Capitulo 3
ELISA
As semanas passaram voando. Pelo menos foi o que pensei quando setembro chegou. Os estudos estavam a mil e eu corria para colocar tudo em dia. Os trabalhos do clube de matemática estavam dando resultado, tivemos duas eliminatórias com colégios locais as quais vencemos com grande vantagem. Estava muito feliz por ter Ágata no grupo. Conversávamos bastante, principalmente sobre matemática, vôlei e filmes antigos. Quem não estava gostando nada dessa nova amizade era Becca.
Um dia, havia acabado de deixar o clube de matemática quando Becca irrompeu na minha frente. Nem mesmo vi de onde ela havia surgido.
-- Becca!
-- Lisa, não aguento mais essa situação! -- Disse Becca, dramática.
-- Que situação? -- Espantei-me.
-- Você e aquela garota.
-- Não entendo Becca, que garota? O que houve?
-- O que houve? E ainda tem a coragem de perguntar o que houve? -- Disse Becca, com indignação -- Ora, o que houve? Sou sua melhor amiga, lembra? Você só quer saber agora de andar para todo lado com aquela esquisita.
Não pude evitar, ri alto.
- Então é isso? Não seja boba, Becca. Você é minha melhor amiga, sempre vai ser.
Becca desarmou-se. Abraçou-me, emocionada. Mas logo interrompeu o abraço, pois Ágata, a própria apareceu como que num passe de mágica, ela tinha esse dom. Mas estava só de passagem e nos cumprimentou, mas foi o bastante para Becca ficar de cara emburrada novamente.
-- Ah, para com isso, Becca. A Ágata é legal e para de dizer que ela é esquisita. Você poderia tentar ser gentil com ela.
-- Tudo bem, prometo que vou tentar. Mas que ela é esquisita, isso ela é.
-- Becca! -- Repreendi.
-- Ok, ok. Não tá mais aqui quem falou.
.
***
Comecei a pensar que estivesse mesmo me afastando um pouco de Becca e entendi os seus ciúmes. Talvez fosse apenas inocência minha, mas planejei unir Becca e Ágata. Na semana seguinte tentei colocar em prática meus planos de realizar esse feito. No intervalo, encontrei Ágata na lanchonete, sozinha, o que não era novidade nenhuma, ela sempre estava sozinha com seus fones de ouvido.
-- Olá, Ágata. Posso me sentar aqui? -- Pedi.
-- Claro que sim -- Respondeu Ágata -- Está tudo bem?
-- Sim, está. -- Confirmei -- Escuta, o que você vai fazer na sexta à noite?
-- Não tenho planos para sexta.
-- Bem, eu e a Becca vamos ao cinema. Você não quer vir conosco?
-- Seria ótimo -- Aceitou Ágata -- Qual filme vocês pretendem ver?
-- Ainda não decidimos. Na verdade, eu quero ver o novo Residente Evil, mas a Becca não quer, pois diz que tem muito sangue... então...
Ágata riu.
-- Eu também gostaria de ver esse. Mas não estarei atrapalhando a noite de vocês?
-- De jeito nenhum -- Respondi -- Será até uma oportunidade para vocês duas se conhecerem melhor.
-- Elisa, não me leva a mal, mas acho que a sua amiga não vai muito com a minha cara.
-- Isso pode mudar se ela conhecê-la melhor. A Becca é meio mimada, quer tudo só para ela, inclusive minha amizade. Mas é uma pessoa ótima, somos amigas desde sempre.
-- Tudo bem.
Combinamos de nos encontrar no shopping às vinte horas. Quando Ágata chegou, eu e Becca já a esperávamos tomando um milk-shake na praça de alimentação. Quando a avistei, acenei efusivamente para ela. Ágata trajava uma calça jeans simples com uma blusa de mangas. Eu também optei por um estilo casual, Becca, no entanto, parecia vestida para matar. Percebi, então que aquilo era um engano terrível, conhecia bem minha amiga para saber que fizera de propósito para tentar intimidar Ágata.
