16. O bater das asas de uma borboleta
— Laura?
A voz chamava por ela de fundo. Seus olhos se abriram lentamente, deparando-se com Ana Clara segurando sua mão. Coralina, por outro lado, aproximava álcool do seu nariz na tentativa de reanima-la.
Ela ainda se sentia brevemente tonta, mas piscou algumas vezes até levantar o corpo, apoiando-se na cabeceira da cama. Todas as olhavam aliviada, menos Júlia que mantinha o olhar sisudo de sempre, sentada na cadeira, com o encosto na frente e os braços apoiados nele, analisando-a.
— Você tá bem? – Ana Clara voltava a falar com ela, mas não obteve resposta porque logo que recobrou a consciência por inteiro, veio em sua cabeça o que tinham acabado de discutir.
Que elas vinham do futuro, e que estavam avisando a ela que ela iria morrer e, pra piorar, que teria uma família com alguém que ainda nem conhece pessoalmente.
Sentiu o enjoo novamente, mas bem menos pior do que a primeira vez. Encarou-as mais uma vez antes de suspirar fundo e se voltar para Júlia.
— Isso é bizarro demais... – ela esfregou os dedos contra as têmporas – não estou exatamente duvidando do que estão me falando, mas é... Surreal demais pra acreditar assim.
— Então quer dizer que você acredita nisso? – Ana Clara ponderou, e ela deu com os ombros antes de tocar o rosto dela com a ponta dos dedos.
— Não sei, mas é porquê... – Laura voltou o olhar na direção dos olhos de Ana Clara – até você?
— Eu nasci em dois mil e quatro – ela respondeu pressionando os olhos e mostrando na identidade, assim como foi feito com Coralina. Laura arregalou brevemente os olhos, e exasperou, deixando o ar sair entre os lábios.
— O que mais elas precisam fazer pra você acreditar nisso?
— Trazer o corpo dela cravado de bala, eu acho – Júlia disse de forma ríspida, e Coralina advertiu.
— Não fale isso.
— Eu é que não acredito que o destino de um monte de gente tá na mão de uma indecisa dessa...
— Do que ela está falando? – Laura cerrou os olhos, balançando a cabeça.
— É que ela acha... – Coralina continuou.
— Eu tenho certeza – Júlia disse por cima, mas logo foi interrompida por Coralina, que retomou a palavra.
— Ela acha que a solução pra esse problema é alguma coisa relacionada a você, Laura.
— Como é que você soube dessas coisas de mim? – Laura balançava o encarte com as mãos, mas Júlia se prestou a revirar os olhos.
— Isso aqui tudo aconteceu mesmo, Laura – ela disse desanimada – eu juro que preferia que fosse mentira, mas não é.
— Então...vocês não são irmãs?
— Não – Júlia disse de antemão – só nos unimos pelo propósito de voltar pra casa.
— E como foi pra isso acontecer? Se tiver alguma...
— Olha, dona Akemi – Júlia se levantou da cadeira – você vai nos ajudar ou não?
— Para de me chamar assim – ela respondia irada.
— Tá bom, então vou te chamar de defunta – dizia Júlia entre os dentes – acho que cabe melhor.
— Ju, não – Coralina segurava seus ombros – isso não vai dar em nada.
— Eu acho que é por isso que ela e a Ana Clara se deram bem – ela deu com as mãos no ar – não sei quem é mais egoísta das duas.
— Eu não estou falando nada, Júlia – Ana Clara se voltou para ela – o que eu tenho a ver com isso?
— É que essa filhinha de papai não faz ideia da metade das merd*s que eu passei pra estar até aqui e sou obrigada a ter que adular ela pra acreditar em mim? – Júlia se mexia frívola – Acha mesmo que ia inventar isso pra ela? Pra quê? Impressionar?
— Você me vem falar que vem do futuro e quer que eu acredite assim? – Laura dizia no mesmo tom – E ainda coloca a Ana Clara nessa história? A Cora eu até imagino porque ela é assim, mas a Ana?
— Mas ela não está mentindo, Laura – Ana Clara dizia com um desgosto ainda maior em sua voz – porque você realmente existiu, dona Akemi.
— O que você quer dizer com isso?
Ana Clara não queria chegar naquela conversa, mas se não intervisse, aquela conversa acabaria com ânimos exaltados e possivelmente com Laura perdendo uma briga com Júlia. Pegou o telefone e mexeu nele por algum tempo, até achar uma foto antiga de sua galeria.
— Seu...filho era amigo do meu irmão – e mostrou uma foto antiga deles. Quando Laura segurou o aparelho frio contra as mãos, sentiu um arrepio ainda pior na espinha – muito amigo, por sinal.
Aquele garoto estranhamente parecia com ela, mas ao mesmo tempo não parecia. Já o que estava do lado dele, abraçando pelo ombro, era idêntico a Ana Clara. Os olhos, a cor do cabelo, com a diferença que era mais alto e forte, mas ainda mais o sorriso.
