – cerro os olhos – O que te faz achar que isso é uma boa ideia?
— Pra ela ao menos lembrar que a gente existe? – ela dá com as mãos para o ar, como se fosse algo óbvio.
— Se ela quisesse falar com a gente, já tinha falado há muito tempo – nego com ironia.
— Mas não acha que...
— Eu não quero ver nossa mãe, Isolda – digo enfática, dando um tapa na mesa – por que quer reviver essa merd* toda?
— Sei lá, Morgana – ela deixa o ar sair pela boca – eu só queria...
— Isolda – balanço a cabeça frívola – ela não veio me ver durante todo o tempo que fiquei internada, sequer sabe onde estamos agora e quer vir falar com uma mulher que finge que a gente não existe?
— Vai ver a tia Berenice...
— É mais fácil você acreditar que nossa tia está montando uma conspiração contra nós do que aceitar que nossa mãe não se importa com a gente?
— É claro que ela se importa, Morgana – ela cerra os olhos – se não, ela tinha feito o que fez pela gente?
Dessa vez sou eu que desvio o olhar. Não suporto ter que falar de assuntos de família. É a mesma sensação de um espeto quente furar o meio do seu peito.
— Não esqueça que foi a mesma mulher que falou que preferia que nós nunca tivéssemos nascido – cerro as sobrancelhas, mordendo os lábios, resoluta – ela não se importa, Isolda.
— Nunca parou pra pensar que talvez ela esteja fazendo isso pra nos proteger?
Não quero mais estender essa conversa.
— Cada um acredita na mentira que lhe convém.
E dou a conversa sobre Eleanor encerrada.
— Eu ainda acredito na mentira de que nós três podemos nos reunir...
— Isolda, pra onde foi aquela conversa que nós duas somos uma família e mais ninguém? – digo bravia, mas vejo que ela está com os olhos ainda mais marejados.
— Morgana, eu pensei que pudesse aguentar isso tudo por nós duas, mas... – seus lábios entreabertos estão trêmulos – Não sou capaz de te dar o apoio que precisa. Eu estou mais pra pessoa que precisa de apoio.
— E estou aqui pra você, por você, maninha, sempre – digo já também me deixando levar pelas emoções.
— Mas você já aguenta muita coisa pra ter que aguentar mais uma – ela sorri sem graça – e penso que, sei lá...
— Eu consigo me virar, tá bom? – volto a reiterar – Já passamos por coisa pior.
— O que é pior do que a certeza de que as coisas não podem ser mudadas?
Engulo em seco perante aquela afirmação.
— Não podemos mudar, mas... – nego com a cabeça – Acho que podemos ter um novo começo.
— E como se tem um novo começo quando a gente não consegue esquecer da porr* do nosso passado, Morgana? – ela coloca a mão contra o peito.
Como costumam dizer, essa é a pergunta de um milhão de reais.
— Eu não sei... – digo pressionando os lábios, tentando não me abalar pelo que sinto – Mas o que nos resta além de tentar, Isolda? Você... Sabe mais do que ninguém que já tentei desistir de tudo isso mais de uma vez.
— Sei bem disso, me desculpe... – ela estende a mão até a minha, a pressionando – Só não estou me sentindo tão otimista agora.
Levanto e abraço por um longo período. Sinto meu ombro ficar levemente úmido, e a pressiono contra mim com mais força. Um dia sou eu no seu lugar, no outro ela está no meu.
Queria tanto que Isolda aceitasse que precisa de tanta ajuda quanto eu, mas ela prefere acreditar que pode lidar com isso sozinha quando na verdade todos nós em algum momento precisamos da ajuda de alguém. Eu, por exemplo, precisei de muita ajuda especializada pra entender que, no final, remoer o que aconteceu só nos serve pra abrir ainda mais as feridas. Sei que falando assim parece fácil, mas até que eu entendesse isso, demorou anos.
Ainda mais quando são feridas que te lancinam a carne e sangram. Por exemplo, ela está tão ferida quanto eu. A diferença é que suturaram boa parte deles, mesmo com a iminência de romper a qualquer crise. Cada um lidam com seus traumas de maneiras diferentes. Cada um se machuca de um jeito diferente também. Cabe a nós julgar a dor do outro, de qualquer forma?
Permaneço lá por mais uma hora, tempo para acabar a visitação. Torço do fundo do meu coração que dessa vez, seja diferente. Nunca vi Isolda tão desamparada como agora. Queria tanto que...
Tivéssemos realmente uma mãe, uma que te amparasse quando mais precisasse. Que visse a filha nessa situação e não desse as costas, e sim a abraçasse e dissesse que ia ficar tudo bem.
Mas nunca ouvimos isso de sua boca.
Nem em nenhum gesto.
Como alguém consegue ser tão frio assim, mesmo depois de tudo que aconteceu? Eu...
Me enganei em algum momento da minha vida que alguma coisa pudesse mudar depois disso. Entendo o que Isolda quer estabelecendo contato com ela, mas por que eu iria querer manter uma relação com alguém como Eleanor? Quando eu mais quis, eu mais precisei, eu mais desejei que ela estivesse comigo, apesar dos pesares, ela...
