Capitulo 2
Cali acordou por volta das nove da manhã. Sentia-se enfim descansada e disposta. Fez um bom café e tomou quentinho do jeito que gostava. Arrumou a casa e decidiu estudar um pouco. Era por volta das onze da manhã quando recebeu a visita de Fábio que não tinha uma cara nada boa.
- Foi uma festa e tanto, hein? - Zombou Cali após cumprimentar o rapaz, conhecia-o há pouco tempo, mas já se sentia íntima dele - Sei do que você precisa: um café bem forte.
- Obrigado. Você é um anjo. - Disse Fábio, sentando-se no sofá de Cali. - Minhas costas doem, acabei dormindo no chão, tudo culpa daquela louca da Paloma. Tenho certeza que ela me derrubou da cama...
Cali não conseguiu controlar o riso.
- Ri porque não é com você.
- Desculpe, mas é que me pareceu engraçado. Não se preocupe, vou lhe fazer uma boa massagem.
A expressão de Fábio mudou.
- Isso não posso recusar. - Respondeu prontamente. - Você é perfeita, garota.
Cali sorriu com o elogio do rapaz que se estendeu à sua massagem e ao gosto de seu café que ele definiu como MA-RA-VI-LHO-SO.
- Nossa, você tem que ensinar a Paloma a fazer um café de verdade, não aguento mais aquela água de barata que ela faz.
- Você implica mesmo com a sua colega, não é? - Perguntou Cali, divertida.
- Só de vez em quando. Mas eu a amo, ela é uma pessoa difícil no começo, mas depois que você a conhece melhor, difícil é deixar de amá-la.
- Poxa, Fábio. Você sabe dizer coisas realmente bonitas. - Disse Cali, sentando-se no sofá ao lado do rapaz.
- Algumas vezes. Gosto muito de escrever. Sou professor de Literatura, sabia?
- Não brinca! Que fantástico!
Conversaram por algum tempo sobre seus livros favoritos, em seguida falaram sobre filmes e depois o assunto passou para música.
- Acho que encontrei minha alma gêmea! - Comentou Fábio, fascinado. - Vai ser ótimo ter uma vizinha como você. Mas me fala como você veio parar aqui.
- É uma história um pouco longa. - Falou Cali, reticente.
- Sem problema, adoro histórias longas. Quer dizer se você estiver disposta a me contar...
- Claro, se vamos ser amigos é bom que você saiba.
- Então, garota. - Falou Fábio, enlaçando suas mãos nas de Cali. - Sou todo ouvidos.
- Bem, tudo começa com meu pai - Explicou Cali. - Sou filha de Murilo Antunes.
Parou um instante de falar para ver se o rapaz esboçava algum reconhecimento.
- O deputado Antunes? Você é filha dele?
- Sim - Confirmou Cali - Ele mesmo.
- Nossa! Nunca poderia imaginar. - Exclamou Fábio, visivelmente surpreso.
- Eu sei da postura conservadora do meu pai...
- Cali, você não precisa se desculpar pelo o que o seu pai faz ou deixa de fazer... - Falou Fábio, compreensivo. - Então, me conta, por que você saiu de casa?
Cali contou sua história para Fábio sem omitir nenhum detalhe. Sentia-se bem em ter alguém para desabafar. Afora o fato de ela ser filha do deputado Antunes, inimigo número um de toda a comunidade LGBTQIA+, o rapaz compreendeu muito bem a situação de Cali e ofereceu seu apoio incondicional.
- Não se preocupe, garota. Agora você tem a mim. E não vou te deixar sozinha.
- Obrigada, Fábio. Você é um amor!
- Escuta Cali. Você tem algum compromisso para hoje à noite? - Perguntou Fábio.
- Na verdade, não. Ia ficar em casa... Como te falei estou com pouco dinheiro. - Confessou Cali.
- Vou estender a comemoração do meu aniversário hoje. Já esteve em uma balada mais alternativa?
***
Cali nunca havia estado em uma boate gay. Na verdade, nunca tivera um amigo que fosse gay até então. Pelo menos que ela soubesse. Aceitou o convite de Fábio, pois achava que seria divertido e tinha uma curiosidade imensa de saber o que encontraria por lá. Embora já tivesse alguma ideia. Já ouvira falar por seus amigos que as boates mais badaladas da cidade eram ambientes alternativos frequentados pelas pessoas mais quentes e bonitas do momento. A ironia disso tudo era pensar o que o seu pai faria se soubesse onde ela estava naquele momento.
