E agora a aventura começa!
2. Longe de casa
— Mas que porr* foi essa? – perguntou Ana Clara se levantando de sobressalto. Ao seu lado estava Júlia, que permanecia com o braço cobrindo na altura dos olhos. Encarou-a com surpresa, assim como o seu redor.
Encontravam-se em um gramado alto, e a única iluminação vinha de um poste de luz amarelada ao longe, e o cantar dos grilos ressoavam frívolos aos seus ouvidos. Júlia afastou o braço dos olhos aos poucos e, com eles ainda cerrados, olhou para cima, deparando-se com as estrelas resplandecentes no céu noturno. Quando olhou para o lado, viu Ana Clara a encarando surpresa.
— O que aconteceu? – Júlia perguntou a ela, se levantando com dificuldade dali, mas logo que se levantou, estendeu a mão pra Ana Clara.
— Não faço ideia, digo – Ana Clara batia a roupa suja da lama e terra – você viu aquilo, tipo aquele clarão todo? Será que não foi um raio?
Raio naquela intensidade no meio da madrugada, com um céu limpo e sem causar nenhum dano a elas? Júlia estava descrente nisso, mas como muita coisa na vida, sabia que não podia descartar nenhuma hipótese, incluindo essa.
— Vi – Júlia concordou – mas você está bem?
Mas antes que Ana Clara pudesse responder, Júlia, recuperada do susto inicial, fez outra pergunta pertinente a tal situação.
— Desculpe, mas não estávamos em uma rua ainda agora? – ela apontou para o descampado ao lado delas – Com asfalto e tudo?
— Então, tenho certeza que estávamos – Ana Clara respondia enquanto saíam caminhando do matagal, e no meio daquela situação adversa ela tinha certeza de duas coisas: a convicção de que estava andando até o terminal rodoviário e de que aquela situação era estranha demais se parada para ser analisada.
O clima parecia bastante calmo, calmo até demais, pensou Júlia, que também tinha a mesma certeza de Ana Clara, mas escolheu não falar nada até ter o mínimo de noção do que estava acontecendo ali de fato. Ana Clara estava com medo e institivamente segurou no antebraço de Júlia. Júlia era mais alta e mais forte, mas principalmente destemida, afinal havia passado por coisas que muitos jamais pensariam em passar.
Caminharam pela estrada de terra por alguns minutos até verem uma maior luminosidade na esquina. Elas estavam tão afastadas da cidade assim? Pensou Júlia olhando ao redor enquanto sentia as mãos trêmulas de Ana Clara as segurarem.
Sabia que, em situações assim, manter a calma é primordial, então tentou se manter firme, como se o que tivesse acontecendo não fosse uma situação no mínimo peculiar e começou com o básico ao se conhecer alguém.
— Então, qual é seu nome? – perguntou a Ana Clara em seu tom conciso, chamando sua atenção e a tirando do temor que se encontrava.
— Ana Clara, e o seu?
— Júlia.
E continuou caminhando, olhando sério para frente. Pernas de grilos batiam incessantes uma nas outra rapidamente, preenchendo o espaço e sobretudo, os pensamentos inquietos de ambas.
Ao chegarem na parte mais movimentada, a situação ficou ainda mais estranha que antes. Estranha é a palavra que melhor resumia a impressão de Ana Clara ao ambiente, e Júlia tinha a certeza de que algo estava fora do lugar.
Era como ver um lugar repaginado. Havia alguns itens que configuravam a cidade em que estavam, mas ainda assim, não parecia ser. Parecia menor, algumas coisas estavam deslocadas e até mesmo o ar não era o mesmo. Júlia olhou para o lado e viu um carro que chamou sua atenção estacionado próximo a uma farmácia.
Passou as mãos sobre ele, ligeiramente fascinada pela lataria reluzente e chamativa, quase sentindo o cheiro de carro novo dela, mesmo isso sendo impossível vindo de um carro como aquele.
— Essa Kombi está novinha, olha só – Júlia falou com uma ponta de animação ao ver um carro naquele estado. Herdara de seu pai o amor por automóveis – Olha que coisa linda, Ana Clara.
Ana Clara só concordou com a cabeça. No quesito automobilismo, nada entendia. Depois de encarar por um tempo o estado da Kombi, voltaram a caminhar. Júlia deu um longo bocejo. Não era do tipo que costumava madrugar, ia pra cama cedo e acordava mais cedo ainda, totalmente diferente de Ana Clara, que estava em alerta, analisando os detalhes que pareciam estar fora do lugar, enquanto Júlia parecia já estar insone.
— Vamos procurar um lugar pra dormir? – sugeriu Júlia, olhando para os arredores.
