8. Efeito Borboleta
— Por que não nos falou do seu irmão?
Sentiu seu corpo ser tomado por um frio, um arrepio que percorria sua espinha do começo de seus quadris até o pescoço, assim como o ar faltar por breves segundos. Tinha tido uma tarde amena, era evidente que aquele dia não acabaria bem.
— Como... – ela cerrou os olhos. Não iria negar, mas logo procurou por Júlia que mostrou o recorte do jornal. Ali estava ele e os outros, em uma imagem nítida e colorida, as semelhanças afloradas entre eles com o passar dos anos.
— Por que não me falou dele, Ana? – Júlia dizia em tom marcante, e ela pressionou os olhos, tentando conter suas emoções confusas que se dissociavam ali.
Estava com medo e vergonha, sequer se importava se tinham mexido ou não em suas coisas. Era questão de tempo até descobrirem, afinal estavam investigo aquilo com afinco, mas não esperava ser tão rápido.
— Fiquei com medo de você ficar com raiva de mim e me abandonar, Ju – sua voz trêmula tocou o coração de ambas, e Júlia fez um barulho descontente com os lábios, se aproximando da mais jovem.
— Ei, por que isso? – ela segurou seu braço contra si – Jamais ficaria com raiva de ti por causa disso, não tenho nem motivo.
— Se não fosse por ele, essas merd*s todas aí... – Ana apontou para o caderno.
— Mas qual é sua culpa nisso tudo? – Cora também ponderava amigável, procurando mostrar a ela que não tinha risco de falar com elas sobre aquilo.
— Sei lá – ela fazia um bico com os lábios – a culpa é sempre minha no final.
— Deixa isso pra lá, tá bom? – Júlia pressionou sua mão com mais força, o seu jeito de confortá-la – Não precisa ter medo de mim, sério.
Ana se sentiu mais aliviada. Tinha a convicção de que seria abandonada e sozinha à própria sorte naquele lugar, já que o tempo de vivência com sua família foi suficiente para que ela tivesse a crença que a raiz de todos os problemas provinha dela, seja por sua sexualidade ou a sua mera existência. No entanto, encontrou naquela garota de feições mal-humoradas mais alento do que pouco viu na vida.
E que seu maior temor parecesse ser só uma aflição banal. Porém, ali, pensativa, encontrava-se Cora de frente ao quadro montado em seu quarto, comumente usado para seu estudo e compromissos do dia.
— Então... – ela dizia com receio de atrapalhar o momento fraterno entre as duas – qual a relação com tudo isso?
Mostrou a foto do irmão para ela, que deu os ombros.
— Não faço ideia, por isso não achei que deveria comentar também – aquela situação era delicada demais para conseguir ódio gratuito à toa e arriscar o pouco de conforto que tinha ao lado da pessoa que estava ao seu lado em toda essa loucura.
Cora se voltou para o quadro e começou a riscar com giz o nome de ambas. Relacionou os dois nomes com parentes vitimados, mas só isso não servia como relação porque se fosse, e o resto das pessoas, porque não aconteceram o mesmo com elas? Ou aconteceram em pontos distantes dali? Era uma coisa que fazia menos sentido.
— Ana, sua família não tinha informação privilegiada nem nada do tipo? – Júlia comentava – Porque tudo que sei foi depois de muita procura, e ainda sim, são só...notícias retalhadas.
— Ah, é que assim... – Ana Clara sentou-se na cama, suspirando – eu nunca quis saber muito disso, entende? Mas o pouco que sei é que sim...
— Então tem como compartilhar com a gente, por favor? – Júlia levantava os olhos e Ana Clara voltava a ficar temerosa – Qualquer informação é válida.
— Sim, Ana – ela cruzava os braços, olhando para o quadro – e pode ser a chave pra resolver esse abacaxi sem pé nem cabeça que aconteceu com vocês.
Ana encarou as próprias mãos, os dedos batendo um contra os outros aflitos. Gesticulou para que Júlia entregasse o caderno, e assim o fez. Olhar para aqueles recortes era como receber um soco no estômago, mas ainda assim o fez.
— Isso aqui... – ela apontou para a entrevista dada pelo único atirador sobrevivente – não foi isso que aconteceu. Essa matéria foi toda picotada, nunca saiu a versão na íntegra.