Um amigo de Fábio ofereceu carona para levá-los. Era um rapaz muito bonito chamado Jorge. Cali achou que provavelmente ele fosse um antigo namorado de Fábio. Estacionaram um pouco afastados devido à fila de carros que se acumulavam àquela hora em volta de diversos bares e restaurantes. O She´s ficava em um ponto bastante movimentado da cidade. Estava lotado, Cali ficou impressionada com a quantidade de pessoas que apinhavam o local. O She´s possuía uma pista de dança enorme, em que um DJ tocava as mais pedidas das paradas.
Quase não encontraram uma mesa disponível. Só conseguiram porque Jorge tinha bons contatos.
- Bem, Cali, já que você não bebe, trouxe um refrigerante. - Anunciou Fábio. - E eu vou tomar vodca.
- Ué, Fábio, mas ontem você já não tomou todas. - Provocou Cali enquanto pegava o refrigerante que o rapaz lhe estendia.
- Digamos que vou estender minha comemoração, afinal, hoje a noite está demais. - Falou Fábio lançando um olhar para pista de dança que estava bastante animada.
- Então, Cali. O que está achando do local? - Perguntou Jorge, curioso.
Cali olhou ao redor antes de responder, a pista estava bombando. Desde que chegou Cali já havia se deparado com alguns casais se beijando. A pegação também corria solta.
- Gostei daqui. É sempre tão animado?
- Sim, aqui se dança a noite inteira e a boate está sempre lotada. - Respondeu Jorge.
- Sem falar na quantidade de gatinhos... - Provocou Fábio.
Cali não resistiu e soltou uma boa risada, depois deu um bom gole no seu refrigerante enquanto Fábio descia mais uma dose de vodca.
- Quer dançar, Cali? - Ofereceu Jorge.
- Demorou! - Comemorou ela. - E o Fábio?
- Ah, não se preocupem comigo, vou ficar um pouco aqui com minha vodca. Mais tarde me jogo na pista.
- Ok. - Concordou Cali.
Jorge puxou Cali para a pista. Tocava uma música da banda Black Ayed Peas que era sucesso nas paradas. Cali não lembrava a última vez que pudera dançar e se divertir livremente. As últimas festas que tinha ido não foram nada divertidas e ela tivera que ir embora mais cedo devido ao tédio. Dançou muito com o rapaz que sabia se mexer muito bem e a puxava para si de vez em quando com muita confiança. Havia muitas pessoas na pista e de vez em quando alguém tentava se por entre os dois, mas Jorge queria dançar apenas com sua companheira, o que Cali achou ótimo, pois não sabia como reagir diante das investidas de garotas, não estava acostumada com isso.
Minutos depois que Cali e Jorge deixaram Fábio. O rapaz estava levando um copo de vodca à boca quando foi interrompido por uma mão que roubou sua bebida.
- Mas o que diab... - Protestou Fábio
- Hum, isso está ótimo! - Exclamou Paloma, devolvendo o copo ao rapaz e sentando ao seu lado.
- Se você pudesse beber, não é garota? - Esnobou Fábio, que sabia que a amiga não poderia abusar da bebida devido a sua vida de atleta. - Pensei que não viesse.
- E o que você acha que eu iria fazer sozinha num sábado à noite, Fabinho? - Provocou Paloma. - Passei em casa para te pegar e você não estava mais.
- Você ainda me deve uma por ontem à noite, viu? E o Jorge me deu uma carona.
- O “seu” Jorge? Onde ele está?
- Ele não é “meu” Jorge, isso é passado. - Esclareceu Fábio, contrariado. - Ele está na pista com a Cali.
- Cali? A vizinha?- Perguntou Paloma, surpresa.
- Sim, eu a trouxe. - Confirmou Fábio.
- Você é louco, Fábio. Como é que você traz essa garota aqui? - Perguntou Paloma, irritada. - É dar bandeira demais, não acha?
- Calma, por que está tão chateada? Ela é minha amiga e além do mais não poderia deixar aquela princesinha sozinha.