Ana Clara concordou sem objeções afinal aquela situação de stress tinha a cansado também. No entanto, não esperava que caminhassem até uma ruela atrás de um depósito e Júlia, vendo algumas caixas secas, as pegou e desmontou ali mesmo próxima a uma parede no fim do beco sem saída.
— Sério que você vai dormir aí? – Ana Clara disse pungente.
— Eu? Não, nós – puxou da sua mochila uma coberta já velha, esticou-a e usou sua mochila como travesseiro, e retirou a jaqueta para dividir com Ana Clara.
Ana Clara olhou para a cena atônita.
— Mas e se vierem nos assaltar ou coisa assim? Eu tenho dinheiro, posso pagar um lugar pra...
Júlia levantou a mão, gesticulando para que prestasse atenção nela.
— Ana, você não acha essa situação muito estranha? – ela apontou para o redor – Eu não sei o que está acontecendo, e enquanto não entender isso, vou evitar ao máximo ter contato com gente que não conheço.
— E você acha sensato nós ficarmos em um beco sozinhas?
— Não se preocupe – ela apontou para o papelão ao seu lado – ninguém vai mexer com a gente.
E puxou com destreza de sua bota gasta um canivete, escondendo debaixo do braço ao se deitar. Ana Clara só se questionava se deitava do lado de uma desconhecida armada com uma faca que com certeza deve usar muito bem ou vaga sozinha por aí.
Concluiu que, perante a situação, preferia se ater a Júlia do que ficar sozinha naquele lugar estranho. Deitou-se ao seu lado e torceu para que ela não fosse uma maníaca ou uma assaltante pronta a atacar no momento que fechasse os olhos, mas também se acalentou dizendo que, se fosse qualquer uma das duas, já tinha a atacado faz tempo. Olhou para Júlia, e suas sobrancelhas grossas se franziam antes de seu rosto relaxar e ela entrar em um sono tranquilo, mesmo em meio a tudo aquilo.
Parou para encarar a noite que fazia, e de como o lugar era silencioso. Estava frio e o medo de ser surpreendida por alguém a amedrontava, mas logo o cansaço acabou vencendo e ela, sem perceber, acabou dormindo ali mesmo, naquele chão duro, no relento, atrás de um depósito de um lugar que não parecia nem um pouco com a cidade que ela conhecia.
Ana Clara foi acordada por uma movimentação ao seu lado. Ao abrir os olhos, viu os primeiros sinais do amanhecer ao horizonte e Júlia já de pé, desperta o suficiente. Já ela, sentia dor nas costas e seus pés frios por conta da madrugada. Se dissessem que um dia ela dormiria na rua assim, longe da cama confortável de qualquer uma, jamais acreditaria.
— Vamos procurar alguma coisa para comer? – disse Júlia estendendo a mão para Ana Clara, com a mochila nas costas. Ana Clara ainda estava praticamente dormindo pra compreender que os acontecimentos da noite anterior ainda permaneciam ali.
Elas andaram pela cidade, e agora, na luz da manhã, tiveram a certeza de que não estavam no lugar de antes do clarão. Ana Clara cogitou estar perdendo a sanidade, mas Júlia respirou fundo e seguiu. Seja lá o que fosse aquilo, teria uma explicação plausível.
Pararam em uma lanchonete que tinha um ou dois clientes, que logo a olharam com estranheza. Júlia olhou para a televisão, um modelo antigo que ainda via na venda próximo de sua casa, e Ana Clara, que reparava ao redor enquanto Júlia tomava a frente e pegava o cardápio, teve a única atitude de rir daquilo.
— Só podem estar de brincadeira... – Ana Clara seguiu com os olhos para a ambientação do local – Tudo bem que o retrô está na moda, mas não precisavam exagerar.
Mas não era isso que chamava atenção de Júlia. Na verdade, o que causava um temível estranhamento aos seus olhos era o cardápio, e por isso logo chamou pela atendente, que as olhava de cima a baixo. Seu corte de cabelo era questionável, no estilo armado com laquê e tinha uma franja presa em meio a tiara que combinava com seu avental. Ana Clara achou aquilo de tamanho mau gosto, mas não criticou o gosto alheio.
— Sim? – disse a mulher do outro lado do balcão.
— Gostaríamos de saber o porquê esses preços estão assim... – Júlia apontou para o valor do café preto. Dessa vez, era a atendente que ria delas.
— Mas o que tem de errado, querida?
Júlia olhou mais uma vez, questionando se ela via o mesmo que ela.
— O preço, senhora.
— Você achou caro? – ela levantou uma das sobrancelhas – Mas temos o melhor preço da região, e qualidade...
— Não, senhora, desculpe, não é isso – ela apontou de novo para os valores – é porque está nessa moeda.