-- Menos, Elisa -- Repreendeu Becca -- Assim você está chamando muita atenção para nós.
-- Deixa disso, Becca. Ela vem aí. Seja simpática.
-- Me atrasei muito? - Perguntou Ágata, tímida.
-- Não. O filme ainda vai começar. Convenci Becca a vermos o Residente Evil.
-- O que eu não faço por você não é, Lisa? Só aceitei ver aquele filme horrível por sua causa -- Resmungou Becca.
-- Vai ser ótimo, Becca -- Disse para acalmá-la.
Becca então cumprimentou Ágata de um jeito exagerado e passou a monopolizar a atenção dela na conversa. Era uma atitude muito estranha vinda logo de Becca.
-- Então Ágata, onde você se escondia antes de vir para nosso colégio? -- Perguntou Becca à Ágata.
-- Andei por muitos lugares -- Respondeu Ágata, misteriosa.
-- E por que veio logo para cá? -- Insistiu Becca.
-- Bem, já morei aqui antes, minha família é da cidade.
-- Então, mora com seus pais? -- Disse Becca, continuando seu interrogatório.
-- Não, meus pais estão mortos.
Fiquei totalmente em choque com a declaração de Ágata, não sabia sobre seus pais, na verdade eu nem mesmo tinha perguntado sobre a família dela antes. Becca pareceu um pouco abalada, assim como eu, ela não esperava por isso.
-- Sinto muito -- Disse Becca, compreensiva.
-- Desculpe, Ágata. Não fazia ideia.
-- Não se preocupem -- Disse Ágata -- Está tudo bem.
Ficamos caladas um instante, sem saber o que dizer. Foi Becca quem quebrou o silêncio:
-- Bem, acho melhor irmos logo. O filme vai começar daqui a pouco.
Após a sessão, saímos para comer em um restaurante. Comentamos sobre o filme, Becca não gostou nada das cenas de ação que achava um exagero. Já eu e Ágata adoramos. Concordamos que Milla Jovovich estava mais uma vez maravilhosa como Alice. Em determinado momento, pedi licença para ir ao banheiro. Quando retornei tive a impressão que Becca conversava com Ágata sobre algo.
-- Falavam sobre o que? -- Perguntei curiosa.
-- Tava dizendo para Ágata que deveríamos fazer mais programas juntas -- Disse Becca.
-- Isso é ótimo -- Falei, embora não tenha acreditado nem um pouco no que Becca disse.
Ágata foi para casa em sua moto. Voltei com Becca no carro que ela acabara de ganhar de presente de seu pai pelos seus dezoito anos. De todas as cores para um carro, rosa definitivamente não seria aquela que eu escolheria.
-- Deve ser muito triste não ter pais -- Comentou Becca.
-- Acho que isso explica o fato de ela ser tão solitária...
-- Desculpe, Lisa. Julguei-a mal desde o começo sem a conhecer. É sempre você com esse grande coração que consegue enxergar além...
Fiquei emocionada. Toquei de leve o braço de Becca enquanto ela dirigia.
-- Obrigada.
Naquela noite, não consegui parar de pensar em Ágata e no que teria acontecido com seus pais.
Coloquei em minha cabeça que precisava me aproximar mais de Ágata, após aquele dia no cinema me dei conta de que não sabia quase nada sobre ela. Nossas conversas eram interessantes, sua companhia era agradável, gostávamos das mesmas coisas... mas não éramos próximas. Afinal, quem era aquela garota que me intrigava cada vez mais?
São de silêncios que as verdades são feitas. E eu precisava descobrir que verdade se escondia atrás de seu silêncio.
***
Aquela noite foi tão inquietante para mim que logo na manhã seguinte, pedi para Ágata ficar mais um pouco após a reunião do clube de matemática. Quando os outros saíram, ficamos a sós.
-- Ágata, queria falar com você sobre ontem. -- Disse eu, sem rodeios -- Sobre o que disse de seus pais.
