5. As viajantes
Para o alívio de ambas, ninguém atacou ninguém durante o sono, o que deixou Júlia mais relaxada. Coralina se arrumava para a aula, e as duas se dividiam nas tarefas domésticas, as quais Ana Clara fazia sem muito jeito enquanto era instruída por Júlia, que ficou com o serviço pesado.
No curso, as amigas não se falaram até que Laura veio puxar assunto com Cora.
— Vai ficar chateada comigo mesmo?
— Não, não é nada disso – Cora apoiava o queixo entre as mãos – só estou pensando.
— E como foi ontem?
— Normal – ela deu com os ombros – papai e a mamãe gostaram muito da Júlia, e a Ana só dorme. Estavam exaustas – continuou dizendo com pesar.
— Qual delas, a... – Laura mordeu a língua levemente antes de falar o que pensava – aquela mais alta?
— É, ela mesmo, daí por isso acho melhor perguntar com todo mundo descansado, cabeça fria.
— Não sei porque, mas tenho a impressão de que está gostando de tudo isso – ela arqueou as sobrancelhas, mas Cora logo a repreendeu.
— Só estou curiosa, nada mais que isso.
O dia se seguiu tranquilo. Júlia ajudava no descarrego de verduras como fazia em sua casa, e se viu naquele momento em paz, lembrando um pouco de casa. Já Ana Clara, desacostumada com aquela rotina, depois do almoço acabou indo se deitar e ler algum dos livros da pilha da escrivaninha.
Coralina chegou no começo da noite, acompanhada de Laura, e viram Ana Clara sentada na frente da casa conversando com Maria das Graças animada, usando uma regata com listra multicoloridas na frente e um short folgado enquanto a dona da casa se vestia com um simples vestido.
— Olha só quem chegou – disse ela animada ao ver as garotas.
Ana Clara, ao ver Laura, a cumprimentou com um tímido aceno, que ela retribuiu no mesmo tom.
— Vai jantar com a gente, minha filha? – dizia dona Maria para Laura, que logo negou.
— Até gostaria, mas tenho que chegar cedo em casa hoje...Boa noite – ela sorriu e saiu, mas sem antes olhar de relance para Ana Clara e continuar a caminhada.
Entraram e esperaram por Emanuel, o taberneiro, chegar para assim jantarem. Só comiam depois que todos estavam reunidos, o que se deu sem interrupções, afinal a hora da comida ali era sagrada. Depois, todos se reuniram para assistir televisão, mas não demorou para que Ana Clara pegasse no sono no colo de Júlia, que ajeitou o colchonete de dormir e a colocou lá.
Quando Maria e Emanuel foram para seu aposento, Coralina ficou a sós com Júlia novamente.
— Quer ir lá fora um instante? – Cora gesticulou para ela, que aceitou o convite. Ficaram na parte de dentro, apoiadas no muro de grade baixa, com Júlia de costa para a rua enquanto a outra olhava o movimento.
Júlia sabia o que ela queria, e talvez fosse o momento de dar o que ela desejava, mesmo que isso significasse uma possível expulsão da casa. Tudo isso porque, por mais que prezasse ter um lugar para ficar, a ideia de estar mentindo a corroía gradativamente, como se estivesse usando da boa vontade das pessoas.
E, principalmente, porque queria que alguém acreditasse nelas o suficiente para ajuda-las de algum jeito, e por que não na garota que colecionava foto de astros e estrelas na parede?
— Eu preciso te dizer uma coisa – Júlia disse em seu tom sério – mas você precisa acreditar em mim.
— Claro, Júlia, mas...
— Você tem que me dar sua palavra, Coralina – ela pontuou, grave – por favor.
Ela sentiu um arrepio percorrer sua espinha. O que tinha de grave a ser dito por aquela garota que dispensava brincadeiras? Até que ela concordou novamente e Júlia entrou em casa, demorando alguns minutos até voltar.
Quando ela voltou, foi ainda com o olhar sisudo olhando ao redor, até que a olhou compenetrada.
— Nós não somos daqui – ela proferiu em um sussurro – nem de lugar nenhum perto daqui.
— Como, Júlia? – ela ria nervosa com o tom cada vez mais sombrio dela.