Ana Clara não estava prestando na conversa, mas assim que ouviu a última frase proferida por Júlia, seguiu com os olhos para o cardápio.
— É, porque não está em real? – Ana Clara cruzou os braços, encarando.
— Isso é dólar? – Júlia voltou a perguntar, e dessa vez era a atendente que ficou confusa com o teor daquela conversa. Pensava ser brincadeira das duas e estava prestes a dar as costas quando Ana Clara puxou de sua carteira uma nota de dez reais e mostrou pra atendente, que pegou e analisou aquela cédula atentamente.
Parecia ser muito verossímil para ser uma falsificação, e estava em português mesmo nunca tendo visto uma daquelas. A moeda tinha trocado de ontem para hoje e ainda tinha sido noticiado? Não, pensou ela, ainda estava passando o primeiro jornal e se fosse, com certeza saberia. A única explicação que podia dar era que seriam estrangeiras, mas não fazia sentido. Para não questionar ainda mais sua sanidade em procurar sentido onde não tinha, ainda mais sobre duas jovens vestidas de forma tão esquisita, resolveu deixar pra lá.
— O café fica por conta da casa – ela disse por fim, entrando novamente na cozinha. Respirou fundo e colocou as mãos na cintura, se questionando que tipo de esquisitice era aquele horário da manhã. Jovens...
Elas, do outro lado, esperavam. Júlia olhou o jornal matinal e aquela qualidade analógica de imagem, com leves zumbidos de fundo e as listras que vez ou outra apareciam.
Só ali que Ana Clara lembrou do seu telefone, e quando o pegou, viu que estava sem área. Reiniciou o aparelho, mas nada, retirou o chip, a mesma coisa. A data também estava errada, como se seu telefone tivesse sido totalmente desconfigurado. Aquele frio na espinha começou a andar por sua costa, naquela sensação inquietante de que tem alguma coisa muito errada ali. Seu telefone era novo, não tinha porquê dar esse problema. Talvez estivesse só com problema na operadora...
Por outro lado, Júlia andava de um lado para o outro, aflita pela fome. Não conseguia pensar antes de comer, e logo chegou o café no balcão: duas xícaras de café com leite, pão com ovo. Júlia comeu voraz enquanto Ana Clara, mesmo com fome, sentia-se levemente enjoada. Dizia a si mesmo que era pelo ato raro estar tomando café da manhã atrelada a noite mal dormida, mas sabia que era o contexto de tudo.
Terminaram de comer, agradeceram e saíram dali.
A cidade era relativamente pequena, e o dia começava a aparecer no alto. O clima era fresco pela vegetação ao redor, tão habitual a Júlia mas completamente estranho a Ana Clara, que mantinha o mesmo ritmo de segurar seu antebraço enquanto se aventuravam a cada passo dado.
Chegaram na parte residencial da cidade, onde casas de um só modelo se acumulavam nas ruas. Algumas com pessoas na frente, enquanto outras saíam para trabalhar. Ana Clara lembrou que a última vez que tinha visto uma casa naquele estilo fora quando sua avó ainda era viva, porque a casa dela era exatamente como a branca murada à esquerda, no qual viram um senhor um senhor careca, de bigode branco, sentado à frente da casa, em uma cadeira de balanço e tomando café enquanto lia o jornal.
Júlia respirou fundo, e olhou para Ana Clara. A situação era esquisita o suficiente para tomar a decisão ia tomar, caminhando até ele, que logo levantou o olhar ao ver elas se aproximando.
— Com licença, senhor, que dia é hoje?
O senhor também estranhou as vestes das garotas, mas não se importou, já que os jovens sempre inventam alguma coisa nova pra incrementar o estilo. Ele mesmo já tinha sido assim.
— Hoje é quinta, minha filha.
Ana Clara a olhou de relance, sabendo o que isso queria dizer. Até onde lembravam, não era quinta, e sim sexta-feira, e um dia se passou desde sexta, então...Tinha que ser sábado.
— Quer dizer...dia mesmo, sem ser da semana.
— Ah, você quer dizer do mês? – ele disse antes de se voltar para o jornal novamente – Catorze de novembro.
Só mais uma pergunta.
— De que ano?
Ele riu e olhou para elas. Não dava mesmo para entender os mais jovens.
— Oitenta e seis, até onde eu saiba. Por quê?
Em um primeiro momento, elas permaneceram imóveis enquanto o senhor voltava à leitura. Júlia e Ana Clara se entreolharam, e ela começou a rir. Não uma risada divertida, mas aquelas que se dá quando se está muito assustada a ponto de se apavorar.
Júlia, por outro lado, respirou fundo, agradeceu com um aceno e voltou a caminhar trazendo Ana Clara consigo, com essa crente de que o senhor só estivesse senil. Era a única explicação possível, mas sua companheira, de olhar sisudo, precisava tirar a dúvida ainda assim.
