Capitulo 7
Capítulo 7
Já estávamos sentadas na minha mesa, eu e minha vitamina matinal. O enjoo tinha melhorado bem desde que eu bebi a água com gás mais cedo no posto de gasolina. E treinar com a Bruna foi algo bem ambíguo, adorei ela estar lá, eu ajudar no treino dela, tirar uma casquinha. Mas foi estranho eu olhar apenas para uma pessoa e ela marcando território com a Vic foi desnecessário. Eu fico tão perdida conversando com ela. Quero ver como vou agir no sábado, que vamos sair. Isso! Sair com alguém, a última vez que fiz isso tem anos. Eu não saio para conhecer, nos último ano eu no máximo saio com pegação marcada, alguém que eu já tava temperando e só precisava ficar, aí o sair era pra isso. Estou assustada, de um jeito bom, mas assustada.
Outra coisa que estou preocupada é a investigação do trafico de orgaos. Ontem quando sai do DP deixei meu sistema de informações rodando uma busca, espero que agora cedo quando esse computador lerdo ligar, eu tenha alguma informação para trabalhar. Tenho que começar a apresentar algo palpável para eu investigar, sair de tocais, peças palpáveis para montar o quebra cabeça. Como quero um café, mas com esse estômago merd*, não vai ser bom. Que saco.
Quase cinco minutos para essa lata velha de LED ligar. Puxei meu caderno de psicografia de dentro da gaveta, o Cantão que chama o caderno assim, confesso que a minha letra é tão boa que às vezes nem eu entendo. Uma das coisas que preciso tambem é rápido da identificação dos corpos, talvez eu consiga algo ao conversar com as famílias, chegar a uma realidade mais próxima dos fatos, encontrar alguma motivação que leve a um suspeito.
A primeira pesquisa que deixei rodando era sobre furtos, assaltos, invasões a hospitais. Processos com cerca de até 3 anos. Uma das minhas ideias é que antes de começarem as mortes, os profissionais, bem entre aspas, providenciaram roubo a materiais hospitalares, respiradores, aliciamento de mais profissionais. É necessário uma infraestrutura importante para que as cirurgias sejam de qualidade e garantam o sucesso.
O sistema mostrou diversos itens de crimes a hospitais, roubos de quimioterápicos, invasão para levar medicamentos de alto custo, ocorrências em relação a material cirúrgico, leitos, entre muitas outras. Uma delas me chamou a atenção, não foi em um hospital exatamente, foi em uma empresa de ventiladores, não esses de esfriar a casa em um dia de calor, ventiladores cirúrgicos. O assalto ocorreu há 2 anos e 9 meses, em uma empresa bem próxima ao lugar da desova, que fica bem próxima a um hospital público gigante e um hospital caríssimo também. Puxei o caderno de psicografia e anotei os dados dessa ocorrência, vou explorar ela, pode ser uma ponta solta.
Na segunda pesquisa tentei levantar pessoas presas por tráfico de órgãos diretamente ou sob a alegação de tráfico de pessoas, esses dois crimes muitas vezes estão correlacionados. Esses são crimes de facil obtençaõ do regime semi aberto, então quero identificar envolvidos que foram liberados no prazo dos últimos 3 anos. O resultado dessa pesquisa vai me gerar muito trabalho, pois mesmo eu achando poucas pessoas, mas de modo relevante, não posso simplesmente obrigar ninguém a vir conversar comigo na delegacia, para obter uma intimação leva um tempo. Tenho que apertar bem esse palheiro, escolher bem a agulha que quero interrogar.
Encontrei cerca de 30 pessoas dentro desse padrão que procuro, 12 cirurgiões, 3 anestesiologistas, 2 enfermeiras, 02 recepcionistas/secretárias, 11 sem vínculo específico, ou seja, faz tudo. É muita gente. Vou precisar ler cada um desses arquivos isoladamente e associar eles, trabalho manual de criar um quebra cabeça. O mais assustador ainda é que estamos apostando ser mesmo um caso de tráfico de órgãos, mas pode ser algo completamente diferente, como um vendedor de materiais para estudantes de biológicas, um serial killer que guarda lembrancinhas, qualquer coisa maluca. Mas o meu instinto diz que é esse o caminho.