— Como sabe disso? – Cora olhou por detrás dos ombros de Ana, que assentia séria como poucas vezes ficou.
— Porque eu vi a versão sem cortes – Ana visualizava o rosto jovem do atirador, que na época deveria ser mais novo do que ela – lembro bem porque isso deu uma briga horrível em casa. O número de pessoas mortas também não está certo, Ju... – e voltou a apontar para os números escritos ali – foi bem mais gente, e... Querem mesmo saber de tudo isso?
Coralina e Júlia se voltaram pra ela, concordando com a cabeça, os olhos fixados nela como crianças prontas para ouvir a próxima história pela boca da professora, com a diferença que era uma Ana Clara levemente envergonhada por tamanha atenção.
— Olha, pra início de conversa – ela levou os dedos até a figura séria do atirador – quem fez essa entrevista foi uma mídia independente, só que deram um cala boca de muito dinheiro para a empresa deles, e quando supostamente vazou, já era a versão editada.
— E quem eles querem tanto proteger, Ana? – Cora perguntava notavelmente curiosa com o rumo que aquela conversa tinha tomado.
— Eles – e levantou para que elas vissem os quatro rostos em evidência, incluindo o do próprio irmão – mas esse aqui em especial.
E apontou para um deles em específico, pegando a Júlia de surpresa.
— Por quê?
Até onde sabiam, eram filhos de pessoas importantes e por conta disso ficaram em ainda mais em evidência, sendo as imagens mais presentes em homenagens quando se tratava de falar do incidente, principalmente porque foram os primeiros a serem atingidos de maneira brutal – todos os enterros foram de caixão fechado tamanho deterioração dos corpos.
— Porque os outros eram capachos perto do que ele era. Segundo o atirador, ele era como o demônio, o mau encarnado – ela ria com desprezo – eles eram detestáveis, e muita gente que morava no condomínio que eles viviam confirmava, principalmente dele.
— O quê? – Júlia se aproximou com os olhos fixados nela, os lábios entreabertos concordando esperando pela resposta que ela daria. Não sabia de nada daquilo. Já para Cora era tudo novo.
— Uma semana antes do ocorrido, eles... – Ana Clara pigarreou, tentando entrar naquele assunto delicado ao apontar para as figuras principais – abusaram sexualmente deles – e voltou o indicador para os atiradores – fisicamente também. Um deles passou dias no hospital, já o outro ficou totalmente perturbado. Esse que sobreviveu – Ana voltou a mostrar os recortes – ele ficou obcecado em matar só o seu algoz. Tanto que quando exumaram os corpos, só encontraram as balas no corpo dele, mas também, foi uma enxurrada de bala...
Coralina botou a mão na boca, chocada. Já Júlia se prestou a levantar as sobrancelhas, surpresa.
— Parece que não foi consensual dos três o assassinato em massa, tanto que um sobreviveu, mas os outros dois cometeram suicídio... – Ana Clara suspirou – os moleques foram atormentados, abusados e ficaram malucos querendo vingança, basicamente foi isso.
Júlia absorveu a tais informações em silêncio, sem ponderações. Sabia que a história contada pelos jornais e outros veículos eram suspeitas, mas não maquiadas a esse ponto. Talvez nunca saberia dessas coisas se não tivesse com Ana Clara, sobretudo que as informações de número de mortos estavam erradas com número a menos. Tudo dificultando ainda mais o trabalho dela em encontrar sua família biológica.
Já Cora ficou aterrorizada com aquilo. Assassinato em massa, violência sexual, vingança eram como uma realidade paralela de uma história de terror, não algo que estaria fadado a acontecer...
A acontecer, no futuro.
Seus olhos se arregalaram, e ela deu um grito satisfeito, correndo para o quadro e escrevendo a palavra “futuro” em letras garrafais.
— É isso, meninas! – e circulou a palavra – É isso!
— O quê? – Ana Clara dava com os ombros, fazendo um bico proeminente para frente com os lábios sem entender o sentido daquela palavra.
Cora fez uma grande linha, colocando dois pontos aleatórios nela.
— Estamos aqui – ela riscou o primeiro ponto – e o que aconteceu está bem aqui, certo? – e circulou o ponto lá da frente – Já assistiram o De volta para o futuro?
