Curitiba, 20 de novembro de 2021

         .

         Patrícia entrou em casa alongando o corpo cansado, puxou para um lado, espichou para o outro e foi tirando a roupa pelo caminho. Entrou no box, deixando que a água batesse forte em suas costas, sentindo um alivio quase imediato. Estava se ensaboando quando colocou a cabeça para fora gritando:

.

- Amor, cheguei, vem me dar um beijo.

- Um só não, dou vários - Falou enchendo o rosto molhado de Patrícia de beijinhos estalados por toda parte.

- Aí para, assim está fazendo cócegas.

- Mas é tão bonitinho te ver se contorcendo inteirinha.

- Vou te dizer, viu? Entra aí, vamos tomar um banho... - Falou de forma agateada, sorrindo mais aberto para pedir - Meu bem, lava meus cabelos? estou tão cansada - Mal terminou a frase e se virou, entregando os cabelos ruivos longos para lavar, não sem antes despentear os cabelos loiros, curtos e espetados, pintados de índigo nas pontas.

- Mas é muita folga, viu?

- Oh amor, estou cansadinha, faz isso pela tua Cerejinha faz.

- Está se achando depois que pintou esses cabelos de vermelho. Tá bom, vira que vou lavar - Voltaram para cama entre beijos e abraços apertados, as mãos deslizando, os corpos buscando prazer.

.

- Felipe, deixa a luz do abajur acesa, eu quero te ver - Falou alisando a cicatriz no peitoral.

- Eu...preferia que não, tenho aflição, você sabe...

- Meu bem, essas características femininas estão indo embora com os hormônios, veja, fez a mastectomia de transexualização, hoje você tem barba, pelos no peito, não é por ter nascido em um corpo de mulher, que isso te torna menos homem. Você é perfeito pra mim, e te amo exatamente como é, lógico que não posso entender o que sente, mas posso tentar fazer com que você se veja da mesma forma como que eu te vejo, como esse homem trans lindo que me apaixonei, o meu homem. Felipe chorou, sendo aconchegado pela namorada, que atualmente gerenciava o café de Daisy.

.

- Mas me fala amor, como foi no café?

- Hoje a Daisy estava lá com aquela amiga dela, aluna de piano, só um cego para não perceber que as duas estão apaixonadas, na verdade, a Beatriz sabe muito bem, já a Daisy ainda está se fazendo de louca.

- E você já falou com sua amiga?

- Já, ela perguntou se andava bebendo escondida, mas, ô, aquelas duas podem se enganar, mas, nunca a mim, falou rindo para cantar em seguida o refrão da música "Tamo aí na atividade", de Charlie Brown Jr: Eu nasci pobre, mas não nasci otário. Eu é que não caio, no conto do vigário...

- Hahahahah aí amor, te amo demais.

- Vamos dormir meu bem, amanhã vou sair com o casal que não se assume, vamos degustar uns cafés exóticos em uma feira. Boa noite gato - Falou beijando a boca do namorado.

- Boa noite meu bem.

.

         Santa Catarina, 20 de novembro de 2021

.

         Júnior acessou o celular navegando por uma rede internacional clandestina, olhou sua conta bancária cada vez mais gorda, proveniente tanto da sua família rica, quanto do dinheiro que desviava de milhares de cofres ao redor do mundo, eram tantas as contas que roubava, e tão pouco de cada um, que o golpe não era percebido. Uma boa parte do que lucrava ia para um paraíso fiscal, deixando o restante em uma segunda conta, em nome de Henrique de Alencastro Drummond, identidade falsa criada para viajar anonimamente.

         Era uma manhã iluminada, o sol lambia a pele trazendo o calor necessário para si, as vezes dizia que era movido a luz solar, precisando do calor para continuar.

Antes de entrar no hotel em forma de castelo, esticou seu corpo, estalando a boca para afirmar para si que estava bem.

.

         Château du Mont-Blanc

.

         Júnior olhou a construção, admirando a sua arquitetura em estilo gótico-provençal, inspirado nas concepções do arquiteto italiano Gabrielle Nouveau. O projeto de autoria de Renée Del Vecchio se destacava pelas agulhas e ameias medievais, que enfeitavam toda a silhueta da edificação.

O hotel foi construído de forma isolada, em uma pequena ilhota em Santa Catarina, escondendo-se sob uma formação de pedras denominada de Serra dos Ossos, encimada por vasto horizonte, e de frente para a entrada da baía, causando um impacto agradável aos que chegavam para se hospedar.

.

- Bom dia Henrique, seja novamente bem-vindo.

- Obrigada Vicente - Respondeu Júnior ao concierge, feliz de ser reconhecido por sua identidade falsa.

- Acredito que meu quarto já esteja pronto, estou exausto.

- Sim, evidente, está exatamente como pediu da última vez, infelizmente o quarto que se hospedou anteriormente está ocupado, mas, te colocamos no quarto azul ao lado, vai poder admirar a paisagem do mesmo jeito, já que da sua janela principal pode ver um bom pedaço da Serra dos Ossos.