Não sei se um dia ela já esteve realmente presente.
O tanto que eu já chorei não pode ser mensurado, muito menos o sentimento de rejeição que me persegue até hoje. Não é porque você consegue superar uma coisa que ela some por completo da sua vida. De um jeito de outro, isso acaba refletindo, seja nas suas decisões, na sua forma de ver o mundo, por aí vai...
Quantas vezes eu não me questionei se eu tivesse um rumo diferente na minha vida, e quantas outras eu me senti péssima me culpando por não algo fora do meu controle? “Se eu não tivesse sido assim, se eu não tivesse falado tal coisa, se eu...” e no final das contas, a realidade é essa a minha frente.
Quando chego em casa, tiro meus sapatos e vou para o quarto trocar de roupa antes de deixar minhas coisas de lado. Odeio o cheiro da clínica. Me deito no sofá e ali esqueço que existo. Sou tomada por uma total apatia novamente. Isso acontece normalmente quando estou pra entrar em crise. É sempre assim: lapsos de felicidade seguidos por um profundo estado de apatia que resulta em uma tristeza avassaladora.
A vida é realmente algo maravilhoso quando não somos tomadas pelos gatilhos da nossa mente, mas, infelizmente, isso acontece com mais frequência do que gostaria. Já foi pior, claro, mas é chato quando percebemos que isso vai te assombrar em um momento ou outro. Será que existe alguém mentalmente instável que não passa por isso ou isso é mera fantasia? Uma pessoa que apesar dos pesares, não se deixa abalar, ou que seja otimista? Porque não consigo conceber que isso exista, e pior, me questiono porque também não posso ser assim, e sim uma amálgama de tristeza e traumas remanescentes.
Não julgo Isolda de ter esse lapso de família feliz e unida, mas pior do que isso é acreditar que essa possa ser a nossa realidade quando falta os itens principais para que isso aconteça. Já sou agraciada de pelo menos ter alguém que lembra da nossa existência e tomou conta das coisas por nós e de nós. E das pessoas que encontrei no caminho.
Como, por exemplo, da minha vizinha que está discutindo com alguém no telefone nesse exato momento. O dia já está partindo e a sala ficando na penumbra, mas estou cansada demais pra me levantar e ligar a...
Um barulho de campainha ressoa no apartamento. Espera, e aqui? Se eu ouvi esse som três vezes desde que vim morar pra cá, foi muito. Será que alguém se perdeu? Levanto e tocam o interfone de novo. Abro a porta e...
Não sei se fico surpresa ou feliz ou enjoada. Na dúvida, fico os três ao mesmo tempo.
— Raquel?
— Te liguei e você não atendeu – ela levanta o telefone, cerrando os olhos – vim ver se estava tudo bem.
— Ah, é... – Balanço a cabeça aturdida – Por favor, entre – digo gesticulando para que ela o faça, e ligo a luz.
— Acabou de chegar?
— Sim, faz uns dez minutos, por aí... – ela olha ao redor – Como adivinhou meu apartamento?
— Dei suas características pro porteiro e ele me falou – Raquel se apoia na parede, olhando de um lado a outro – e... Devo concluir que esqueceu o que íamos fazer hoje.
Merda, era hoje?
— Me perdoa, sério, é que com as coisas que andam acontecendo eu... – sinto a vergonha tomar conta do meu rosto – Pensei que era amanhã.
— Sem problemas – ela levanta as mãos como se rendesse - mas, você está bem?
Nego com um aceno, e ela volta a cerrar as sobrancelhas.
— Não? O que aconteceu?
— Estou me sentindo exausta com toda essa rotina... Sabe quando você quer jogar tudo pro alto? – ela concorda com a cabeça e continuo a falar – Parece que não... Parece que eu me perdi no meio do caminho.
— Entendo bem o que quer dizer... – ela faz uma pausa e aponta pra trás – Então, acho melhor eu ir.
— Por que você já vai? – pergunto confusa, e ela dá com os ombros.
— Você acabou de dizer que está exausta, não quero atrapalhar.
— Mas não quero que vá embora agora – e levo minha mão até seu pulso, em um claro sinal do que desejo. Ela olha e volta o olhar pra mim.
— Então... – Raquel se senta no sofá – Qual a sua sugestão?
— Podemos ver alguma coisa na televisão e pedir comida.
— Bem, está ótimo pra mim – ela sorri e me sento ao seu lado – preciso me desligar um pouco de quadra mesmo.
Ligo a televisão, e coloco um dos filmes indicados por Isabela, que continua a discussão de fundo. Ela deve estar discutindo com a tal guria desconhecida sobre a ida dela até à cidade, e Raquel tenta ignorar esse detalhe.
Tento me concentrar no filme, mas o cansaço está começando a dar seus sinais. Me encosto no sofá, deslizo por ele, e acabo encostando em seu ombro. Ela olha para o telefone distraída, mas logo o deixa de lado.
— Não vai dormir de novo – diz Raquel brincando.
— Não posso te garantir nada dessa vez – respondo no mesmo tom, e a vejo colocar a almofada no colo.
