Guaratuba, 28 de dezembro de 1991

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Marcela acordou preguiçosa, com olhos cansados observou o marido que dormia solto, roncando em plenos pulmões, levantou espreguiçando ao mesmo tempo em que tentava não fazer tanto barulho para não acorda-lo, tirou o baby doll branco, deixado na cama, indo até o banho, virou para o chuveiro, de forma com que a água massageasse as costas doloridas. Tomou um banho sem pressa, lavando os cabelos dourados com cuidado, da mesma forma que ensaboou o corpo, desfazendo os nódulos de tensão dos músculos com uma massagem, se enxugou, passando a lavanda preferida, em seguida abriu o armário do banheiro, observando o olhos cor de mel que pareciam que haviam clareado essa manhã, pegou a pasta e a escova de dentes, sorrindo ao sentir o gosto de hortelã. Por fim, escolheu uma bermuda jeans e uma blusa listrada de alcinhas, terminando de trocar de roupa para descer.

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- Mãe? – Ouviu a voz da filha na porta.

- Oi Lila, aconteceu alguma coisa?

- Acho que senti uma mãozinha arranhando meu rosto.

- É mesmo, e quem seria que fez isso com a minha filhinha?

- Acho que é o duende que mora dentro da minha bota.

- Ah, sei...o duende, e esse duende com certeza está querendo tomar um café da manhã bem gostoso, não é?

- Não mãe, ele quer só o cereal do tigrinho com leite, você bota pra mim e em uma xícara bem pequenininha pra ele também?

- Claro, já vou descer meu anjo – Marcela adorava a imaginação da filha, sempre tão fértil, há cinco anos todos os dias ao seu lado eram felizes.

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         Preparou com capricho a mesa do café da manhã, sentando ao lado da filha, comendo o sanduiche de queijo com Nescau que tanto gostava.

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- E aí Lila, o duende está gostando do Sucrilhos?

- Ele disse que prefere o de chocolate, mas, como só tem esse, tudo bem... – O marido desceu olhando a conversa entre mãe e filha, riu de forma debochada, virando a pequena xícara com sucrilhos em sua boca.

- Pai, você teve coragem de comer o sucrilho do duende...ele fica bravo.

- Não existe duende nenhum, já falei que parasse com essa bobagem – Marília estirou o bico para chorar, mas, a mãe a acomodou no colo, passando a mão delicadamente em seus cabelos.

- Não se preocupe, eu coloco outra xícara para o duende, se ele quiser ponho um pouquinho de Nescau também.

- Tá bom, mamãe...

- Ê, olha quem está deixando essa menina cheia de frescura.

- Esquece que ela só tem cinco anos?

- Mãe, depois do almoço eu posso comer o chocolate de estrelinha?

- Claro, hoje pode...ih, a mamãe esqueceu de comprar, mas, vou agora mesmo, é bom que aproveito e compro umas frutas.

- Eu posso ir?

- Não minha filha, acho que tem que levar o Tobias para dar uma volta no jardim, olha como ele está te esperando – Marília olhou o simpático filhote de vira-lata caramelo balançando o rabo em uma alegria expressa também nos olhinhos vivos. Marcela beijou a cabeça da menina, envolvendo os braços no pescoço do marido.

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- Não fica chateado assim vai...a menina teve pesadelo durante a noite, se ficar bonzinho mais tarde tenho uma surpresa para te falar, acho que vai amar.

- E o que é?

- Bobo, se contar deixa de ser surpresa, não é verdade?

- Tem razão, desculpe ter tomado a bebida do duende, acordei mal humorado.

- Você acordou foi de ressaca, Renato... Hahahahah...e está devendo desculpas a Lila, você sabe que a menina é sensível.

- Tudo bem, vá – O marido respondeu, deixando que o sorriso voltasse ao rosto.

- Amor, vou lá comprar o chocolate da nossa menina.

- Tá bom, dá um beijo aqui – Marcela envolveu o marido, deixando que a língua deslizasse em sua boca, em seguida pegou a chave do carro, despedindo da filha.

Perto da hora do almoço, Renato andava de um lado para o outro, Marcela não voltava, pegou seu carro indo até o supermercado onde ela costumava comprar o chocolate de estrelinha de Marília, nem sinal, parou em cada mercadinho da região, e nada, parecia que a mulher tinha sumido, tanto ela, quanto o carro. A filha estava ao lado no banco do carona, segurando um ursinho de pelúcia, balançando os pés ao mesmo tempo que cantava:

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Alecrim, alecrim dourado

Que nasceu no campo sem ser semeado

Alecrim, alecrim dourado

Que nasceu no campo sem ser semeado

Foi meu amor que me disse assim

Que a flor do campo é o alecrim

Foi meu amor que me disse assim

Que a flor do campo é o alecrim...