- Fazer o que? Essas coisas acontecem, me atrasei, mesmo assim, obrigado.

- Sempre é um prazer servi-lo.

.

         Júnior agradeceu, pegando a chave em formato de botton, já sonhando em se deitar um pouco, quando seu braço esbarrou em uma agenda de couro que deslizou pela superfície lisa do balcão do concierge, caindo no chão. Pegou a agenda, levantando os olhos, surpreso ao se deparar com o dono do objeto, o rapaz devia ter mais ou menos a sua idade, seu rosto era anguloso, enfeitado com lábios carnudos, e intensos olhos azuis, encobertos por um emaranhado de cabelos ruivos cacheados.

.

- Desculpe a minha distração.

- Não por isso...muito prazer, Juan Ferrari Filho.

- Henrique Drummond.

.

         Júnior ficou parado vendo o jovem se encaminhar para o elevador, voltando para perguntar ao concierge sobre o seu interesse - Vicente, tenho impressão de conhecer Juan, ele estava aqui no semestre passado?

- Ah, nunca o vimos, pelo registro, in off, descobrimos que o rapaz é filho único de Juan Ferrari, dono de uma companhia aérea, aliás, é ele quem vai ficar no quarto amarelo, ao lado do seu.

- Ah, obrigado.

.

         Júnior tomou um banho demorado, vestindo uma blusa polo vermelha com uma bermuda jeans que evidenciava o corpo malhado pela a academia, escondeu a pasta de dente no fundo na mala indo bater no quarto vizinho.

.

- Olá Juan, desculpe incomodar, mas, não consigo achar minha pasta de dente, será que poderia me emprestar? - Falou mostrando a escova seca.

- Claro, entra, escova teus dentes, você gosta de queijos e vinhos?

- E quem não gosta?

- Meu pai é um dos patrocinadores de um evento neste hotel, mas, acho de bom tom pagar a entrada.

- Claro, que horas vamos?

- 21 h, acho que é uma boa hora...

.

         O tempo parecia não passar tamanha a ansiedade de Júnior, tinha realmente gostado do ruivo, que além de bonito era de uma família ainda mais rica que a dele, chegaram ao evento ladeados, pareciam que se conheciam há anos, a conversa fluía, assim como a paquera.

.

- Boa noite, gostaria de dois ingressos por favor.

- Dinheiro ou cartão?

- Cartão, tenho o péssimo hábito de nunca trazer dinheiro em espécie comigo.

.

         A recepcionista passou o cartão dourado, fazendo com que os olhos de Júnior brilhassem de admiração, era um cartão especial, com limite estratosférico, de um banco exclusivo para famílias milionárias, que há anos tentava entrar sem obter êxito, quem sabe Juan pudesse lhe ajudar nesse feito?

.

- Senhor, infelizmente seu cartão foi recusado.

- Não acredito, que vergonha, isso nunca me aconteceu, vou ligar para o meu gerente, com certeza esse banco vai ser processado.

- O senhor quer tentar novamente? as vezes a máquina dá esses erros mesmo, peço que me perdoe - Mas Júnior já tinha se adiantado para pagar, evitando um constrangimento maior.

- Não fique assim Juan - Falou apertando de leve o braço do rapaz em um carinho discreto - Essas coisas acontecem.

- O pior é que pode ter sido o meu pai, ele não aceita a minha sexualidade, e está querendo me obrigar a casar com uma herdeira de uma rede hoteleira, em pleno 2021. É o caos, ele adora me fazer passar vergonha Henrique, isso é humilhação, como vou pagar as minhas despesas?

- Mas, não fique assim, fala tua conta, vou transferir 30 mil pra ti, depois você me paga  - Juan enxugou as lágrimas que caiam, e sem nada a fazer passou o número da conta - Nem sei como te agradecer, estou arrasado, acho melhor ir embora, já deu pra mim.

- De jeito nenhum, vamos curtir a noite, vi que tem uma boate nos arredores, é pra lá que vamos.

.

         Após provarem os queijos e os vinhos, saíram em direção a boate com a fachada ornamentada com pedras, com um letreiro branco escrito Calabouço. Júnior pagou os ingressos, descobrindo que era noite de Flashback, entraram já dançando na boate ao som de Macho Man, do Village People.

.

Hey, hey, hey, hey, hey

Macho, macho man (macho man, yeah)

I've got to be a macho man

I've got to be a macho, macho man, yeah

I've got to be a macho, ow!

Macho, macho man (yeah)

I've got to be a macho man

Macho, macho man (hey, hey)

I've got to be a macho...

.

         Os drinks se multiplicavam, e quando Júnior, aliás, Henrique buscou Juan pela cintura, tentando beija-lo, o jovem encostou seus lábios grossos em seu ouvido para dizer baixinho: aqui não, vamos voltar para o hotel.

         Já no quarto, Júnior tentou avançar novamente em Juan, tentando mergulhar nos lábios carnudos do rapaz, que sorriu, avisando que ia em seu quarto buscar uma garrafa de amarula.

