Capitulo 14
ÁGATA
Eu tinha esquecido o quanto era bom ter amigos. Acho que me fechei tempo demais para o mundo. Elisa era uma dessas pessoas que encontramos poucas vezes na vida e se tivermos muita sorte. Havia algo em Elisa que me fazia querer tê-la por perto, embora eu não soubesse explicar o que era. Semanas passaram após aquele dia no vestiário e nos víamos sempre. Ela fazia questão de me procurar assim que a aula começava. Vivia tão preocupada com horários e com os estudos e gostava de ter tudo muito certinho. Mas todo mundo tem suas manias e se você convivesse um pouco com Elisa conheceria todas as dela.
Passei a me envolver mais com o clube matemática. Elisa estava muito feliz com minha dedicação. Ela era realmente preocupada com aquele clube, acho que ia dormir pensando nele. Os treinos de vôlei estavam a mil. A treinadora nos estimulava a treinar duro e dá o nosso melhor. Só havia uma coisa que estava me incomodando: Gabriela, uma das meninas do time parecia particularmente interessada em me irritar. Não sei por que desde o início ela pegou no meu pé, soltava piadas quando eu passava por ela e me dava encontrões pelos corredores. Não entendi qual era a dela e decidi ignorá-la.
Minha amizade com Elisa não agradou algumas pessoas, principalmente a melhor amiga dela, Becca. Ela me olhava de viés e definitivamente não gostava de mim. Elisa me explicou que Becca estava com ciúmes de nossa amizade, o que era óbvio. Numa tentativa de me aproximar de sua amiga de infância, Elisa decidiu nos convidar para irmos ao cinema juntas.
Quando cheguei ao shopping, Elisa e sua amiga já haviam chegado. Respirei fundo antes de me aproximar da mesa em que elas estavam.
-- Me atrasei muito? -- Perguntei.
-- Não. O filme ainda vai começar. -- Respondeu Elisa, sorrindo -- Convenci Becca a vermos o Residente Evil.
-- O que eu não faço por você não é, Lisa? Só aceitei ver aquele filme horrível por sua causa. -- Disse Becca.
-- Vai ser ótimo, Becca -- Falou Elisa.
Depois disso, Becca mostrou interesse por mim e fez perguntas sobre minha vida. Confesso que não me senti confortável com isso já que eu mal a conhecia.
-- Então, mora com seus pais? -- Becca me perguntou.
-- Não, meus pais estão mortos.
Minha resposta foi sincera. Para elas, foi um choque. E um silêncio se seguiu, geralmente essa era a reação das pessoas, ficavam atônitas. Elisa parecia particularmente constrangida, acho que ela não esperava por isso, afinal falávamos pouco sobre assuntos pessoais. Pelo menos, eu evitava dá detalhes sobre meu passado a Elisa. Eu não me sentia confortável em falar sobre minha tristeza. Essa tristeza que eu carregava no peito e que sempre havia sido apenas minha.
Passado o choque inicial, fomos assistir ao filme e, após isso, jantamos em um restaurante. O clima ainda estava um pouco tenso após minha chocante declaração. Para descontrair, Elisa conversava comigo sobre o filme.
-- Gostei muito mais dessa continuação -- Disse Elisa -- Embora o primeiro filme seja mais emblemático. Você sabe, a emoção de ver os personagens do game ganhar vida.
-- A ação de Apocalipse está maravilhosa -- Comentei, animada, poucos assuntos me animavam tanto quanto cinema -- E você viu a Jill Valentine? Ficou igualzinha...
-- Mal posso esperar pelo terceiro filme. -- Falou Elisa, com entusiasmo.
-- Vão fazer o três? -- Perguntou Becca, que até então estivera calada nos olhando entediada.
Elisa e eu olhamos uma para outra, cúmplices e desistimos de fazer Becca gostar do filme.
Em determinado momento, Elisa me deixou sozinha com Becca, e nada poderia ter sido mais revelador.
-- Então, Ágata. -- Começou ela -- Serei bem clara com você. Não gosto nada dessa sua aproximação com Elisa. Ela não é do seu nível. Não se aproveite da ingenuidade dela. Elisa tem um bom coração e não sabe se proteger dos perigos do mundo.