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- Marília, cala a boca agora ou pela primeira vez na vida te dou um tapa – A menina se encolheu na poltrona chorando baixinho para não incomodar o pai, que sabia estar irritado - Esse maldito chocolate, se Marcela não tivesse saído para comprar, nada disso tinha acontecido.

         Já era tarde quando Renato esquentou a macarronada que Marcela havia feito na noite anterior, serviu a filha, deixando que a comida descesse por sua goela, passando pelo nó que se formava em sua garganta.

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- Pai, eu posso comer a macarronada com refrigerante?

- Pode, faça o que quiser, só não me torre a paciência.

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Na manhã seguinte, o carro de Marcela foi encontrado na beira de uma estrada com alguns itens pessoais, como carteira de motorista e a bolsa com chocolate e frutas, porém sem as chaves. A busca e a perícia foram iniciadas no dia seguinte da notificação do desaparecimento e nenhuma pista foi localizada. Anos mais tarde, a polícia revelou ter encontrado um segundo DNA dentro do carro, que infelizmente não era compatível com os registrados nos bancos de dados e, por isso, não contribuiu para a identificação de um suspeito.

Marília evitava falar na mãe, e cerca de um ano depois, Renato casou com Eneida, a nova mulher chegou trazendo consigo um filho de 14 anos, fruto do primeiro casamento, a madrasta era carinhosa, Marília a chamava de mãe, mas, a cicatriz pelo desaparecimento de Marcela permanecia no coração, seu pai nunca a perdoou, mesmo passados tantos anos, acreditava que a filha era culpada do desaparecimento da mulher.

A policial acordou assustada, o sonho recorrente com a mãe voltara. Pegou o celular, ligando para Maria Rosa.

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- Amiga, está ocupada?

- Não Lila, estou com a Samira, organizando tudo o que encontramos sobre o Caso Dany até agora, você está bem?

- Não muito, tive um sonho com a minha mãe.

- Algo novo?

- Não, a mesma cena de sempre.

- Sei que não é fácil, mas, quer um conselho? Foca no teu trabalho, quando terminar esse caso, prometo que vamos te ajudar a vasculhar esse passado. O saber o que aconteceu vai te dar a paz que precisa.

- Tem razão...obrigada, mais tarde a gente encontra para debater sobre o que já encontramos até agora, tenho um check list a cumprir do caso Dany.

- Nem fala, nós também...

- Ah, e suas amigas?

- Daisy e Bia foram embora, vieram só para o show.

- Uma pena, gostei delas.

- Podemos marcar mais vezes, quem sabe elas não te apresentam alguém?

- Melhor não, porque de certo será alguém complicado, ou se tornará assim, tenho o dedo pobre...bom, vou nessa, até mais tarde, beijo.

- Até lá, beijos.

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Marília esticou o corpo, resolvendo dar um pulo na praia antes de começar a trabalhar, abriu o Kindle para ler a frase em voz alta:

Quanto mais astuta a pessoa, menos ela desconfia que vai ser apanhada com uma besteira. É preciso usar exatamente a coisa mais simples do mundo para se pegar o esperto (Dostoievsky)

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A frase reverberava na cabeça enquanto o sol castigava sua pele na cidade praiana, segurava o peso do tronco com as mãos espalmadas sob canga enfeitada com desenhos de fitinhas do Senhor do Bonfim pensando no assassinato de Dany. A policial apertou os lacinhos do biquini vermelho, sentindo as costas arderem, sorrindo ao lembrar que havia esquecido de passar protetor solar. Ficou de pé batendo a areia da pele, guardando suas coisas no pequeno armário pessoal que havia alugado, em seguida amarrou a fitinha com a chave em seu pulso, seguido em direção ao mar. Havia perdido a hora, lendo pela milésima vez Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski.

Retornou a pousada, tomando um banho para tirar o sal do corpo e dos cabelos, trocando de roupa, escolheu uma calça cargo rosa, com camiseta branca bordada com delicadas flores. Sentiu muita fome, fruto da corrida que havia feito nas areias quentes da praia. Pegou o carro, dirigindo em direção ao restaurante “Famiglia Mancini Trattoria”, sabia que a Chef havia namorado com Dany, e que de alguma forma poderia tirar alguma informação. Sentou em uma mesa afastada, o restaurante estava vazio, era uma excelente oportunidade para falar com ela.