.

- Já bebemos demais, vem aqui, me dá um beijo meu curupira - Falou tentando abraçar o ruivo.

- Me espera, faz tempo que não tenho liberdade para beber o que quero e o tanto que quero, meu pai só me castra.

- Sim, está certo, vai buscar a bebida.

.

         Na terceira dose Júnior revirou os olhos bocejando, deitou na cama, sentindo tudo girar, viu a silhueta esguia vermelha, visualizando o braço em riste. Seu último pensamento foi, mas o que será aquela coisa que ele está segurando, seria uma pedra?

Acordou no dia seguinte, buscou forças para levantar, mesmo que fosse devagar, ainda estava tonto pela pancada, mas, principalmente pela bebida adulterada, o quarto girou, voltando a dormir novamente. Acordou duas horas depois, um pouco melhor, embora sentisse a boca ressecada. Passou a mão na cabeça sentindo o galo e o sangue pisado na testa, entendeu a situação. Apavorado, olhou seus equipamentos, buscando também o celular, nada havia sumido, apenas as fotos tiradas com Juan haviam sido apagadas, suas roupas também não estavam na mala, haviam desaparecido junto com o dinheiro da sua carteira, ficando apenas com a cueca que usava.

.

- Maldito, ele me roubou...

.

         O despertador do quarto do hotel marcava 14h, quando Elis Regina passou a tocar no aparelho.

.

Não venha querer se consolar

Que agora não dá mais pé

Nem nunca mais vai dar

Também, quem mandou se levantar?

Quem levantou pra sair

Perde o lugar

E agora, cadê teu novo amor?

Cadê, que ele nunca funcionou?

Cadê, que ele nada resolveu?

Quaquaraquaquá, (quem riu?)

(Quaquaraquaquá, fui eu)

Quaquaraquaquá, quem riu?

Quaquaraquaquá, fui eu

Ainda sou mais eu...

.

- Filho de uma puta, você me paga, vou te encontrar nem que seja no inferno...

.

         Curitiba, 20 de novembro de 2021

.

         Daisy tirou o braço do marido que descansava sobre seu corpo, se encaminhando para o banheiro, era o indício de mais uma noite insone, coçou o nariz sentindo em sua mão o cheiro do perfume de Beatriz que exalava, entrando em sua narina sem pedir permissão.

.

- O que está acontecendo comigo? - Falou enchendo a banheira com água morna, mais para quente, derramando os sais que exalavam o cheiro de camomila. Entrou devagar apreciando o aroma, relaxada adormeceu. Quando abriu os olhos Beatriz estava nua, sorrindo sem falar nada entrando na banheira, sentando em seu colo.

.

- Não foge amor, eu amo você...

- Eu também, me desculpe ser essa mulher tão medrosa, você merece alguém desimpedido, que não tenha tantos problemas e dúvidas...eu...

.

         Beatriz colocou o dedo em sua boca pedindo silêncio, em seguida a beijou delicadamente, deixando que a língua invadisse todos os espaços, fazendo com que Daisy gem*sse em sua boca.

.

- Se você me quiser, sou tua.

- Espera, deixa colocar uma música, quero que esse momento seja especial - Beatriz pegou um controle, deixando que a música romântica invadisse o lugar...

- Quem é essa cantora? Que voz linda, amei...

- Que cantora?

- Essa que está cantando ué...

.

         Abriu os olhos reconhecendo a voz masculina, dando de cara com o marido olhando com um ar de evidente deboche - Agora você é sonâmbula? Hahahahah...

- Não, eu não consegui dormir e preparei um banho.

- Vem, vamos voltar pra cama.

- Vou só terminar o banho e já vou, pode dormir, não precisa esperar.

- Tudo bem, qualquer coisa me chama, tá?

- Obrigada...pode deixar.

.

         Em casa Bia contornava o rosto de Daisy no perfil no WhatsApp, deslizando os dedos para dizer baixinho "te amo", depois levantou, buscando o violão para tocar.

.

Onde está você agora?

Apesar de estar aqui comigo

Já faz tempo que eu fui embora

O teu amor não me serviu de abrigo

Eu já nem leio mais

Aquela tua carta antiga

É que o tempo desfaz

Tudo o que um dia fez sentido

E já não faz agora

E já não faz mais agora

Por que é que tudo se evapora

Quando você não entende o que eu digo

Faz tanto frio aqui fora

Já nem entendo bem como me sinto sem você

Eu já nem levo mais

A tua foto na carteira escondida

É que o tempo desfaz

Tudo o que um dia fez sentido

Sem você, agora

Sem você, agora

Mas tanto faz, agora

Já tanto faz, agora... 

.

...: ♫ MÚSICAS DO CAPÍTULO ♫:...

Tamo aí na atividade - Charlie Brown Jr

Macho Man - Village People

Vou deitar e rolar - Elis Regina

Agora - Verônica Sabino

 

Fim do capítulo