Ao lado do computador fica meu telefone de trabalho, raramente toca e as poucas vezes que toca é em geral problemas administrativos, quando o Cantão precisa liga direto no meu celular e assim ele fez, mesmo estando na sala ao lado, me ligou no celular.
- Pronto.
- Pega suas coisas e desce, “to” saindo com a viatura em 3 minutos. Vai logo.
- Ok. - em automático eu pulei da minha mesa, peguei meu colete que estava na lateral da mesa, encaixei a arma no coldre. Na gaveta ao lado fica minha prancheta com os documentos de investigação. Esse processo não me consumou mais que um minuto, estou tão acostumada que faço sem nem pensar. Desci os três lances de escada quase que em um pulo. Assim que sai pela porta lateral, de acesso ao contingente policial, encontrei o Cantão com a viatura ligada.
- Entra logo - ele gritou pra mim enquanto colocava o giroflex em cima do carro. eu nem sentei direito e ele já saiu com o carro em alta velocidade.
- Bom dia - ele fica todo concentrado quando tem ocorrência. Olhei rapidamente pra ele, estava também de colete, o distintivo no peito, a arma na coxa. Ele fala que eu dirijo como louca, mas ele não fica nem um pouco atrás.
- Bom dia sapatão. Já te dei um presente essa semana?
- Me deu um faz dois dias, que presente de grego Gabriel. O que temos?
- Acredito que mais uma parte do seu presente. Um carro em Heliópolis, 3 corpos no porta mala. Segundo o rádio corpos vazios dentro, sem nada.
- Deus existe.
- O que?
- Eu não tava achando uma ponta pra desenrolar. Hoje cedo achei um roubo a empresas hospitalares importante e 30 pessoas liberadas recentemente por tráfico de órgãos ou envolvimento. Uma agulha no palheiro.
- Eu quero que você veja esse de hoje. Acho que está junto. Mas pode ser isolado.
- A Bia não vai?
- Ela está indo em outra viatura Flávia. Eu sai acelerado. Não posso esperar ela montar equipamento.
- Justo. Mas quero ela nas imagens.
- Ela é a fotógrafa da equipe, ela vai estar lá, só vai chegar depois.
- Onde é o caso?
- Um comando de patrulha estava rondando a base da favela e viu um classic. O motorista desviou o rosto, olhou de volta e desviou. A patrulha pediu para encostar, mas o classic acelerou. Evadiu do carro, correu pela favela, uma merd* toda.
- Eu quero esse cara.
- Eu sei Flávia. E me conta uma coisa, aconteceu algo na academia hoje? Filho da puta - ele foi fechado por um carro, quase bateu, desviou, xingou e seguiu viagem.
- O que aconteceria na academia hoje? - eu sei bem o que ele quer saber, vou tirar proveito - Eu não treinei hoje!
- Você não foi hoje? Mas que merd* Flávia.
- Porque? Hoje era dia de descanso. Posso faltar também fiscal da mensalidade. Olha o bundão. Ninguém entende que tem que desviar e dar espaço pra viatura passar?
- Te mandei um presente na academia, vai ter que pegar amanhã.
- Tem nome esse presente?
- Descobre - ele olhou pra minha cara, eu já estava rindo dele - Sua besta, tá me tirando Flávia?
- Queria ver até onde você ia cara - comecei a gargalhar.
- Bicho besta - entrou na marginal e acelerou mais ainda - A Bru apareceu?
- Sim, encontrei ela no vestiário.
- E aí? - quase arrancou a lanterna de um carro a frente
- Você não quer conversar depois não? Fala de mim dirigindo, mas quase lambeu vários.
- Até parece, dia que eu dirigir ruim igual você eu saio da polícia. Você só destrói minhas viaturas.
- Para com isso Cantão, foi uma perseguição o rolê da 003. Eu te dei o marginal, não dei?