- Por que não a levou a outro lugar? Ao cinema, por exemplo? Por que você tinha que trazê-la justo aqui? O que ela vai pensar de mim? - Falou Paloma, alarmada.
- Credo se acalma. - Pediu Fábio. - Desde quando você se importa com isso. Nunca esteve nem aí para o que os outros pensam de você. Além do mais, você não conhece a Cali, ela não vai pensar nada de você. Ela não é como o pai...
- O que tem o pai dela?
- Gata, babado. Ela é filha do deputado Murilo Antunes. - Cochichou Fábio.
- Odeio aquele cara! - Exaltou-se Paloma - Então, a princesa fugiu do castelo do pai malvado...
- Não é bem assim. É complicado, ela me confidenciou algumas coisas que não posso falar porque não me pertencem.
- Ah, claro. Ela abriu o coração para o amigo gay, que clichê! - Repudiou Paloma. - Não seja idiota Fábio. Não vê que ela está te usando.
Fábio olhou para a amiga, chateado por ouvir aquilo. Nesse momento a bebida pesou um pouco e o rapaz não mediu as palavras.
- Não acredito que disse isso. Você é que está sendo muito idiota, sabia? Só está desdenhando porque está chateada. Sabe que ela nunca se interessaria por você!
Paloma não respondeu. No instante em que dissera aquilo Fábio arrependeu-se, sabia que havia acabado de magoar de verdade a amiga. Só tinha dito aquilo porque achava que Paloma aguentaria, agora já não tinha tanta certeza.
- Desculpe, amor. - Pediu Fábio, apertando a mão de Paloma.
A garota não disse nada, mas retribuiu o aperto do amigo.
Instantes depois, Cali apareceu sozinha, encontrou Fábio sentado ao lado de Paloma, os dois estavam muito calados.
- Olá. - Disse Cali, quebrando o silêncio constrangedor que caía sobre a mesa.
- Olá, Cali. Divertiu-se muito? - Cumprimentou Fábio observando a garota que estava bastante suada e eufórica.
- Demais. O Jorge foi buscar uma água. - Respondeu ela ofegante, recuperando o fôlego, depois se virou para Paloma e a cumprimentou.
- Oi - Falou Paloma.
A garota estava bastante emburrada, Cali percebeu que algo tinha acontecido entre os dois amigos, talvez estivessem chateados um com o outro. Deviam estar brigados por algum motivo, mas o que ela não poderia imaginar era que, de algum modo, fosse ela o pivô da discussão entre eles. Cali não ficou surpresa de ver Paloma no bar, achava que a garota não estava ali porque foi convidada a conhecer o local como ela, talvez fosse uma frequentadora assídua do lugar como seus amigos Fábio e Jorge.
Cali sentou ao lado de Fábio. Por sorte, Jorge apareceu e quebrou o gelo, trazia água e refrigerantes.
- Paloma, você veio?!- Cumprimentou Jorge animadamente dando um beijo na garota que forçou um sorriso.
Jorge estava tão eufórico que nem percebeu que havia algo estranho.
- Eu quero um desses - Pediu Paloma pegando uma latinha de refrigerante.
- Tudo bem. Já que vocês garotas não bebem álcool. Eu e o Fabinho aqui vamos nos embebedar por nós e por vocês. - Comentou Jorge.
- Esqueceu que veio dirigindo? - Perguntou Fábio, mal-humorado.
- Não seja estraga prazeres. E que bicho te mordeu, hein? Você precisa é dançar.
Dizendo isso, Jorge puxou Fábio da cadeira.
- Vem, vamos! - Insistiu Jorge.
- Ok, estou indo - Cedeu Fábio.
- E vocês, meninas? Não vão vir? - Convidou Jorge.
- Agora não, Jorge. Já dancei demais, preciso dar um tempo - Recusou Cali, tomando mais um gole de água - Talvez mais tarde.
- E você, Paloma?
- Não estou muito afim hoje, passei o dia treinando. Estou acabada.
- Ok, então. Vou deixar vocês aí, perdendo a noite - Desdenhou Jorge - Vamos, Fábio.
As duas garotas ficaram sozinhas. Cali queria dizer alguma coisa para puxar assunto, mas não sabia o que. Por outro lado, Paloma não parecia nada convidativa. Estava visivelmente irritada com alguma coisa. Cali estava achando que talvez a garota não tivesse ido com sua cara, o que era uma pena já que ela tinha gostado de Paloma, sentia uma energia boa vinda da garota, que a atraía. Não sabia bem que atração era aquela, mas definitivamente não era algo ruim.
