Capitulo 31
ELISA
Foi inevitável. A fome me levou a devorar dezenas de pedaços de pizza, de sabores variados. Ágata não estava brincando quando disse que havia exagerado. Ela também estava faminta e me acompanhou naquele delírio calórico. Enquanto nos empanturrávamos de tanto comer, vimos dois filmes. Entre eles, nosso filme preferido Casablanca. Emocionávamo-nos na cena final. Ágata sabia a maioria das falas decoradas, o que me levou a perguntar:
-- Quantas vezes você já viu esse filme?
-- Não sei. Perdi a conta. Vejo muitas vezes, todos os anos.
-- Sempre vejo no natal. -- Comentei -- Já virou uma tradição. Meus pais costumam me acompanhar.
-- Você acha que esse filme tem cara de natal? -- Perguntou Ágata, erguendo uma sobrancelha em sinal de dúvida.
-- Acho. Você não?
-- Não. -- Respondeu ela, sincera. -- Tenho uma opinião diferente sobre isso. O mágico de Oz sim tem cara de natal. Casablanca não.
-- Acho que entendo o que dizer -- Comentei, me acomodando no colo de Ágata.
Estávamos no sofá. Na TV, o DVD tinha retornado ao Menu Principal após o filme terminar.
-- O mágico de Oz é um desses filmes que são reprisados todos os anos no natal desde que foi lançado. -- Prossegui -- E isso já tem muito tempo. É um filme para todas as idades.
-- Para mim, o natal é meio depressivo. -- Disse Ágata -- E não acho que Casablanca tenha um final feliz. Por isso, evito vê-lo no natal.
-- Tem razão é meio triste, mas mesmo eles não tendo ficado juntos como manda o clichê, tem o lance do “sempre teremos Paris”. Há o consolo da lembrança de um grande amor. E essa lembrança ninguém pode roubar deles, nem mesmo o tempo.
-- Viu? Deprimente. -- Comentou Ágata, após a minha explanação apaixonada sobre o filme.
-- Mas é bonito, Ágata. -- Insisti.
-- Talvez, mas quem iria querer isso para si mesmo? -- Argumentou -- Digo, ser atormentada o resto da vida por um amor.
-- Mas, Ágata, veja bem: Rick percebe que tem que a deixar ir para que ela sobreviva a mais um dia. Você sabe, com todo aquele clima da Segunda Guerra. Ilsa parte no avião, mas talvez um dia eles possam se reencontrar.
-- Nunca vi por esse ângulo, para mim aquele era realmente o fim da linha para eles. -- Falou Ágata -- Acho que você é mais romântica que eu, Elisa.
-- Não há mal algum em ter esperança -- Disse eu, fitando os olhos escuros de Ágata. -- Há?
-- Não há, Elisa. É sempre bom ter esperanças -- Disse ela, sorrindo.
Nos demos conta do quanto estava tarde. O sono já havia chegado com a lembrança de que já era hora daquele dia acabar. Eu estava me sentindo tão bem nos braços dela que não queria que o momento terminasse.
***
Ajudei Ágata a retirar o lixo. Era preciso descer alguns lances de escadas até a lixeira do prédio. Ágata fez questão de me acompanhar pelos corredores escuros. Ela sabia o quanto eu tinha medo. Quando retornávamos a seu apartamento, ela parou na soleira de uma porta num andar abaixo do seu e perguntou:
-- Elisa, se não estiver muito cansada gostaria de lhe mostrar algo.
-- Tudo bem.
Ágata pegou uma chave no bolso e abriu a porta a sua frente. A escuridão lá dentro era total, mesmo assim ela entrou e logo uma luz acendeu-se. Segui-a para dentro do quarto. Era abafado e cheirava a mofo. Havia alguns móveis empilhados.
-- Estas são algumas coisas que pertenciam a meus pais. Meus tios venderam algumas, mas outras já estavam velhas demais. Então, guardamos nesse quarto. -- Explicou Ágata -- Mas não é isso que quero te mostrar.
Ágata segurou em minha mão e me conduziu até uma porta que estava meio escondida por detrás dos móveis.
Lá dentro havia algumas revistas empilhadas, e nas paredes recortes de jornais. Percebi que era uma espécie de santuário. Aproximei-me e li algumas manchetes, alguns eram artigos de opinião sobre assuntos diversos. Outras eram reportagens policiais sobre muitos casos famosos.
-- Lembra quando você me perguntou o que eu queria fazer no futuro? - Perguntou Ágata, séria.
-- Claro. Mas você foi muito evasiva.
-- Fiquei com vergonha de que você achasse meio bobo. Quero ser jornalista como meus pais foram. -- Disse ela, tímida -- Nasci com talento para matemática, raciocínio lógico, essas coisas. Quando percebem o que podemos fazer, nos estimulam a não desperdiçarmos nossos dons. Confesso que gosto muito de matemática, até porque é o que sei fazer melhor, mas não é isso o que quero fazer da minha vida, Elisa.