- Aff, você só não se queima porque é boa no que faz. Se prepara aí, vamos descer logo mais. - já estávamos enfiados dentro do bairro, cada vez mais próximos à entrada da favela. Esse é um momento que eu fico acelerada, mas não agitada, fico tensa pela abordagem, mas leve, centrada. Já errei muito na vida, hoje sou muito mais madura. Coloquei a mão na lateral da calça, no coldre, segurei a arma, pronta para fazer a empunhadura.
Quando o cantão virou a rua, eu rapidamente desacelerei. Olhei para ele, havia desacelerado também, mas a expressão estava mais séria, firme, maduro. A expressão de delegado. Desci da viatura com a pistola na mão, mas logo coloquei de volta no coldre. A cena estava fria, sem tiroteio no momento. Um dos suspeitos estava encostado no portão de uma casa, ajoelhado, com o rosto na parede. O outro estava sendo trazido por um policial militar, algemado.
- Bom dia senhores. Quem é o oficial no comando? - eu apenas fiquei ao lado dele, o chefe não sou eu. Um policial mais graduado saiu de trás e se apresentou.
- Tenente Galdino.
- Delegado Cantão. Homicídios - esticou a mão pro homem, em seguida olhou pra mim - essa é a Investigadora Flávia. Qual a novidade aqui?
- A viatura do comando estava de vigia, quando os indivíduos passaram dirigindo o Classic ali. Desviaram o olhar, os policiais suspeitaram e pediram para parar. Os dois deram fuga. O que está ali - apontou para o que já estava ajoelhado e algemado - era o carona, estava armado, parou logo após o carro ser interceptado. O outro ali - o que estava sendo trazido pelo policial - deu fuga, entrou pela favela, deu trabalho. No porta mala deles tem 3 corpos, completamente ocos, sem nada dentro.
- Posso dar uma olhada nos corpos?
- Claro senhor - o tenente levou o Gabriel até o carro e eu fui seguindo. Enquanto caminhávamos, eu já coloquei um par de luvas pretas, para um dos meus habituais hobbies, enfiar a mão em morto. O tenente abriu o porta mala, revelando um homem jovem, cerca de 30 anos e um outro com uns 40 anos. Só de bater o olho vi a fita adesiva fechando o abdome de um deles, seguindo o mesmo padrão dos demais. O outro a fita estava solta, mostrando a cavidade aberta. Peguei a lanterna do bolso, fazendo luz na barriga do corpo, vazia, sem nada.
- Fala Flavia.
- Mesmas características. Aparenta ser a mesma fita, cavidade vazia, mesma característica etária, mesma região, próximo a outra desova.
- Espera a Bia chegar pra pegar a imagem e depois só chamar o rabecão. Eu vou falar com os caras.
- Vai coletar o depoimento aqui Cantão? - perguntei porque não é o procedimento
- Não, mas quero saber se estavam indo ou voltando da desova. Porque se estavam indo, não sabem que encontramos. Se estiverem voltando é porque não é mais seguro lá e sabem que tiramos todos. Esses corpos não estão nem fedendo. É de agora - esticou a mão e colocou em um deles - está frio, mas está mole, é recente - se afastou do carro e eu acompanhei - Tenente?!
- Senhor.
- Cade os homens que estavam de serviço?
- Os dois ali senhor.
- Obrigada - foi andando até próximo aos policiais - Vocês viram algum carro ou pessoa alheia a comunidade? Que não tem cara de ser daqui?
- Negativo senhor, estávamos de serviço há cerca de uma hora. Antes disso estávamos mais lá pra baixo, perto da escola, supervisionando a entrada dos alunos.
- Certo. Certo.
- Vai falar com os dois cracudos? - perguntei a ele
- Vou. Vem comigo. - ele estava pensativo, imagino que fazendo mentalmente o enredo do quase interrogatório - Levanta esse aqui, quero falar com ele. - o policial militar pegou o último suspeito que tinha sido preso, puxou ele pelas algemas e levantou-o, fazendo ele ficar de pé e de frente com o Cantão - Algema o pé do sujeito por favor - Assim o policial fez. - Qual seu nome filho?
- Tem nome não “senho”.
- Vamos começar nossa conversa assim? Na ignorância? De novo, seu nome? - o Cantão estava perto do rosto do homem, quase que falando no ouvido dele.