— Não acha melhor se encostar aqui então?
Aceito, e deito minha cabeça em seu colo, mas ela nada faz. Continuamos a ver o filme até que cochilo em alguma parte, e quando desperto, os créditos finais já estão subindo e ela não está ali. Olho de um lado a outro, e me deparo com Raquel na cozinha arrumando alguma coisa na mesa.
— Sua vizinha veio deixar ainda agora sua janta – ela levanta um recipiente de plástico.
— Sério? – digo esfregando os olhos, me levantando e indo até ela – Tem alguma coisa aí que você possa comer também?
— Acho que essa parte aqui – ela aponta, rindo.
Pego dois pratos e os talheres e dividimos o jantar cedido por Isabela, que agora está em silêncio. Quando vou pegar o suco de uva na geladeira, Raquel pigarreia antes de voltar a comer.
— E sua irmã, como está?
— Ah, está bem... – coloco a garrafa de vidro na mesa – Levando.
— E como você está com ela fora?
— Na mesma – dou um sorriso contido – eu já me acostumei a ficar sozinha.
Mesmo que isso falte te enlouquecer às vezes, como por esses dias.
— Está aí uma coisa que queria esses dias... – ela revira os olhos, voltando a comer – Não aguento ficar em casa com as filhas do meu pai lá. Chego do treino, me tranco no quarto, e é isso.
O que me faz ter uma ideia.
— Você... – respiro fundo antes de falar o que quero – Não quer dormir aqui hoje?
Ela me olha tão surpresa quanto eu. Não é como se fosse habitual da minha parte fazer esse tipo de proposta, mas se ela quer um tempo fora de casa – o que foi o motivo de inclusive ela ter me chamado pra sair – e eu desejo a sua companhia, por que não? Não tem nada demais nisso, não é? Já que eu dormi na sua casa uma vez.
E também, hoje é um daqueles dias que, se eu ficar sozinha imersa nos meus pensamentos, vou vegetar neles pelos próximos três dias.
— Pode ser – ela dá com os ombros, e volta a comer. Faço questão de lavar a louça e, depois de deixa-las no escorredor, a vejo sentada no sofá, olhando a esmo para a programação. Volto a ficar do seu lado e me questiono se devo fazer alguma interação a mais do que essa.
Mas, não acho que seja apropriado. Eu não sei bem o que fazer. Não é porque nos beijamos algumas vezes e que eu me sinta estranha perto dela que seja necessário que façamos isso todas as vezes que nos encontrarmos. E também não é algo que eu veja como uma prioridade no momento, e acho que nem ela também.
Seu telefone começa a tocar, e ela desvia a ligação até desligar o aparelho.
Não tenho disposição para pensar nada além disso.
— Tem como me emprestar uma roupa? – ela pergunta pra mim, me tirando da linha de pensamento.
— Claro – levanto, e ela me segue até o quarto. Dou as roupas que acredito serem as mais confortáveis, e ela vai ao banheiro se trocar.
Quando volta, já com o cabelo preso, olha par ao quarto, curiosa, e na minha cabeça se passa se ela está se questionando pela arrumação minuciosa que o espaço tem. Manias que trouxe da outra vida.
E olha para a cômoda próxima da parede, pegando de cima dela o que acredito ser minha identificação.
— Morgana Alencar Santos – ela cita devagar o nome, e antes que vire o documento, seguro em sua mão, chamando sua atenção propositalmente.
— Você... – aponto com o queixo pra cama – Já quer ir dormir?
Pergunto isso porque sei que ela dorme cedo e acorda tão cedo quanto. Ela olha para o relógio, e se volta pra mim.
— Daqui a pouco, mas já quero me deitar... – ela leva os braços para o alto, espreguiçando-se – Tive um dia daqueles.
— Por favor – aponto para a cama – fique à vontade.
Ela levanta as sobrancelhas, e ri.
— Vamos dividir a mesma cama?
— Por que não? – dou com os ombros – Claro, você pode dormir aqui e eu no...
— Não, é que – ela coça a cabeça devagar – pensei que fosse pra você.
Em parte, sim, em parte não.
— Mas, sendo assim... – Raquel segura minhas mãos, me levando devagar para acama – Vamos?
Nos deitamos, e nada acontece de primeira, a não ser seus braços me envolvendo e o toque dos seus lábios contra o meu pescoço, o qual não faço qualquer objeção. Ficamos nisso por um longo tempo até que vejo que, dessa vez, ela que dormiu primeiro.
Retiro seus óculos e me levanto devagar, indo desligar as luzes e pegar um copo d’água. Volto para o quarto e a vejo dormindo com uma notável tranquilidade. Pego meu documento e guardo na carteira para depois guardá-lo na última gaveta da cômoda antes de me sentar na cama e me ver tocando suas bochechas com delicadeza.
Será que um dia eu vou me perdoar por ser uma mentirosa?
Morgana Alencar Santos, a roteirista solitária, essa que ela conhece, não passa de uma fachada criada pra poder aturar a realidade massacrante ao qual fui submetida.
Morgana Kercher Villela é quem eu realmente sou, ou melhor, fui.
Fim do capítulo
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