Ambas concordaram, e Cora sorriu consigo, animada.
— Então sabem que se mudar alguma coisa no passado, interfere diretamente no futuro, entendem? Que nem quando o McFly vai fazer os próprios pais ficarem juntos.
— Como um Efeito Borboleta? – Ana Clara levantou as sobrancelhas, e Júlia concordou por entender a referência, afinal desprendia muito tempo assistindo filmes com Rodrigo nos finais de semana, e esse era um dos que ele mais gostava.
— O que é isso? – Cora perguntou, curiosa.
— Que pra toda ação, tem uma consequência – Ana Clara respondeu, e Júlia cruzou os braços, vendo as anotações do quadro. Levantou-se e parou de frente a ele, sacou o giz e começou a riscar.
— Se eu e Ana Clara temos esse evento em comum em nossa vida... – foi levando o nome delas até a linha – e toda ação tem uma consequência, será que não é nossa função impedir isso?
Virou-se e encontrou Ana Clara e Cora se entreolhando.
— Por que nós, então? – perguntou Ana Clara pouco convencida daquela hipótese.
— Não sei – Júlia deu com os ombros – é uma sugestão.
— Não é só uma sugestão – Cora logo caminhou até o lado dela – isso é uma ideia excelente! Se impedirem desse massacre acontecer, vão poupar a vida de dezenas de pessoas, e...
— Calma lá, Cora – Ana Clara ponderava – isso é perigoso. Não podemos intervir assim se for o caso porque às vezes em vez de ajudar, fazemos é piorar.
— Mas a nossa vinda para cá já não é uma intervenção de qualquer jeito? – Júlia comentava, com a mão no queixo olhando para aquelas anotações que cada vez tomavam forma.
— A Ju tem razão – Cora gesticulava – e se for justamente para mudarem isso?
— Mesmo que seja, como vamos saber o que tem que fazer? – Ana Clara ria de nervoso – Porque eu não faço ideia.
— Uma coisa de cada vez – Júlia colocava os dedos entre as têmporas, fechando os olhos – se for pra mudar alguma coisa, temos que dissecar primeiro o que aconteceu pra saber porque estamos aqui, agora.
— Deve ser alguma coisa que ainda vai acontecer – Cora interveio, e Júlia abriu os olhos cerrados.
— Não acho que isso seja uma boa ideia – Ana Clara disse entre os dentes – e se ocasionar sei lá, o fim do mundo lá na frente?
— Se você tivesse qualquer oportunidade de salvar sua família, você não faria isso?
As palavras de Júlia saíram cortantes em direção de Ana Clara. Não, ela não o faria porque não se importava com pessoas que nunca se importaram com ela, mas não era por sua realidade ter sido aquela que não entenderia a de outros.
Júlia e incontáveis pessoas, incluindo ela desde o nascimento, tiveram a vida mudada drasticamente por aquilo. Outras dezenas em números incertos perderam a vida. Se ela amasse alguém e tivesse perdido a pessoa que amasse, não faria diferente.
Mas se mudasse em prol delas e interferisse na vida de centenas em um efeito cascata que piorasse ainda mais as coisas? E se tivesse mesmo que ter acontecido o que aconteceu e as coisas seguirem assim? Era um péssimo jeito de lidar com as coisas, e só podia se ater a probabilidades. A chance de dar certo e a chance de dar errado nas mesmas proporções. A ínfima chance de ter um futuro diferente dos que já conhecem.
E, se estavam ali, não deveria ser mero acaso. Era surreal demais para tudo ser mera coincidência.
Mas, enquanto Ana Clara mitigava consigo em sua linha de pensamentos, Cora chegou em uma pertinente conclusão no que foi dito.
— Talvez alguma coisa que aconteça aqui – riscou de novo o ponto onde estavam – interfira em tudo isso.
Anotou novamente no quadro as palavras-chaves de sua ideia, e se entreolharam. Estavam mais perto do que antes, disso sabiam, mas quanto mais se aproximava do possível motivo, as coisas ficavam ainda mais nebulosas.
Fim do capítulo
E ai, o que estão achando da história? Curtindo? Ou está tudo meio estranho de um jeito ruim?
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