Ágata me olhou com aqueles olhos profundos, depois os baixou e fitou o vazio. Esperei, em silêncio, enquanto ela estava distante. Depois, pareceu voltar a si, mas não me encarou tampouco.
-- Não há nada mais para ser dito, Elisa. Eles estão mortos.
Engoli em seco. Pensei o quanto devia ser difícil para ela falar sobre isso. Mesmo sabendo que aquilo era um erro, perguntei:
-- Como aconteceu?
Ágata suspirou fundo, e disse:
-- Isso realmente importa? -- Perguntou, voltando a me olhar, e dessa vez não pude decifrar que emoções haveriam por trás de sua expressão.
-- Desculpe, sei que isso não é da minha conta, você também não havia mencionado nada disso antes, eu senti...
-- Pena? -- Interrompeu ela, bruscamente.
Por um momento, fiquei sem palavras, depois disse:
-- Não foi isso que eu quis dizer...
-- Ouça, Elisa. Não falei que era órfã antes, porque não queria mais ninguém sentindo pena de mim. Não importa aonde eu vá, as pessoas sempre acabam sabendo da tragédia pela qual passei. Meus pais morreram? Sim! E daí? Quer saber o que realmente aconteceu, Elisa? Para me dizer o quanto sente muito pela minha família, para balançar a cabeça e lamentar: “Oh, que tragédia!” E, então, voltar para sua vidinha e pensar o quanto está feliz porque isso não aconteceu com você? Quer saber todos os fatos mórbidos, porque não faz uma pesquise como todos fazem, quem sabe você não acaba sabendo.
Quando acabou de falar, Ágata virou as costas e saiu rapidamente, me deixando ali sem saber o que dizer ou o que fazer. Quando vi, as lágrimas já estavam escorrendo pelo meu rosto. Senti-me inútil, não sabia nada sobre a vida. Suas palavras foram o bastante para me mostrar isso. Fiquei ali mais um pouco, chorando, então me lembrei do que Ágata disse sobre pesquisa. Eu já estava envolvida demais e não conseguia deixar de querer saber. Eu precisava saber. Assim, tirei meu notebook da mochila e o liguei. Imediatamente pesquisei a palavra-chave “Ágata Hoffmann”.
Eu nunca poderia imaginar a tragédia daquela garota estranha que um dia entrou pela porta de minha sala de aula. A notícia era de quase sete anos atrás, a jovem Ágata Hoffmann, então com onze anos foi a única sobrevivente de um acidente de trânsito fatal. Seu pai, sua mãe e o filho deles de dezoito anos estavam com ela no carro. Chovia e numa curva perigosa na estrada, o carro em que sua família estava colidiu de frente com um caminhão. O motorista do caminhão também não havia resistido e morreu no local. Era um milagre a garota ter sobrevivido, todos diziam. Ela havia ficado internada alguns dias no hospital. Encontrei uma reportagem que falava sobre uma disputa pela guarda de Ágata, em que alguns parentes reivindicavam para ficar com a garota. Reconheci em uma foto uma Ágata mais jovem, ainda mais magra e com seus longos cabelos pretos. A jovem era conduzida por alguém enquanto alguns repórteres a cercavam. Ela estava visivelmente assustada com aquelas pessoas à sua volta.
Li tudo o que encontrei sobre o fato até perder a noção do tempo. Procurei Ágata durante o resto do dia, mas não a encontrei, só fui vê-la novamente no dia seguinte no treino de vôlei. Durante o aquecimento, aproximei-me dela e falei:
-- Quero pedir desculpas sobre o que aconteceu ontem, eu não tinha o direito.
-- Acho que eu que tenho que pedir desculpas por ter saído daquele jeito -- Disse ela, tímida.
Fiquei comovida.
-- Você é mesmo uma pessoa incrível -- Falei, emocionada.
Percebi ela corar levemente, mas fiquei em dúvida se seria devido ao exercício físico.
-- Então, está tudo bem? – Perguntei, hesitante.
-- Claro que sim. Quer apostar uma corrida em volta da quadra?