Becca me olhava com raiva. O que eu poderia ter feito aquela garota para ela me olhar assim?
-- Ainda bem que ela tem você para protegê-la. -- Respondi, sem me abalar -- Mas eu não sou uma ameaça.
-- É o que você diz. -- Respondeu ela me fulminando com seu olhar.
Nesse momento, Elisa apareceu e a fisionomia de Becca se modificou totalmente. Fui para casa naquele dia pensando nas palavras de Becca, já havia notado seu ciúme excessivo em relação à Elisa. Decide que não diria nada sobre isso para ela, eu não pretendia me envolver na relação das duas. Elisa amava demais Becca, como a uma irmã. Apesar de tentar entender as motivações de Becca, não pude deixar de sentir um aperto no peito pelo que ela havia dito. Ela queria me ferir dizendo para ficar longe porque eu não estava no mesmo nível de Elisa.
Troquei de roupa e me deitei na cama. Talvez Becca tivesse razão, o que uma garota como eu poderia querer me aproximando da garota mais linda e maravilhosa do colégio? Eu não tinha nada. Era apenas uma órfã da qual as pessoas tinham pena. Olhei para o quarto vazio e úmido, minha vida era como aquele quarto. Em uma gaveta de minha escrivaninha, eu guardava um porta-retratos antigo com a foto de minha família, mas eu não ousava olhar. Doía demais. A saudade não cabia no peito, mas eu não me atrevia a chorar por eles. Porque isso seria reconhecer que estavam mortos, mas ali naquele lugar em que viveram, naquele quarto em que dormiram, eles continuavam vivos. De algum modo, continuavam vivos.
***
Eu não esperava que Elisa esquecesse fácil o que eu disse sobre meus pais. Tanto que na manhã seguinte, ela perguntou:
-- Ágata, queria falar com você sobre ontem. Sobre o que disse de seus pais.
Era chegada a hora da verdade. Por um momento, tive raiva dela. Eu não queria que Elisa tivesse pena de mim como todos os outros. Não ela que sempre me tratava como igual.
-- Não há nada mais para ser dito, Elisa. Eles estão mortos. -- Falei sem encará-la.
Eu queria que ela me deixasse em paz, mas aquela garota de olhar firme insistiu:
-- Como aconteceu?
-- Isso realmente importa? -- Perguntei, sentindo ódio correndo em minhas veias.
-- Desculpe, sei que isso não é da minha conta, você também não havia mencionado nada disso antes, eu senti... -- Disse Elisa, confusa.
-- Pena? -- Perguntei sem me importar mais com nada.
Ela recuou, surpresa, depois disse baixinho:
-- Não foi isso que eu quis dizer...
Expliquei-lhe que não queria que tivesse pena de mim. Disse coisas que depois me arrependi, e deixei Elisa sozinha. Acho que fui dura demais com ela. Que culpa Elisa tinha por eu estar cheia das pessoas me tratarem como um animalzinho ferido? Acho que no fundo eu queria que ela entendesse de uma vez como minha vida era uma droga, que o melhor que ela fazia era se afastar de mim e viver sua vida de conto de fadas. Mas a verdade era que eu não queria me afastar de Elisa, não queria que ela me visse como algo que precisava ser consertado. Eu só queria que uma vez na vida alguém me aceitasse do jeito que eu sou.
Eu estava envergonhada e evitei ver Elisa durante o resto do dia. Faltei a próxima aula e fui para casa ficar sozinha com meus pensamentos. No dia seguinte, nos encontramos no treino de vôlei e nos desculpamos.
Quando ela sorriu para mim, tudo ficou bem novamente. Aquela garota me despertava sensações que nunca antes havia experimentado e comecei a observar que meu corpo reagia de forma estranha em sua presença. Às vezes, eu chegava em casa, me deitava na cama, fechava os olhos e era só pensar em Elisa, em seu sorriso, sua voz e aquela sensação boa retornava. A garota conseguia mexer comigo, de um jeito que eu nunca pensei que poderia ser possível. Será que eu estaria ficando louca? Já havia passado por muita coisa na vida, mas aquilo era totalmente novo.
Fim do capítulo
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