Capitulo 46
CAPITULO 46
O VELHO
As vozes não estavam muito distantes. Pelo timbre forte, dava para sentir que dois machos estavam se aproximando, conversando animadamente. Pelo que eu entendi, estavam querendo dar um flagrante na filha de Lúcifer, descobrindo suas mentiras e a desmascarando perante o pai; eles pretendiam levantar provas suficientes para acusá-la de estar com conchavo junto às humanas e bruxas, desmoralizando, assim, a filha do rei do inferno e assumindo seu lugar na preferência de sucessão do trono, já que ele era um dos irmãos.
― Esther, vou tentar abrir uma porta com a runa do desbloqueio. ― Encostei a mão na parede, mas não aconteceu nada. Tentei mais uma vez, forcei a mão para ver se atravessava para o outro lado, mas também não adiantou. Bem próximo a mim, Esther passava pó mágico de todas as cores disponíveis nos pequenos buracos da parede, nada acontecia, nem uma pequena abertura surgia. As vozes estavam cada vez mais perto e Gilles falou baixinho:
― Esperem, meu sangue foi mais modificado do que o de vocês. O da Ameth também. Podemos ter no nosso sangue elementos diferentes dos demais, já que ele foi tão misturado que talvez tenha um fiozinho de sangue de anjo e de demônio ao mesmo tempo correndo em nossas veias. Isso pode abrir portais. ― As duas fizeram pequenos cortes na palma da mão e friccionaram na parede.
Uma cortina fina de organza transparente balançou suavemente, soprada pelo vento vindo de algum lugar. Ficamos olhando a parede inteira se transformar em véu balançando no ar.
As vozes invadiram a sala, já estavam chegando bem perto. No momento em que atravessamos a cortina, ela se transformou em uma parede de rocha bem às nossas costas, mas ainda dava para ouvir o que eles diziam. Não dei muita importância e já ia saindo do local quando senti meu braço sendo apertado com força. Olhei rapidamente para o lugar do aperto. Era minha beta me mantendo presa e com o dedo indicador na boca, pedindo silêncio enquanto girava a cabeça pedindo a todas para permanecerem quietas. Foi o que fizemos e só então ela soltou meu braço, onde dava para ver as marcas vermelhas dos dedos dela. Fiquei massageando e apurando a audição do que diziam do outro lado da parede.
― Meu garoto não ia mentir, não quando sabe que posso jogar sua alma podre no caldeirão, e ele falou que ela estava aqui com as lobas de Salem. Há tempos, venho observando a filha do chefe. De uns tempos para cá, quando abriram o livro, ela ficou diferente ― o ser da voz com mais sotaque estrangeiro falou.
― Eu sempre a achei meio esquisita. Para onde a aberração da minha sobrinha se enfiav*, ela estava junto. Era como se quisesse fugir cada vez que Aldra fugia, mas como ela foi gerada no inferno e é toda do nosso sangue, os portões não se abrem para ela e, cada vez que ela tenta sair, ele pede autorização ao chefe e, como ela não é louca, só sai quando é a trabalho ― o outro disse. Esse tinha uma voz tenebrosa.
― Irmão, mudando de assunto, você acha que a Aldra é mesmo filha daquela freira que virou anjo? ― Gilles nem respirava, ouvindo a conversa.
― Leviatã, meu irmão, em uma de suas andanças na terra, invadiu o convento e estuprou todas as freiras que ainda eram noviças. Uma delas ainda era criança, engravidou e morreu ao dar à luz justamente por não ter passagem. Dizem que a garota gritou de dor três dias com três noites, pedindo clemência e oferecendo sua vida em troca da vida do filho que ela carregava no ventre e que não tinha passagem para deixar ele nascer. Quando a jovem mãe morreu, Leviatã foi no convento e roubou a menina, justamente por ter escutado que a criança era um milagre e por ser de uma beleza nunca vista. Ele levou sua filha para o inferno, mas a criança morreu na hora que passou pelos portões e foi para onde a mãe estava, no céu. Não se sabe o motivo, quiseram o anjinho e devolveram para nós quando tinha sete anos e a mãe dela foi enclausurada.
― Vamos embora, já ouvimos o bastante. Agora estou começando a achar que a Nahemah estava falando a verdade. ― Esther nos puxou para começarmos a descer pelo local escuro.
― Eu acho que essa parte da história a aldrava não conhece, ela sempre me disse que sua mãe era um anjo, aquela que nós vimos na reserva, e que ela nasceu no céu e não num convento.
― O que não deixa de ser verdade, não é mesmo, Gilles? Se ela morreu ao entrar no inferno, ela é um anjo celestial que nasceu lá e foi criado no inferno. Acho que a única coisa que ela desconhece é que não é mais demônio, e sim um anjo. E penso que a Nahemah desconfia, por isso está nos ajudando. Ela quer pra ela o mesmo destino que a aldrava teve, isto é, morrer no inferno e nascer em outro local, sendo outra coisa.
Eu também pensava a mesma coisa. Talvez ela estivesse cansada de viver no lar dos horrores ou nunca se adaptou ao local. Tudo pode acontecer. Não somos obrigados a estar de acordo com o que nos foi dito ser nosso destino, tem seres que não aceitam e tudo fazem para mudar. Agora, se vai dar certo ou não, aí já é outra história.