- É Dinho senho.
- Não faz eu perder a paciência imbecil. Quero seu nome e RG. Faz favor, não me força a falar de outro jeito. Nome?
- Arthur Henrique “senho”.
- Quantos anos cara? Puxou quanto de pena?
- To com 25 “doto”.
- Puxou quanto tempo?
- 6 anos “senho”.
- Antigo - voltando a falar com o policial - levantou o RG dele?
- Sim senhor. Teve 6 anos de tráfico de pessoas e aliciamento. - quando o Cantão ouviu isso, olhou automaticamente pra mim. Eu quase comemorei, mas pela situação fiquei em silêncio, séria. Bingo! Achamos nossa ponta do novelo.
- Fazia o que quando foi preso?
- Fazia nada não “senho”.
- Foi preso comprando algodão doce? Facilita moleque, fazia o que?
- Trabalhava “dotô”. Só trabalhava.
- Trabalhava roubando pedaço das pessoas? Traficando órgão moleque?
- Não “dotô”, não sei de nada doto.
- Quem são esses corpos no seu carro?
- Não sabia de corpo nenhum “doto”.
- Você tá me achando com cara de imbecil moleque? Tá?
- Não “doto”. Não “senho”.
- Então fala porr*, quem é?
- Sei não.
- Tava levando pro matagal da ponta pra descovar?
- Sei não “senho”. - O moleque não vai falar nada, muito menos na frente do outro suspeito ao lado dele.
- Cantão, leva pro DP, ele não vai falar aqui - falei com o delegado.
- Não vai mesmo. Ele sabe que tem gente olhando pra ele - o Gabriel então se afastou e foi falar com o tenente. Eu não segui ele, fui direto para a viatura que acabava de chegar, da qual a Bia estava descendo com sua maletinha de fotografia.
- Bom dia xuxu. Tudo bem Bia? - Cheguei perto ela, dei um beijinho em cumprimento. Ela retribiu a saudação, mas assim que nos afastamos, o olhar dela foi em busca do Cantão, que estava falando com os policiais mais a frente.
- Tudo bem Flávia. Ele…
- Agora não Bia, está agitado. Deixa ele trabalhar, assim que ele puder vai vir aqui. Vem, os corpos estão ali no carro. Acho que estão relacionados com os corpos do matagal. Vê o que você acha.
A Bia chegou próximo, analisou, não mexeu em nada, mas falou comigo:
- São iguais, pelo menos bem parecidos.
- Também acho. Bia, não estou preocupada com a posição deles no momento, faz uma imagem geral só pra registrar se foram colocados nessa posição após a morte. Pega a fita, a cavidade aberta. Quero um álbum do rosto, preciso identificar essa galera pra mês passado. Quanto tempo?
- Acho que uns 40 minutos no máximo.
- Ótimo. Vou chamar o transporte dessa galera pro IML. Precisa de ajuda aí?
- Não precisa Flavinha, depois peço pra alguém ajudar a virar eles.
- Estou na viatura, se precisar chama - Fui rapidamente até a viatura que vim com o Cantão e fiz o chamado para o transporte dos corpos. Aproveitei o ambiente até que silencioso e liguei para o legista que estava cuidando das outras vítimas e comuniquei as novidades. Feito isso voltei para o Classic, entrei na parte do motorista e do passageiro, procurando tudo e qualquer detalhe que possa me ajudar na investigação. Abri porta luvas, puxei tapete do carro, apertei banco, apertei teto, apertei o banco de trás, do lado direito, exatamente embaixo da costura. Bingo! Senti algo quadrado, mais durinho.
- Bia vem cá. - gritei pra ela, que terminou a foto e foi onde eu estava. Abri espaço pra ela e pedi - tira uma foto desse banco, fechado, costurado. Vou abrir ele.
- Tem algo aí dentro?
- Tem, só não sei o que é.