As duas bebiam seus refrigerantes em silêncio. De vez em quando, Cali observava os casais na pista ao longe, notou que à medida que a noite avançava cada vez mais casais se soltavam, alguns se beijavam furiosamente pelos cantos do bar. Ficou envergonhada quando percebeu que Paloma a observava olhar curiosamente para um casal de mulheres que se agarravam na pista.
- Vou trazer mais refrigerantes e alguns sanduíches, você quer? - Perguntou Paloma, após um tempo.
- Seria ótimo. Estou faminta.
- Volto já - Anunciou Paloma, levantando-se.
Cali pegou-se observando Paloma enquanto ela se distanciava. Só então reparou que a garota vestia uma calça jeans colada e uma blusa preta com um decote discreto. Estava espetacular. “Que gata”, pensou. Diante desse pensamento, riu de si mesma: “acho que está ficando louca, Cali. Desde quando se interessa por mulheres... deve ser esse lugar... mexe com a gente”
Um tempo depois, uma garota apareceu junto a mesa.
- Olá. Está sozinha? - Perguntou se aproximando de Cali.
Cali assustou-se, não percebeu a chegada.
- Bem, na verdade não - Respondeu Cali, constrangida.
- Então, cadê a sua companhia... eu não te deixaria sozinha assim - Provocou a garota, sedutora.
Nesse momento, Paloma apareceu, colocou o prato que trazia em uma das mãos e o refrigerante em cima da mesa. Com as mãos livres, as colocou na cintura e se virou para garota que dava em cima de Cali.
- Algum problema? - Perguntou ela, ameaçadoramente.
- Problema nenhum, Paloma - Respondeu a garota - Desculpe, não tinha visto você. Vou nessa.
A garota afastou-se rapidamente.
- Ela estava te incomodando?
- Um pouco - Confessou Cali - É amiga sua?
- Minha? Deus me livre! Eu sei escolher as minhas companhias - Falou Paloma, servindo-se de um sanduíche. - Não vai comer?
- Vou sim. Aliás, quanto te devo pela comida?
- Não me deve nada. Eu ofereci, lembra?
- Obrigada - Cali agradeceu, não estava em posição de recusar.
Comeram em silêncio durante um tempo. Cali notou que embora Paloma não parecesse estar nada à vontade com a situação, nas poucas vezes que se dirigia a Cali, tentava ser gentil com ela embora definitivamente estivesse numa péssima noite.
Mais tarde Fábio apareceu, parecia acabado. Trazia sua garrafa de vodca já quase vazia e virou mais uns goles.
- O Jorge tá louco hoje - Comentou Fábio. Sentando-se entre as garotas.
- E onde está ele? - Perguntou Paloma.
- Não sei. Encontrou um cara aí e me abandonou. Acho que ele já tem alguém para levá-lo para casa...
- Não devia beber tanto, Fábio. Já exagerou ontem - Falou Cali, preocupada.
- Eu tô bem.
Mas Fábio não parecia nada bem, o garoto deitou a cabeça na mesa e fechou os olhos - Só com sono.
- Já chega. Vou te levar para casa! - Decidiu Paloma, levantando-se - Você me ajuda?
Cali também se pôs de pé e segurou um dos braços de Fábio e colocou-os sobre seus ombros enquanto Paloma o segurou pelo outro.
As garotas conduziram o rapaz para fora do bar com alguma dificuldade devido a quantidade de pessoas que estavam pelo caminho. Lá fora, Paloma conduziu-os ao lugar em que seu carro estava estacionado.
- Ei, menina, pode segurá-lo enquanto eu abro a porta? - Perguntou Paloma, tirando as chaves do bolso traseiro do jeans.
- Posso sim.
Paloma abriu a porta de trás do carro sobre os protestos de Fábio, que estava fora de órbita. Com a ajuda de Cali, ela o deitou no banco traseiro. Paloma tomou a garrafa da mão do rapaz: “Larga o osso, você não vai precisar mais disso”, brincou ela.
Paloma abriu a porta do motorista e entrou. Só havia restado para Cali o banco do passageiro ao lado da outra garota.