Sorri ao ouvi-la confessar seu sonho.
-- Não deveria ter ficado envergonhada para me contar isso, Ágata. Acho maravilhoso que você queira seguir o mesmo caminho de seus pais.
-- Obrigada, Elisa. Nunca tinha contado isso a ninguém. Você é a primeira pessoa.
Senti-me lisonjeada.
-- Você é cheia de surpresas, Ágata. -- Falei, corando ligeiramente. Depois voltei minha atenção novamente para os recortes de jornais -- Esses artigos são deles?
-- São sim. -- Confirmou Ágata, orgulhosa - Ambos escreviam sobre casos policiais, embora meu pai preferisse escrever artigos de opinião. Ele era muito bom com as palavras.
Ágata, então, falou sobre o trabalho dos pais mostrando toda a admiração que tinha por eles.
Um pouco depois, retornamos ao seu apartamento.
***
Trocamos de roupa para dormir, Ágata vestiu um short e uma camiseta com o famoso lema “FUCK THE FASHION” o que achei bem divertido.
-- Você vai dormir na cama comigo. -- Disse ela, constrangida. Depois completou: -- Não tem outro lugar. O sofá é desconfortável, então você não tem opção.
-- Nem se eu tivesse outra opção. -- Falei, divertida.
Ágata ficou vermelha.
-- Ágata, relaxa. Já dormimos na mesma cama, lembra?
-- Lembro. Só que dessa vez estou intimando você a fazer isso. Não quero que pareça que estou forçando algo...
-- Não acho que você esteja forçando nada, Ágata. De verdade.
Ágata assentiu.
Deitei ao seu lado na cama. Percebi Ágata inquieta sem conseguir relaxar:
-- Ágata, o que está preocupando você? -- Perguntei, com seriedade.
Senti seu peito subir e descer enquanto ela respirava fundo.
-- Elisa, uma vez lhe disse que tem muitas coisas sobre mim que você não sabe...
-- Ágata, esquece isso. -- Interrompi -- Andei refletindo e não importa o que você fez no passado contanto que goste de mim como eu gosto de você.
-- Entendo, Elisa, mas acho que você se engana. Importa sim. Faz parte de quem eu sou, não posso mudar isso.
-- Ágata, o passado não pode ser mudado, mas o futuro sim.
Ela ficou em silêncio, parecia presa em seus próprios pensamentos. Abraçada a ela, com a cabeça encostada em seu peito, quase adormeci. Quando ela chamou, ainda inquieta:
-- Elisa.
-- O que foi Ágata?
-- Preciso te contar uma coisa -- Disse ela, cautelosa -- Uma vez, bem, sabe, eu já dormi com um cara.
-- O que? - Perguntei, de repente ficando totalmente desperta. Mil coisas passando por minha cabeça.
-- Dormi com um cara, Elisa, mas isso foi há um tempo atrás.
Levei algum tempo para digerir a informação.
Vendo que eu não falava nada, Ágata então me contou sobre seu passado. Algumas coisas eram difíceis de acreditar. Ela havia passado por coisas que eu só podia imaginar de tão distantes que eram da minha realidade. Quando ela terminou de falar, ficamos em um silêncio constrangedor.
-- Então, Elisa -- Disse Ágata quebrando o silêncio -- Você ainda quer ficar comigo mesmo depois de ouvir tudo isso?
-- Sim, Ágata, principalmente depois de ouvir tudo isso. -- Falei, compreensiva - Obrigada por confiar em mim.
Aconcheguei-me em seus braços. Ágata me apertou forte, aliviada. Senti-a finalmente relaxar. Acho que havia tirado um grande peso de seus ombros.
Quando ela adormeceu, eu ainda estava acordada. Pensei em tudo o que ela havia passado. Ágata tinha muitos arrependimentos. Uma vida inteira de atribulações. Ela sempre se sentira sozinha em um mundo sem amor, fugindo das pessoas que se importavam, enquanto eu sempre vivera em um conto de fadas.
Eu não podia culpá-la por seus erros, embora ela mesma já se sentisse culpada o suficiente. Naquele dia me senti mais próxima dela. Ágata era sempre um mistério. Eu nunca sabia o que ela faria a seguir ou o que iria me mostrar. Não sabia o que acabaria descobrindo sobre ela, o que era um tormento às vezes. Outras vezes, no entanto, eu me conformava com o fato de que nunca se pode conhecer totalmente alguém, mas nem por isso deveria deixar de tentar.
Existia algo entre nós que não precisava ser dito ou explicado. Algo que havia nos guiado para aquele momento em que podíamos dormir abraçadas e esquecermos que tudo o mais existia e que o mundo lá fora era apenas uma vaga impressão.
Fim do capítulo
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