— A gente veio lá da frente... – ela suspirou pesada, questionando se realmente estava fazendo o certo em dizer aquilo a ela, mas tarde demais para voltar atrás – do futuro.
Cora olhou com estranheza para ela antes de dar uma sonora gargalhada e a leve desconfiança de que tinha deixado entrar em sua casa duas malucas que tinham fugido de algum hospício, e não vagantes pelas ruas.
— Júlia, que história é essa? – ela colocava a mão no peito, rindo – Não existe isso de...
E entregou o telefone em sua mão vaga, clicando nos botões ao lado, que acendeu. Coralina olhou chocada para ela, quase o derrubando, mas ela o colocou firme contra a mão dela.
— Eu não estou brincando.
Ela olhava para ele, um aparelho quadrado, maciço e de vidro. Pesava, mas era leve ao mesmo tempo. Ela olhou para as laterais, parecia só um estranho espelho que mal refletia com horas de rádio relógio na frente e uma luz ofuscante.
— Veja.
E o desbloqueou, e, como o esperado, Coralina não entendeu o que estava acontecendo.
— O que é isso? – ela olhava com as mãos trêmulas – pra que...
— É um telefone – pegou da mão dela e procurou pela galeria até mostrar uma foto de Ana Clara de perfil. Coralina deu um pequeno gritinho com a mão na boca.
— Como é que...isso... – ela dizia desacreditada, até que Júlia tirou uma foto dela, urgente para dar as respostas, e mostrou pra Cora, que recuou – Júlia, o que...Sou eu?
Ela pegou o telefone, estática, segurando a própria imagem refletida naquele vidro iluminado. Do bolso Júlia tirou seus documentos e os mostrou, autenticados.
Coralina se sentou, ofegante, com os olhos arregalados e a boca seca tamanho nervosismo.
— Você acredita em mim agora?
Aquilo era impossível a Coralina, que mesmo em seu ato de São Tomé continuava desacreditada. Sua cabeça girava e, quanto mais ela olhava para a data do documento de Júlia e para aquele aparelho, mais sem reação ficava. Queria vomitar tamanho nervosismo.
Ela sabia de tudo o que acontecia e era dito na televisão, e nunca, jamais tinha visto aquilo que ela segurava. Não podia ser estrangeiro, até mesmo os nomes estavam em português, e ele tirava foto como uma câmera sem precisar revelar. Ela se via nele e quase se sentiu como diziam na escola que as pessoas tinham medo de fotografias por acharem que elas capturariam sua alma, e ali estava ela, descrente naquela imagem.
Era uma foto, refletida em um espelho levemente pesado, e a foto de Júlia mais nova com o nascimento datando de dez anos à frente. Coralina colocou as mãos na cabeça. O ar lhe faltava, enquanto Júlia mantinha sua pose séria em frente e, quando pôde olhar em seus olhos novamente, viu a seriedade que ela falava anteriormente.
— Sei que é estranho, mas por favor, acredite em mim.
E ela era uma mulher de palavra.
— Por tudo que é mais sagrado, Júlia, por favor, me explique o que estou vendo – ela dizia pausadamente – Quem são vocês?
Júlia se sentou ao lado dela, visivelmente tensa, e respirou fundo.
— Somos quem somos, não estou mentindo– e a olhou de relance – eu só te falei disso porque acho que você é a única pessoa que pode nos ajudar.
— Mas... – Cora dizia suplicante – como?
Ela deu com os ombros, pressionando os lábios.
— Eu sei tanto quanto você sobre isso, mas se precisar de mais provas do que estou te dizendo, eu te dou, chamo a Ana Clara, mas...por favor, acredite em mim – e segurou a mão fria de Coralina – eu posso confiar em você?
— Júlia, eu...
Ela segurou o telefone contra a mão de Cora.
— Pode mexer nele à vontade, que eu vou indo me deitar, tá bom?
Fez isso porque ficou com receio da reação dela caso ficasse mais, e Ana Clara iria a perdoar pela violação da privacidade feita por um bem maior. Deitou-se ao lado dela e a cobriu antes de fechar os olhos e torcer para que acreditasse nela.
Coralina, por outro lado, entrou na casa e sentou no sofá, respirando pausadamente enquanto tentava recuperar o liame de sanidade perdido naquela conversa.