Aceitei o desafio e nos divertimos bastante competindo, correríamos a manhã inteira se a treinadora não nos chamasse. Não voltei a mencionar nada sobre o acidente com a família de Ágata, talvez um dia ela estive preparada para falar sobre o que houve. Eu a havia colocado contra a parede somente para saciar minha curiosidade, mas começava a me importar com ela como uma amiga de verdade.
***
Após o treino presenciei algo muito estranho. Depois de tomar banho e trocar de roupa, procurei Ágata para convidá-la para irmos almoçar. Eu estava demasiadamente feliz por ela não está chateada comigo. Já havia desistido de procurá-la quando a avistei perto das arquibancadas do ginásio esportivo, Ágata estava de costas para mim e conversava com Gabriela, acabei sem querer ouvindo a conversa:
-- Por que é tão difícil para você me deixar em paz? -- Dizia Ágata, irritada.
-- Você é que se faz de difícil, garota -- Disse Gabriela aproximando-se dela, com malícia -- Mas eu gosto disso.
-- Eu já disse que não estou interessada -- Sentenciou Ágata.
-- Nós podemos mudar isso num instante...
Observei quando a morena alta tentou puxar Ágata para beijá-la, mas ela a rejeitou, afastando-a com firmeza. Fiquei constrangida com aquela cena, ficaria mais ainda se elas me notassem ali, portanto, sai de fininho antes que pudesse chamar atenção para mim.
Eu sabia, assim como todo mundo do colégio, que Gabriela namorava meninas, por isso não me surpreendi por vê-la dá em cima de Ágata. Durante os treinos era perceptível o interesse com que Gabi olhava Ágata, a morena não tirava os olhos dela e sempre que possível soltava alguma gracinha que deixava minha amiga constrangida.
Não posso negar que aquela cena mexeu comigo, fiquei imaginando o que devia acontecer entre duas garotas que se sentem atraídas uma pela outra. Mas afastei esses pensamentos antes que a curiosidade tomasse conta de mim. Não esperei Ágata para convidá-la para almoçar, em vez disso liguei para Becca que ficou feliz por, segundo suas palavras, eu finalmente dá atenção a ela.
Desde que Becca soubera sobre os pais de Ágata, sua atitude em relação a ela mudara totalmente. Não fazia mais fofocas, não desdenhava do modo que ela se vestia e já não ficava tão chateada comigo por andar com ela. Segundo Becca, eu estava fazendo uma espécie de “caridade”.
-- Essa garota precisa de você, Elisa -- Dizia ela -- Ela não tem amigos.
-- Não exagera, Becca. A Ágata é apenas reservada.
-- Mesmo assim, faz bem você ser amiga dela.
Era estranho ver Becca defendendo Ágata. Logo ela que no começo não aceitava nossa proximidade.
-- Becca, eu não quero ser amiga da Ágata porque sinto pena ou por caridade. Isso é muito triste. Quero me aproximar dela, pois temos coisas em comum.
-- Tudo bem, Elisa, eu concordo com você. De todo modo, essa amizade pode fazer bem a ela e também a você. Pensando bem, quem tem mais a perder nessa amizade de vocês, sou eu. -- Refletiu Becca.
-- Para com isso, Becca. Você é minha irmã de coração, sabe disso.
-- Eu sei, só falta o tio Roger e a tia Marta me adotarem oficialmente.
Não mencionei nada sobre a cena entre Ágata e Gabriela para Becca. Aquela cena não me pertencia, eu a havia roubado de alguém, eu era um simples expectador lynchiano. Tenho certeza que Ágata não gostaria de alguém a bisbilhotando. Decidi fingir que não tinha visto nada, mas isso era difícil. Eu não conseguia parar de pensar. E, se o que Becca tivesse dito fosse verdade e Ágata gostasse mesmo de garotas. E, se Ágata se rendesse as investidas de Gabriela. Será que isso me atingiria de alguma forma? Isso mudaria alguma coisa. E, se...
Fim do capítulo
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