- Pronto Flávia - esperei ela sair do carro e entrei novamente. De um dos bolsos da calça eu tirei um canivete de serviço, para esse tipo de coisa, algumas vezes utilizado para rasgar saco de drogas, enfim, canivete de trabalho. Abri o menino e fiquei no banco, bem na linha da costura, tracionando até rasgar. Assim que fiz a empunhada senti a faca batendo em algo rígido.
- Vai lá da outra porta e pega a imagem da caixa aqui dentro do banco - ela foi rapidinho até o outro lado, mexeu em algo na câmera pra ter flash ou luz, sei lá o que.
- Feito - me posicionei de modo confortável e estacionei o estofado. Tec, tec, tec,, cada vez que eu forçava fazia mais um barulhinho. Enfiei a mão e peguei. Uma caixa fechada de Fentanila, uma medicação psicotrópica, utilizada para sedar pessoas.
- Cantão! - gritei para ele vir.
- O que achou?
- Uma caixa de Fentanil, sedativo.
- Registrou saindo do banco Bia.
- Sim, tá certinho.
- Flavia, rasga todos os bancos, vasculha essa merd* até o último centímetro.
- Claro - olhei ele andando em direção aos suspeitos. Eu parei para observar ele por alguns segundos.
- Sabe o que eu achei no carro moleque?
- Não tem nada lá “doto”.
- Tá me achando com cara de palhaço? Tá achando imbecil? Encontrei sedativo, remédio. O que mais tem no carro?
- Nada não “doto”.
- Nada?
- Não.
- Tô te dando uma chance, de boa. Se eu achar vai feder pro seu lado. Tem alguma coisa?
- Nada “doto”. - o Gabriel olhou pra mim e falou bem alto:
- Rasga tudo ai Flávia, vamos ver se o bandido é honesto. - confirmei com a cabeça. A caixa que eu achei coloquei em cima do capô do carro e voltei com o canivete pro banco. Do rasgo que eu tinha feito, puxei mais um, até o outro lado do automóvel. Bingo e mega sena. Mais duas caixas de fentanil, uma de midazolam. Perfeito, pelo lote e informações da caixa eu vou conseguir rastrear de onde saíram.
- Tem mais duas de fenta e uma de Mida.
- Não tem nada né imbecil?! - O Cantão estava quase que gargalhando, estávamos radiantes pelo achado. Eu estava quase chamando um buffet para montar uma festa ali.
- Olha na frente Flávia. quero achar mais coisa - ele se afastou do suspeito e veio em minha direção, acompanhar eu vasculhando. Sai do espaço de trás do carro e fui para o banco do carona, enfiei a faca pelas duas costuras e depois no meio do assento. Nada, sem sucesso nesse.
Segui para o banco do motorista, iniciei pelo encosto, rasguei em três pedaços o estofado, sem sucesso. O último lugar a procurar agora é o assento do motorista. Passei a mão, apertei, um lugar descosturado. Aqui tem.
- Bia, pega o descosturado aqui - assim que ela confirmou com a cabeça, eu enfiei a mão, tracionando o estofado. Um caderno. Abri o espiral, cheio de nomes e datas. Mais uma peça para eu explorar. Olhei para o Cantão, dava para ver o olho dele brilhando, se pudesse soltar fogos.
- Bom trabalho Flávia, bom trabalho. - foi só o que ele conseguiu verbalizar comemorativamente.
- Bia, sabe o que fazer. Registre tudo que puder, quero detalhes. Flávia, limpa a área, pega tudo que puder. Vou voltar pro DP com os dois suspeitos - a Bia apenas concordou com a cabeça, em silêncio. Enquanto eu saia do carro.
- Fechou. Vai deixar uma viatura pra eu voltar ou vou na vassoura?
- Vassoura é um ótimo transporte para você, não amassa
- Só não te xingo porque aqui você é o delegado.
- Ai ai sapatão, vamos ter muito trabalho aqui. Muito. - falou abraçando a Bia por trás, na maior paz e calma, quase que bipolar - Se eu deixar você com a 012, ela volta inteira pra mim?
- Aff, já falei que foi um acidente.
- Um?
- Se eu ficar sem carro a Bia volta como? - ela entrou na brincadeira, olhou pra trás, ainda abraçada e fez uma cara de só, perdida.