De longe viu a Chef, seu dólmã era branco, com delicados moranguinhos por toda roupa, olhou o cardápio escolhendo “Conchiglia à Fiorentina” com camarões salteados e salada a parte, para acompanhar pediu um suco de uva integral. Quando o almoço chegou, o cheiro delicioso estava convidativo, pegou um pedaço grande colocando em sua boca, que devido a temperatura, deixou cair, dando um grande gole no suco.

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- Cuidado moça, olhe o aviso debaixo do seu prato, está muito quente – Marília deixou subir os olhos, admirando a beleza da chef, os olhos azuis eram intensos, e dava para ver debaixo da toque blanche que seus cabelos eram ruivos, contrastando com a pele branca.

- Pois é, estava morrendo de fome...deu nisso.

- Queimou?

- Não, foi só o susto, não deu tempo de machucar. Prazer, Marília...

- Giulia...

- Giulia, posso te fazer umas perguntas? Coisa rápida – A policial sorriu enquanto sondava.

- Claro. É sobre a Dany, não é? O que você é uma espécie de policial?

- Exatamente, essa espécie mesmo.

- Tudo bem, vou trocar de roupa, dar umas ordens na cozinha e volto.

- Eu espero...

- Vai comendo, pelo visto está com fome, não vou demorar.

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         Giulia sentou na cadeira em frente a Marília, tamborilou nas pernas, deixando os braços cruzados, realçando os braços malhados.

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- Gostou?

- Hã?

- Da comida...

- Sim, claro, tudo muito gostoso.

- Então, pode ir direto ao ponto Policial.

- Soube que você e Dany tiveram um caso – Giulia franziu a testa dizendo: – Essa cidade é de lascar, você trans* com uma pessoa uma única vez e todos ficam sabendo, ô coisa triste – Marília tentou se controlar, mas, não conseguiu, riu solto, deixando que pequenos perdigotos saíssem da boca. A chef riu também do próprio comentário.

- Então policial, minha história com a Dany foi um ponto fora da curva, sempre gostei de mulher cis, nascida biologicamente, sei, pode ser um preconceito, mas, é assim que sou... – Marília deu um meio sorriso, não queria atrapalhar o relato de Giulia, por fim falou - Entendo.

- Ah, eu queria trans*r com ela, todo mundo queria, e ela parecia muito disposta, era uma experiência para Dany, fazer sex* com pessoas diferentes, eu achei que ela estava escrevendo um livro, e éramos uma espécie de cobais, um dia ela quase confirmou que a minha teoria estava certa, mas, algo a fez mudar de ideia – Prosseguiu a Chefe com um forte sotaque paulistano, herdado dos muitos anos que havia morado em São Paulo, Giulia buscava na memória as palavras certas usadas por Dany – Ela dizia que depois que conheceu uma tal de Vivi que tinha entendido o que era, dizia que não era mulher, mas, também não era homem, e quando a gente ficava era como se nós trocássemos de sex* na hora. Marília riu – Tá vendo, você me entende agora? Foi a maior loucura que aconteceu na minha vida.

- Você ficou bem depois de tudo o que aconteceu entre vocês?

- Um pouco chateada, queria ter repetido a dose, mas, ela não quis, Dany era atraente demais, de uma felicidade contagiante. Gostava da ideia de como lésbica poder em algum momento devora-la com gosto.

- E ela quis? Em algum outro momento?

- Não, disse que queria tentar outras coisas, e que não queria perder minha amizade, aquela velha desculpa que a gente dá quando não está a fim.

- E você ficou mal?

- Não, e não matei Dany, pode ter certeza.

- Calma, esse é o meu trabalho, em falar nisso, preciso fazer uma pergunta constrangedora, onde estava na hora do crime?

- Estava com uma pessoa na minha casa, preciso falar, não é? Se não vou ficar na sua lista de suspeitos.

- Sim, infelizmente...

- Estava com a Kary, a mulher do vice prefeito, por favor, não espalhe, se quiser dou um jeito dela te confirmar.

- Tudo bem, não se preocupe, no teu tempo...obrigada pela conversa. Alguém te disse que parece uma versão mais nova da Dana Scully?

- Quem?

- Dana Scully, a investigadora da X-Files...procura na net, é igualzinha. Mas, não vou mais te segurar, sei que está no horário de trabalho...obrigada por colaborar.

- Foi um prazer, agora tem razão, preciso voltar ao trabalho. Foi bom conversar contigo, querendo voltar para conversar sobre outras coisas além de falar de Dany, será bem-vinda.

- Obrigada, pode deixar que voltarei.

- Com licença.

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        Giulia entrou na cozinha, indo para o quartinho atrás do restaurante, deixando que as lágrimas derramassem em seu rosto...

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* CURIOSIDADE DO CAPÍTULO *

Dana Scully

Fim do capítulo