- Coloca o cinto, menina.
- Cali - Falou Cali colocando o cinto de segurança.
- O quê? - Perguntou Paloma enquanto tentava manobrar na rua cheia de carros e movimentada de pessoas.
- Não precisa me chamar de menina. Me chame de Cali.
Paloma deu uma olhada de esguelha para a garota ao seu lado.
-Tudo bem, menina. - Brincou ela.
Cali sorriu.
- Isso foi uma piada. Que progresso!
- O que quer dizer?
- Nada é que você estava muito séria lá no bar - Comentou Cali - Posso perguntar se houve algum problema entre você e o Fábio.
- Você já perguntou, não é? - Desconversou Paloma.
- E você não respondeu, não é? - Provocou Cali.
Cali observou o sorriso de Paloma, o primeiro que via na face da garota naquela noite. Reparou que ela ficava ainda mais encantadora sorrindo... “Merda, esses pensamentos de novo”, reprimiu-se ela mentalmente. Queria ser amiga de Paloma, mas teria que se controlar ou a garota acharia que ela estava flertando e isso era algo muito estranho vindo logo dela que nunca havia se interessado por garotas... “Mas não estou interessada”, reprimiu-se mais uma vez.
- Não aconteceu nada, Cali. Coisa nossa, a gente supera.
Cali não ficou muito satisfeita com a resposta. Paloma pareceu perceber, pois acrescentou em seguida:
- Sério. Acontece que de vez em quando somos cretinos um com o outro.
Cali observou Paloma checando o banco traseiro pelo retrovisor. Instintivamente, a garota virou-se para observar Fábio que parecia estar dormindo profundamente.
- Ele fica uma gracinha dormindo, não é? - Comentou Cali.
Paloma não fez menção de responder apenas balançou a cabeça, divertida.
Tudo que Paloma queria naquela noite era se divertir com alguma garota, talvez passar a noite fora, mas quando viu Cali na boate ficou indignada com Fábio por haver trazido a garota sem avisá-la. Já havia se conformado com o fato de que não tinha chances com ela. Além disso, sentiu que estavam invadindo seu espaço, sua privacidade. Era como se Cali estivesse vendo embaixo de uma máscara na qual Paloma se escondia em que somente pudessem penetrar com permissão, mas aquele era um lugar público, afinal. Não estava se escondendo de nada, apenas fazendo o que costumava fazer.
Apesar do mal-estar com o amigo que a deixou ressentida, Paloma gostou da companhia da garota, embora não tivesse tido coragem para ter uma conversa decente com ela durante a noite. Ficou indignada com a garota que tentou dar em cima de Cali. Certas pessoas simplesmente não se enxergavam. Agora, conversando com Cali no carro, ficou mais relaxada. Cali tinha visto embaixo da máscara e não estava fugindo, ao contrário, parecia que ela estava tentando se aproximar.
- Minha vez de fazer uma pergunta - Disse Paloma.
- Manda - Falou Cali, gostando de ver Paloma mais à vontade.
- De onde vem seu nome?
- Ah, pensei que você tivesse uma pergunta mais difícil - Brincou Cali. - Sempre me perguntam isso.
- Então?
- Bem, é o nome de uma deusa indiana. Gosto bastante, mas não sei bem em que minha mãe estava pensando quando me deu esse nome. Nem sei se ela sabia.
- Por quê?
- Kali com K, é a deusa indiana da morte e da sexualidade. Um mito bastante interessante, na verdade. Você já deve ter visto a famosa figura azul, de olhos esbugalhados e com vários braços?
- Talvez. Mas como pode ser algo bom se tem a ver com morte - Argumentou Paloma.
- Aí é que está. A morte é necessária, já pensou se não houvesse os ceifeiros para levar as almas. Elas ficariam vagando por aí. Esse é um dos papéis de Kali, trazer equilíbrio ao mundo - Explicou Cali, entusiasmada - Desculpe, acho que já estou lhe aborrecendo...
- Que nada! Estou adorando ouvir você.
Paloma ficou envergonhada pelo que disse. A última coisa que ela queria era que Cali pensasse que estava dando em cima dela como as outras garotas na boate. Precisava se policiar, o que ela nunca poderia imaginar era que Cali tentava fazer o mesmo.