- Eu pago um uber pra ela.
- Para de encher o saco Gabriel. Da a chave, palhaçada. Me espera para colher o depoimento deles. Pode ser?
- Espero sim claro. Vou providenciar o flagrante e as papeladas. Dá tempo sossegado de você chegar.
- Coloca eles em celas bem longe um do outro, de preferência onde não possam trocar nenhuma informação.
- Sim senhora. Depois eu me pergunto quem é o chefe.
- Me erra, vai embora vai. - ele soltou um dos braços que abraçava a Bia e apoiou um em mim.
- Vamos beber hoje? Sextou Flávia, e sextou com sucesso.
- Eu não bebo.
- Eu sei careta, você toma uma água. Vamos Bia?
- Eu fecho sim. Vamos Flávia?
- Eu tenho prova, posso ir depois se quiserem.
- Beleza, podemos beber lá perto. Quando você sair encontra a gente.
- Tá, mas só posso beber se você sair daqui e deixar a gente trabalhar bonitão.
- Aff azeda. Vejo vocês no DP - E deu um beijo surpresa no rosto dela, estalado, barulhento. Ela até se assustou.
- Ele é bipolar assim sempre? - Falou já voltando a mexer na máquina de fotos
- Ele estava trabalhando, fica sério mesmo. Tanto que passou e ele veio brincar com a gente. Viu ele falando com os suspeitos?
- Sim, não conhecia esse lado.
- Bia, chega uma hora que a gente passa por tanta coisa em campo que isso muda a gente. Ele veio dirigindo igual um louco, conversando, mas quase bateu o carro. Ele sabe separar bem as coisas, mas já é bem mais prudente que no começo da carreira.
- O que foi esse lance do carro?
- Ahhh, faz um ano mais ou menos. Estávamos em uma abordagem, eu dirigindo um carro e ele estava em um outro, mas no passageiro. Toda vez que a gente chega perto, o suspeito acelerava. Eu perdi a paciência e fiz uma barbeiragem, cortei pela contra mão, nessa já lambeu a lateral da viatura, acelerei mais que o suspeito e enfiei meu carro na frente do dele.
- Você é louca? Tá boa? - mostrou a tela da câmera.
- Tá ótimo, depois faz do rosto. Ah, precisava para o cara, estava tendo tiroteio, não pensei muito não. Só que nessa, a viatura capotou, rompei eixo, estourou vidro. Mas pegamos o imbecil.
- Você se machucou?
- Já me machuquei mais em outros momentos. Fiquei dolorida, arranhada. Com roxo onde ficou o cinto.
- Você não bate bem!
- Ah Bia, às vezes precisa arriscar pra dar certo. Eu fiz isso, além de pegarmos o cara, nenhum civil foi baleado. Isso por si só já foi ótimo porque o jeito como estávamos atirando nele, alguém iria se machucar. Aí é por isso que ele faz piada, porque eu sou a kamikaze da viatura.
- Mas só foi esse acidente? Não é tão ruim;
- Não, eu sempre estrago viatura. Perco vidro, retrovisor, em perseguição eu vou pegar o cara, mas não tô nem aí com o carro. Quando ele era investigador não tinha que prestar contas, então era tudo raça. Agora como delegado a bronca é dele, por isso pega no meu pé.
- Mas já se machucou feio?
- Já sim, braço quebrado, tiro de raspão, sempre dá um pouco de ruim, mas é quase um tempero. - Ouvi um barulho e olhei rápido para a subida da rua, nunca na vida o rabecão chegou tão rápido - Olha quem chegou. Fez tudo Bi?
- Sim sim. Tudo registrado.
- Posso mandar pro IML?
- Aí é com você, eu fechei o meu.
- Beleza, me espera perto da viatura que a gente já vai - Segui em direção ao caminhão de transporte, me apresentei já que essa é uma equipe nova de motoristas. Expliquei que já avisei o legista, orientei o que precisava. Depois disso fui até o comando dos policiais militares, expliquei que já estava tudo certo, agradeci ao serviço deles e me despedi. - Partiu Bia?
- Agora Flavinha.
- Entra ai. Prometo não acelerar muito o carro.