— Viu o que ele disse, Ju? – Ana Clara já dizia em um tom mais íntimo – É cada uma...
Mas Júlia estava procurando por outra pessoa, até que parou na frente de uma casa onde a mãe se despedia dos filhos que iam para a escola.
— Com licença senhora, que dia é hoje?
— Catorze de novembro, minha filha – ela disse com um sorriso cordial.
— E de que ano?
Seu sorriso mudou de cordial para surpreso. Encarou-as com notável curiosidade, dado o tom da pergunta.
— Oitenta e seis.
Júlia agradeceu e continuou a indagar a quem visse na rua enquanto Ana Clara manteve-se imóvel perante a resposta uníssonas dadas por todos os questionados: quinta-feira, catorze de novembro de mil novecentos e oitenta e seis.
E, enquanto Na Clara entrava em uma espiral de desespero pessoal, Júlia refletia consigo, apoiando a mão no queixo sobre a informação dada.
Digamos que elas estivessem mesmo há trinta e seis anos no passado. Até onde ela sabia, viagem no tempo não existia e se existisse, deveria ter uma máquina que as levassem, e não um clarão que aparece do nada e leva duas pessoas aleatórias que estavam caminhando na rua. Isso era impossível, e mesmo se fosse possível, por que elas? Elas mal se conheciam, e não tinha motivo para estarem em um lugar como aquele.
Quanto mais ela pensava, mais angustiada ficava.
Ana Clara olhava ao redor. Sabia que tudo aquilo era impossível de acontecer e que se parasse para pensar, faria menos sentido ainda, mesmo com tudo ao redor indicando que sim. Era como se todos tivessem enlouquecido, e só elas tivessem sobrado com algum resquício de sanidade, ou como estrangeiras em uma terra estranha demais para a sua concepção. Seu dinheiro não valia ali, seu telefone não funcionava e sua única companhia era uma garota com cara de mau e que anda armada.
Júlia sentou no meio-fio da calçada, pensativa enquanto Ana Clara ficava ainda mais apreensiva. Lembrou que Rodrigo, fã de séries investigativas, falava que quando encontram algo diferente, capturavam para fazer experimentos e entender como era. E elas eram as estranhas dali, e a última coisa que ela queria era que ela e Ana Clara fossem dissecadas para estudo.
E por seus cálculos, seus pais sequer se conheciam. Muito menos os outros, e nem mesmo sua irmã. Mesmo assim, como iria atrás deles se não os conhecia?
Na verdade, nem ela tinha nascido, e se nem ela, muito menos Ana Clara. Mas elas estavam ali, e existiam. Sem dinheiro, lar ou conhecidos, sem poder confiar em ninguém. Não é como se isso fosse novidade para Júlia, que respirou fundo e se voltou para a companheira.
— Ana, escuta...
Mas já a encontrou chorando e tremendo, com as mãos na cabeça.
— O que está acontecendo, Júlia? – sua voz era trêmula e arrastada – Será que a gente morreu?
— Não, ninguém morreu aqui – ela se levantou, segurando Ana Clara pelos ombros – só...é...
Olhou ao redor. Não teria bem o que dizer para acalentar aquela garota quando nem ela sabia o que de fato estava acontecendo.
— Vamos procurar meus pais ou os seus, a gente pega um telefone emprestado, eles têm que nos ajudar, não é? Eu não sei – Ana Clara chorava ainda mais – Isso nem sentido faz. A gente enlouqueceu? Drogaram a gente, com certeza.
— Olhe pra mim, Ana Clara – ela balançou seus ombros, chamando sua atenção – eu sei disso tanto quanto você, mas sei bem que não estamos loucas, tá bom?
— Como você sabe?
Ela não sabia, mas precisava mostrar que sim.
— Isso vai se resolver, tá bom? – ela pressionou as mãos repleta de calos e notoriamente grossas contra os ombros acuados de Ana Clara – Confie em mim, mas pra gente resolver isso, você precisa se acalmar.
Bateu sua roupa, tirando a poeira da noite anterior, e enxugou as lágrimas que desciam do seu rosto vermelho. O tom maternal de Júlia fez com que Ana Clara se sentisse brevemente melhor.
— Vamos, temos muito o que fazer.
E seguiram a caminho de lugar nenhum. Júlia estava tão confusa quanto Ana Clara, mas ela não podia demonstrar, afinal ela precisava se manter firme e passar confiança para aquela garota repleta de medo.
Oitenta e seis. Catorze de novembro. Quinta-feira.
Era o primeiro dia de sobrevivência delas longe de casa.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 15/07/2022
Nossa viajou no tempo.
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