- Posso fazer uma pergunta? - Falou Cali.
- Acho melhor pararmos com isso. Que tal fazermos o seguinte, daqui por diante, toda vez que tivermos uma pergunta, simplesmente fazemos, ok?
- Ok - Concordou Cali - É que tive a impressão lá no bar que você não foi muito com a minha cara, queria saber se era somente impressão...
Nesse momento o carro parou no sinal vermelho e Paloma virou o rosto para olhar Cali de frente.
- Desculpe se te dei essa impressão - Pediu ela, com sinceridade. Olharam-se nos olhos um momento, para desviá-los logo em seguida.
Não conversaram até a conclusão do trajeto que levava ao prédio em que moravam. Chegando lá, Paloma conduziu o carro ao estacionamento e pediu ajuda a Cali para colocar Fábio na cama. Por sorte havia um pequeno elevador no prédio em que puderam colocar Fábio. No quarto, com Fábio já deitado em sua cama, Paloma tirou os sapatos do rapaz e os deixou ao pé da cama.
- Nossa, imagina o que ele faria se soubesse que nós o estamos pondo na cama como um bebê - Comentou Cali, observando enquanto Fábio acomodava a cabeça no travesseiro.
- Não se engane, Cali. Essa não é a primeira vez que ele faz isso. O Fábio é assim, às vezes exagera. Eu devia era ter lhe dado um banho bem gelado!
- Ah, não, isso seria cruel - Repudiou Cali.
- Na verdade, talvez isso fosse o melhor a se fazer. - Falou Paloma, mas ao receber um olhar de reprovação de Cali, disse: - Bem, talvez não hoje.
Cali olhou para o relógio. Já passavam das duas das manhãs e ela sentia sono.
- É melhor eu ir. Já está tarde - Anunciou Cali.
- Não quer ficar mais um pouco? Não sei, ver TV... – Perguntou Paloma visivelmente decepcionada.
Cali ficou bastante tentada a ficar. Não sentia a mínima vontade de estar longe de Paloma, não sabia o porquê daquela atração pela outra garota, mas decidiu recusar o convite, pois não queria abusar da hospitalidade dela.
- Eu até gostaria, mas talvez outro dia. Estou com sono.
- Tudo bem, nos vemos amanhã, então?
- Sim. Tudo bem - Concordou Cali - E obrigada por tudo.
- Não foi nada. Obrigada por me ajudar com o Fábio.
As duas ficaram paradas um instante, indecisas sobre como se despedirem. Cali, então tomou a iniciativa e deu um beijo rápido em uma das bochechas de Paloma. Teve que levantar os pés um pouco para alcançá-la já que ela era mais baixa do que a outra garota. Depois de fechar a porta, Paloma passou a mão na bochecha no lugar em que Cali a havia beijado, por um breve momento havia sentido os seus lábios macios em sua pele. Foi como se uma descarga de energia tivesse atravessado seu corpo naquele instante. “Será que ela também sentiu?” Perguntou-se Paloma. “Não, não é possível, ela não é como eu. Vou ficar louca desse jeito”
Mas o que ela não sabia era que Cali havia sentido algo. Os quase vinte anos de vida de Cali não a haviam preparado para o que ela achava que estava sentindo. Era uma mistura de emoções e sentimentos que nunca havia sentido antes por ninguém. Alguma coisa entre o dia anterior antes de conhecer Paloma e o dia de hoje havia acontecido. Ela não sabia o que, não fazia ideia. Só o que tinha certeza é que gostara de Fábio facilmente. De um jeito que já havia gostado de outras pessoas antes, mas com Paloma tinha algo diferente. Desde que a vira pela primeira vez, sentiu necessidade de permanecer perto dela, de conhecê-la, de serem amigas. Mas havia algo mais. Foi fácil perceber a orientação sexual de Paloma, encontrá-la na boate àquela noite só havia confirmado isso. Cali não se assustou, percebeu que a postura de Paloma era diferente das garotas que tentavam dar em cima dela. Isso facilitava as coisas para ela, porque se Paloma quisesse se jogar em cima dela, dificilmente seriam amigas. “Se bem que se ela quisesse se jogar em cima de mim...”, Pensou Cali. “O que estou dizendo... acho que preciso daquele banho de água fria.”
Fim do capítulo
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