- Eu já peguei carona com você, foi tão tranquilo.
- Eu dirijo super bem, o Cantão que fica de palhaçada comigo. - fomos conversando conforme eu seguia pela cidade - E como vocês estão? Algum avanço?
- Ah, ele me chamou pra ir amanha, sabado, ver ele jogar futebol americano.
- Rugby. Não é futebol americano. Que legal! Você vai gostar de ver ele jogar, ele ia mais quando era plantonista, tinha dia certo de trabalho. Agora só vai quando dá.
- De manhã ele falou pra irmos com você ver seu apartamento.
- Que bom que ele não me avisou nada.
- Não? - ela automaticamente começou a ficar agitada, ansiosa.
- Calma Bia, isso a gente arruma a tarde. Vemos um horário. É bom você dar uma olhada, vai que aceita logo dividir comigo.
- Ah, é bom olhar né?! - falou como se fosse um “tira o cavalinho”, mas eu forcei mais
- Se vai olhar é porque pode ser? Vê o que você acha, tem dois quartos, pra quando você enjoar de mim dormir lá. Não me oponho de levar o Cantão - ela ficou roxa quase - Só falando, e é perto do trabalho.
- Eu vou só acompanhar vocês.
- Relaxa Bia, o importante é que ele te chamou pra algo, vão beber hoje, está evoluindo algo.
Fomos conversando o trajeto todo até o DP, eu dirigi rápido, mas com bastante segurança. Só causo essas loucuras quando preciso mesmo. O trajeto foi tranquilo, fiz mais propaganda do apartamento, gostaria mesmo mesmo que fosse ela a dividir comigo. Não gosto de gente estranha em casa, mas preciso dividir com alguém.
- Chegamos ao seu destino srta Bia - falei imitando o som do aplicativo.
- Foi quase isso Flávia.
- Se quiser pode ir descendo, vou estacionar dentro do pátio.
- Precisa das fotos agora?
- Bia, relaxa a bistequinha. Já tenho um milhão de papéis para analisar, manda as fotos depois. Relaxa.
- Tá Bom. Vai almoçar aqui?
- Sim, sim. Tem comida na bolsa. Me chama quando for comer eu vou junto.
- Tá, te chamo. - Ela desceu do carro e foi subindo para o laboratório ou outro lugar, eu estacionei a viatura, sem nenhum arranhão ou batida. Passei no vestiário para lavar o rosto, usar o banheiro e voltei pro meu computador, onde estava há quase 4 horas atrás.
Se pela manhã eu tinha um batalhão de casos para analisar e puxar informações, agora tenho o mesmo batalhão, mas um fluxo de ideias importantes para amarrar. Sem contar que preciso me preparar para o interrogatório dos dois suspeitos de hoje. Levantei da mesa e olhei no fundo do corredor, na sala do Cantão, ele estava com um dos suspeitos e o policial da ocorrência digitando. Esse processo vai demorar, se ainda está no primeiro suspeito, o depoimento vai ficar pra depois com certeza. Voltei para a minha mesa, nem mexi no meu celular desde ontem a noite praticamente, tanto que tinha perdido a mensagem da Bruna.
Abri o bolso da calça e puxei o celular de lá. Apertei duas vezes a tela até ele ligar. Assim que as contas se acalmarem, vou providenciar um aparelho novo, esse aqui mais trava que funciona. O grupo da minha turma de faculdade estava bombando mais de 200 mensagens, sem chance de eu ler. Segui para a de baixo, Ana Lu, provavelmente falando da faculdade. Abri a mensagem dela.
- Flávia, viu o grupo? A prova de direito Penal será no primeiro horário. Você vai conseguir chegar? Achei um absurdo isso.
- Nossa, vai me salvar muito ser mais cedo. O Cantão quer beber depois da prova, na verdade ele já vai estar no bar. Quer dar uma passada?
- Quero sim, vai que consigo dar um oi nele.
- Esquece, vai estar acompanhado.
- Aff. Ah, chega cedo pra revisar comigo. Não sei nada dessa matéria.