Foi quando Laura percebeu que aquilo era bem articulado demais para parecer só invenção, ainda mais quando ela mostrou a data no canto da foto.
— Fi...filho? – aquela palavra era até difícil de pronunciar.
— Sim – Júlia voltou a falar – seu filho era alvo principal do único atirador que sobreviveu. Não só matou ele – e cerrou os olhos, pensando nas palavras – como o alvejou com quinze tiros. Inclusive, vocês eram bem próximos.
— Não...não sei do que estão falando.
— É claro que não – Júlia dizia impaciente – Ele não é nem projeto de gente. Nem ele, nem eu e nem a Ana Clara.
— Júlia, dá pra baixar a bola um instante? – Coralina se voltou pra ela, que revirou os olhos, dando as costas para elas.
— Digamos que eu aceite tudo isso que estejam falando, Júlia - Coralina se aproximou dela com água, que logo aceitou em um gole – o que eu tenho a ver com tudo isso? Não vou ser só mais uma desse bando de gente que vocês dizem que vão morrer?
— Eu tenho uma teoria.
Júlia proferiu essas palavras com mais calma, olhando para a janela que dava pro lado de fora da casa, enquanto as três voltavam a atenção para ela.
— E qual seria? – Laura voltou a perguntar.
— Você vai ter que se assumir pra sua família.
Aquelas palavras atingiram Laura como um soco, assim como as outras que tinham sido ditas ali. Voltou-se para Coralina, mas ela parecia apática diante o que fora dito. Será que ela já sabia dela e de Ana Clara e não tinha dito nada? Não se importava com isso?
— Eu... o quê?
Ouvir Júlia falar aquilo com tanta naturalidade era mais surreal do que a ouvir dizendo que vinha de um lugar bem longe dali.
— Se assumir pra sua família – ela se virou para elas, dando com os ombros – que você gosta de garotas, tipo essa daí.
E apontou para Ana Clara, que abaixou o olhar envergonhada. Porém, não mais do que a própria Laura.
— Eu...é... – ela apertou com firmeza as mãos de Ana Clara, procurando por conforto de algum jeito, no qual ela respondeu se aproximando dela, ao seu lado. Laura, ao ver o corpo que tanto desejava perto do seu, não conseguiu conter a vontade de se manter próxima e encostou a cabeça em seu ombro, sem dizer mais nada.
— O que você quer dizer com me assumir?
Júlia, em um passo ousado, apagou tudo o que tinha no quadro com as mãos em movimentos rápidos, aflitos. Pegou o giz e rabiscou o nome do alvo em letras garrafais.
— É segredo pra alguém daqui do seu caso com a Ana Clara?
Laura desviou o olhar para todas ali, e a negação foi uníssona, fazendo com que suas bochechas se ruborizarem.
— Então, se você falar pra sua família que na verdade gosta de garotas... – Júlia voltou a rabiscar o quadro – não vai precisar se casar com esse cara, e logo não vai ter seu filho, entende?
Laura piscou algumas vezes, tentando compreender o que era dito enquanto esfregava as unhas devagar contra a pele de Ana Clara, que olhava a tudo com atenção.
— O que a Júlia tá querendo dizer – Coralina interveio – é que ela acha que o fator x é exatamente esse rapaz.
— É como um efeito dominó – ela continuou rabiscando o quadro – que termina com um monte de gente morrendo com algo que poderia ser evitado no futuro.
— Vocês estão querendo me dizer que eu vou dar à luz a alguma besta fera que vai desencadear essa desgraça lá pra frente? – perguntou Laura levantando uma das sobrancelhas, e Júlia e Coralina se entreolharam, concordando.
— É, seria tipo isso – disse Ana Clara concordando com um aceno.
— O que te faz ter tanta certeza disso? – ela continuava a indagar Júlia, mas ela se prestou a dar com os ombros.
— Só dá pra sabermos tentando.
— Laura, se tem uma pessoa que sabe disso, é a Júlia – Coralina respondia balançando a cabeça – e... Se ela está dizendo, tem um bom motivo.
— E você, Ana Clara? – Laura se voltou para a garota que se prestava a ficar taciturna vendo o desenrolar da conversa – O que acha disso?
— Eu queria dizer que ela não tem razão... – Ana Clara fechou os olhos, suspirando – mas faz sentido,e a Cora tem razão.
— Mas e como eu fico? E vocês? – ela apertou com firmeza as mãos de Ana Clara. Sabia bem o que aquilo queria dizer.
— Sobre nós eu não sei te dizer, mas... – Júlia cruzou os braços, exasperando – com você vai ficar melhor do que o futuro te espera, te dou certeza.
— Você fala isso porque não conhece meus pais – Laura se levantou – e nem sabe como eles reagiriam se...Pra vocês – e apontou para as demais que não eram dali – deve ser mais fácil, com certeza.