Pelo tempo que estava descendo, eu calculei rapidamente que talvez já tivesse ultrapassado a base da montanha do lado de fora. Levou meia hora para subir e andamos rápido e agora já estávamos descendo há 45 minutos com a mesma distância entre os passos dados. Isso me dava a certeza de estarmos nas entranhas da terra. O ar já não era tão puro como no início nem tão sem cheiro; esse ar era pesado com odor de lama podre com toques suaves de corpos em decomposição. Se fôssemos humanas, com toda certeza já teríamos colocado as tripas para fora ou nem teríamos chegado aonde estávamos, com a pressão do ar. Em determinadas partes, as paredes afunilavam e nos obrigavam a caminhar em fila.
Ninguém falou mais nada. Cada uma escolheu seu par para andar junto. Na frente, vinha eu e minha beta, logo em seguida, Ameth e minha sogra Jana, por último, Gilles e Agatha. Onde uma falhasse, a outra se erguia mais feroz. A parede se abriu outra vez e a distância de uma para outra nos permitia andar todas juntas novamente. Um barulho estrondoso ecoou no ar e Ameth, que vinha bem atrás, perguntou:
― Mãe, consegue distinguir que barulho é esse.
― Espere, deixa fazer de novo...
Continuamos andando em silêncio quando ouvimos novamente, dessa vez mais alto.
― Parece com o som de espadas sendo forjadas.
― Mas, Esther, na academia eles ensinam que essas armas eram feitas em casa de ferreiro na Idade Média e que agora, na era moderna, são feitas no Japão por ferreiros que estudam cinco anos para entender as técnicas. Então como você explica isso? ― Apressei o passo para acompanhar minha beta, que já ia lá na frente.
― Seu tio Anael está certo quando ensina isso a vocês, mas desde que entramos neste resgate, nada mais faz sentido.
Ela tinha razão, o barulho das armas sendo feitas era música aos nossos ouvidos. A claridade veio junto e uma abertura surgiu à nossa frente. Se aquela era a porta de que Nahemah tinha falado, estava muito estranha, mas foi a única que encontramos durante todo o percurso. Passamos todas ao mesmo tempo pela grande abertura e o que vimos era muito parecido com o local onde entramos lá no começo da jornada. Tudo era muito semelhante à igrejinha lá no final da rua de chão batido: o mesmo descampado e, onde tinha paredes no chão, agora tinha duas casas feitas de palhas, barro e madeiras erguidas na encosta da montanha. Eu comecei a ter certeza de que estávamos realmente em uma dimensão paralela, dessas que os cientistas sabem que existe e por enquanto não conseguem comprovar.
Mais à frente, um senhor de idade avançada forjava as espadas enquanto cantava uma canção estranha.
O som dos nossos passos despertou a atenção do senhor, que parou as marteladas, enfiando o aço que ainda não era espada em uma tina de água de cor duvidosa. Tirou um pano do bolso e passou no rosto, onde o suor escorria livremente.
Fiquei admirada que um homem tão frágil pudesse martelar o gume da espada com tanta força quando ele dava a impressão de que ia desaparecer ao primeiro sopro.
O senhor nos examinou uma a uma e resolveu sorrir, com uma boca que faltava todos os dentes, repuxando ainda mais seu rosto muito enrugado.
― Qual de vocês é a Gilles?
Todas olharam para mim, sem entender o porquê de ele procurar a Gilles e não a mim, que era a alfa. Eu devolvi o olhar curioso para o senhor, em busca de detectar perigo. Como nada encontrei, dei mais um passo à frente.
― Depende de quem está perguntado e por que o interesse em saber. ― Andei mais à frente, deixando meu grupo muito atrás, e cruzei os braços. O senhor me olhou atentamente como à procura de algo e encontrando. Seu rosto não me deixava ler o que tinha achado, então cuspiu bem próximo a meus pés, como se eu não passasse de uma criança birrenta, e limpou a boca com a mão mesmo.
― Ali tem seis pedaços de aço para virarem espadas forjadas pelas mãos de cada uma. ― Aquele sorriso que eu presenciei antes desapareceu e parecia que a nossa presença ali lhe causava asco.
― Por ordem de quem temos que fazer tal serviço? Se explicar direitinho, talvez possamos nos entender. ― Esther tomou a frente e falava com a cabeça toda virada para o lado, examinando cada centímetro do velhinho, evitando entrar em sua mente. Este, por sua vez, agia da mesma forma. O erro dele foi tentar ler a mente dela e, como somos todas conectadas nessa singularidade, sentimos as mãos dele querendo romper nossos escudos enquanto falava:
― A ordem veio lá de cima, há muito tempo. Estou aqui só para cumprir ordens. Eu sou o ferreiro que vai ensinar as lobas a forjarem as armas.
Não acho que ele estava ali só para cumprir ordens. Se assim o fosse, não teria motivos para tentar ler nossas mentes. Esther devia ter pensado a mesma coisa, pois eu vi quando ela sorriu com aquele sorrisinho viperino que só ela tinha. Todas vimos, menos o velhinho, pois perguntou:
― Então, quem é a Gilles?
Era demasiado estranho o interesse que o senhor demostrava em querer saber sobre uma única loba, no meio de tantas. Seu interesse despertou em cada uma ali o gatilho para matar e perguntar depois, mas tinham coisas e respostas de que precisávamos e ele nada de mal poderia fazer no momento, não sozinho como parecia estar.
Mais uma vez, perguntou:
― Então qual de vocês é a Gilles?
Fim do capítulo
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