- Horário de sempre, lá pelas 18h. Bjo
Voltei o aplicativo e seguir a ordem, mensagem da delegacia, mensagem do condomínio e lá embaixo, última enviado às 8 horas, mensagem da Bruna. Abri de bate pronto
- Flavia, consegui mudar a reserva para sábado. Tudo bem? Preciso chegar lá por volta das 19 horas, você consegue?
- Oi Bru, desculpa a demora para responder, passei a manhã toda em uma ocorrência complicada. Consigo chegar às 19h sim, foi tranquilo trocar a reserva? - de imediato apareceu o “digitando”
- Sim, como é para o jornal, eles trocaram tranquilamente, só temos essa questão do horário. Depois vemos certinho onde nos encontrar e tudo mais. Hoje você tem faculdade?
- Tenho sim, na verdade tenho prova de Direito Penal. Porque?
- Ah, tudo bem. Eu ia propor você tomar um suco a noitinha, mas você tem prova. Esquece. - mancada eu furar, apesar que não é nada programado, o programado é no sabado. Mas se ela esperar da pra ser depois da prova.
- Bru, minha prova será no primeiro horário, até umas 20h, 20h30 devo estar liberada. Fica tarde pra você?
- Não, eu vou sair por volta desse horário do jornal. - tem o rolê com o Cantão, será que ela quer? Vou chamar, vai que cola.
- O Cantão chamou um pessoal para beber em um bar ao lado da faculdade, fiquei de encontrar ele depois que acabar minha prova. Quer dar uma passadinha lá? É só o pessoal da equipe mesmo.
- Ah, pode ser sim. Fico conversando com o Bibo até você chegar. - Nem vou comentar que ele vai estar sem nem piscar com a Bia ao lado dele.
- Ainda não me acostumei com você chamando o delegado de Bibo.
- Coisa de adolescente. Acredita que estou toda dolorida?
- Claro que imagino, falei que o treino era pesado, pra você fazer o seu.
- Se eu tivesse feito o meu você não teria me ajudado o tempo todo. Achei super fofo você me ajudando e tirando uma lasca a cada exercício. Eu percebi viu?! - Bruna e sua habilidade em me fazer ficar sem graça, eu fico toda travada com essas diretas dela.
- Quase que o preço pela assessoria.
- Quem sabe se você pedir não aumento o pagamento? - ai cacete, respondo o que? Pensa Flavia, pensa. Vou sair pela culatra mesmo.
- Só treinarmos sempre que posso reavaliar o custo. Fechado então hoje a noite? Vou te mandar o endereço, lá pelas 20h, 20h30. Depende do horário que eu sair.
- Tudo bem, eu te espero. Só não fura, por favor.
- Claro que não Bru, não sou pipoqueira.
- Estou contando com isso, já ansiosa para te ver de novo. - mais uma direta. Respondi com um emoji de timidez, com o rosto vermelhinho.
Eu sempre fui muito direta nas minhas pegações. Sempre é muito forte, todos depois da Fabi, ou seja, no último um ano, um ano e meio. Sempre fui a caçadora, cartas na mesa, pegação, beijo. Uma vez só, se for legal duas, jamais tres. Forçou a barra pra algo serio, descartada. Simples assim, claro e limpo. Mas com a Bruna está sendo algo diferente, eu travo com ela, me perco nas respostas, só falta eu tropeçar na frente dela. A conversa é gostosa, leve. Medo? Eu tenho vários. Mas não quero nada sério, isso eu não quero. Provavelmente vai ser só uma pegação, um pouco mais demorada, do tipo dois encontros, estourando três. Depois disso eu dou um perdido, ela vai entender o sumiço e cada um segue o caminho. O que pode atrapalhar um pouco é a relação dela com o Cantão, podemos nos pegar e ainda acabar nos esbarrando por aí. O pior é que está tão corrido esse final de semestre que eu não estou tendo energia para caçar, estou deixando ser caçada e não me sinto muito segura nisso. Preciso usar esse domingo de folga para pensar tudo com calma e entender até onde eu posso abrir espaço, acho que o jogo é o mesmo, só em uma versão mais prolongada.
Fim do capítulo
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