Elas vieram do futuro, segundo Júlia, a mulher mais centrada que conhecera, a mesma que o tempo todo estava acanhada e receosa. Não, ela não era uma pessoa sem juízo, antes de falar o que falou era a pessoa mais sóbria que já vira.
Lembrou que Laura as chamou de estranha, como se não se portassem como deveria, nas roupas, no jeito, como se estivessem mesmo perdidas.
E agora aparecem com uma identidade fiel a uma original, com a data aquém do agora, e esse aparelho, pedindo para que ela acreditasse nela com um tom sério.
Júlia não era tresloucada, isso ela teve certeza, mesmo aquilo parecendo a conversa de uma. Talvez fosse uma daquelas pessoas que acredita em uma realidade diferente, mas ela deu provas cabais para isso.
E falou muito sério sobre, e isso que a incomodava.
Ela precisava investigar isso, começando pelo aparelho em mãos e naqueles documentos, nem que isso durasse a noite inteira.
❖
Quando Júlia acordou no começo da manhã, não viu Coralina. Levantou-se sem incomodar Ana Clara e foi até a sala, encontrando a mesma na sala, com anotações entre as pernas, tamborilando os dedos contra a tela já apagada. Quando Cora a viu, gesticulou para que sentasse junto a ela.
Passou a noite inteira esmiuçando aquele aparelho, cada funcionalidade dele. Demorou para se adaptar que ele era ao toque, ou o que funcionava cada item, mas era mais intuitivo do que imaginava.
Também soube que ele era de Ana Clara por conter itens pessoais dela ao monte, como conversas com pessoas a qual cada uma tinha uma foto a representando, fotos dela em vários momentos aleatórios no qual ela revirou até saber que eles tinham data.
Cada foto daquela com data para dois mil e uns quebrados, com hora e tudo mais. Também descobriu que o aparelho datava de bem além da data que via isso. Aprendeu a tirar uma foto com ele, e quando pediu a data, era uma data aleatória, como se ele não estivesse funcionando bem.
Tentou fazer uma ligação com o telefone, mas a caixa postal dizia que estava fora de área ou fora da área de cobertura.
Nunca vira um aparelho daquele nem nas maiores novidades relatadas na televisão, e com certeza elas não fugiram com ele de alguma área secreta dos Estados Unidos ou coisa semelhante, nem mesmo a teoria que eram cobaias vindo de lá.
Começou a acreditar em tudo aquilo, por mais irreal que parecesse, porque se estavam mentindo, era a mentira mais verossímil já criada.
— Parou de funcionar – ela apontou para a tela apagada – eu acho que quebrei.
— Ele só deve ter descarregado... – ela o pegou de volta – e então?
Coralina fitou o chão, pensativa.
— Júlia, não sei se estou ficando louca, mas... – ela suspirou e expirou fundo – eu acho que acredito em você.
Ela assentiu e se levantou, gesticulando para que a seguisse. Parou e se ajoelhou perto de Ana Clara, mexendo em seu ombro para que ela acordasse, e ela resmungou.
— Ana, cadê o carregador do seu telefone?
— No bolso da frente – ela grunhiu e se virou, fazendo com que Coralina sentisse aquele temor novamente.
Júlia, pacientemente, foi até o local indicado, pegou um cabeçote com um fio longo, o colocou na tomada junto ao aparelho que ligou novamente, voltando a todas suas funções.
Se tudo aquilo fosse uma loucura bem orquestrada, havia acabado de compra-la como a verdade mais inebriante que seus olhos puderam conceber, e olhou de volta para Júlia, que estava com os braços cruzados.
— Podemos mesmo confiar em você, Coralina?
Seu corpo era tomado por uma excitação inexplicável que a fez perder o ar e soltar o que restava pelos lábios. Na verdade, por mais estranho que toda a situação era surreal, a ideia de que estava com viajantes do tempo a deixava em êxtase mais do que qualquer liame de sentido.
Porque na vida, tinha coisas que não podiam ser explicadas, e essa era uma delas.
Estendeu a mão para Júlia, concordando com a cabeça.
— Podem ter certeza.
E Júlia apertou a dela com a firmeza habitual, assentindo com o esboço de um sorriso.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 18/07/2022
Julia conseguiu convencer Cora tem uma aliada.
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