— Não estou falando que é fácil – Júlia voltou a pontuar – mas estou falando que é preciso. Todas nós teremos que nos sacrificar se quisermos que as coisas sejam melhores do que lá na frente.
— E o que você entende de sacrifícios?
— Mais do que você pode imaginar – ela cerrou os olhos de forma ameaçadora, e Coralina tentou intervir entre as duas, mas Ana Clara tocou em seu braço, fazendo menção com que deixasse as coisas como estavam.
— Se você fizer o que estou te falando – Júlia voltou a riscar o quadro – é a chance de evitarmos esse show de horrores que nos espera, assim como pra outras pessoas. É o seu, o meu, e o nosso sacrifício – e apontou para si – em prol de tantas outras pessoas, tem noção do quão grande isso é?
— Não – Laura arqueou as sobrancelhas – não faço ideia.
— Pois deveria começar a ter – e apontou com o giz para ela – porque você é a resposta que a gente tanto procurou, e o nosso destino...
Júlia soltou o giz, e respirou fundo antes de levar as mãos até Laura e segurar as suas com firmeza, chamando prontamente sua atenção pelo toque inesperado.
— Está em suas mãos.
Laura sentiu seus olhos marejarem quando se deparou com o olhar sério e soturno de Júlia, pouco amigável em sua maioria, se dissipar e dar origem a olhos assustados, gentis e esperançosos.
Ela realmente acreditava que aquela garota interiorana de vida pacata era a solução para o problema delas. Coralina confiava naquela estranha e em suas palavras como ninguém, e Ana Clara, bem... Ana Clara parecia não querer intervir, mas concordava ainda assim.
Como falaria aquilo para seus familiares? Nunca passou em sua cabeça fazer isso, muito menos agora tão abruptamente. Sua mãe a odiaria, seu pai a desprezaria, não teria apoio do irmão e com certeza evitariam que vissem as irmãs com medo de uma má influência, mas...
Uma vida casada e com um filho que nunca imaginou ter também não a agradava. Na verdade, a desagradava a ponto de causar repulsa, porém foi a vida que ela escolheu. Preferiu o silêncio do que se impor, e teve o estranho benefício de ver o seu futuro, o que não a agradou nenhum pouco.
Seu filho seria alguém tão detestável a ponto de ser alvo de um psicopata sádico? E que, pra piorar, era próximo dela? Será que ela trataria o filho tão mal a ponto dele se tornar isso? Ou seu marido seria alguém péssimo que destrataria a todos e ela viveria infeliz assim como seu filho?
Ela realmente queria isso para outra pessoa? Com ela poderia até lidar com isso, engolir calada como em tantas outras vezes, mas nunca cogitou a ideia de que isso afetaria a vida dos outros dessa forma.
Júlia expôs tudo o que aconteceria. Aquilo já tinha acontecido para elas, e estava tentando a todo custo fazer diferente. Não teria uma mentira tão convincente como a delas, caso fosse. Nem teria motivos de ser uma brincadeira de mal gosto, por mais que ela desejasse que fosse e todas acabassem rindo, incluindo Júlia mesmo com sua cara sempre fechada.
Era uma história difícil de digerir, mas era verdade. Dolorosa, cortante e febril, mas ainda assim derradeira, exposta em seu cerne como se a vida dependesse disso, e para elas, principalmente para ela que defendia com tanto fulgor, era.
Se estavam ali, tinham um motivo. Talvez até ter se apaixonado por Ana Clara fosse um fato fortuito destinado a acontecer naquele contexto.
Nunca tinha conhecido alguém como ela porque ela simplesmente não era dali. Era de um lugar muito distante, à frente, e nesse lugar ela tinha morrido, assim como tantas outras pessoas...
E pelo que percebeu, viveu a vida reclusa em algo que nunca viveu. Ela realmente queria isso? Valia mesmo a pena fazer isso para algo que sequer tinha certeza? E se estavam mentindo?
Mas, quando é que não estava mentindo pra si mesmo desde então?
Uma filha perfeita e ideal, uma irmã exemplo, uma amiga presente... Uma amante que encarava as garotas com outros olhos, mesmo dizendo que não. Queria mesmo se privar a vida inteira disso?
Não quando se experimentou os prazeres de ser si mesmo nos braços daquela estranha tão conhecida, na sua risada ensolarada, nos seus olhos penetrantes, nos seus lábios convidativos...
É difícil fingir quando se experimenta o amor assim.
Voltou-se a olhar para Ana Clara, e seus olhos brilhavam como se dissessem que estava tão assustada quanto ela, mas que sabia exatamente o que estava em jogo ali.
Sentou-se ao seu lado, e segurou novamente suas mãos, agora já suadas. Deixou o ar sair pela boca, pressionou os dedos contra os dela tentando tomar coragem antes de se voltar para Júlia e a encarou sob o cenho franzido.
— Quando é que faremos isso?
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 20/08/2022
Laura está nas suas mãos o destino.
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