Capitulo 11
Capítulo 11 – A Outra Metade do Amor
Paula
Não bastasse o inferno que estava a minha vida, eu simplesmente não conseguia mais ficar com Yasmin como antes. No começo, ela era capaz de me fazer esquecer de tudo, enquanto eu repousava em seus braços. Com o tempo, as angústias se tornaram tão grandes, que nem mesmo ela, que era melhor do que eu nisso, parecia capaz de se entregar de verdade.
Por mais que eu reafirmasse, alguma coisa no meu olhar não dava à Yasmin a garantia de que eu estava decidida. Eu sentia que ela estava ciente das minhas dúvidas. Eu me odiava por não conseguir ser mais convincente, mas isso estava simplesmente além das minhas forças.
Em casa, o clima era horrível. Depois da demissão, minha mãe entrou em depressão muito rápido. Eu a via por todos os cantos, ainda de camisola mesmo no meio da tarde, chorando baixinho ou com o olhar distante. Além de tudo o que tinha acontecido naquele final de ano, acho que ela se deixou abater por dores antigas, que ela tinha guardado, que na época ela suportou, mas que explodiram, todas, de uma vez só.
A morte do meu pai.
A confirmação da minha homossexualidade.
O fato de que claramente Joaquim era muito mais apaixonado por ela do que ela por ele.
Seu namorado a ajudava de todas as formas, e isso fez com que eu passasse a admirar o “Quincas” um pouco mais. Mas claro que a demissão dela e a minha recusa em aceitar seu presente incrível não seriam superados facilmente.
Para tentar fugir um pouco daquilo tudo, aceitei o convite de Daniela para passar a tarde com ela. Até com a nossa amizade eu estava em falta e queria compensar isso, pelo menos paliativamente.
Por quase uma hora, ficamos trancadas no quarto dela, conversando sobre um garoto com quem ela tinha ficado, e bobagens da televisão. Entretanto, desde que havia chegado, notei que ela tinha algo muito sério pra me dizer, e provavelmente estava tomando coragem enquanto me distraía com trivialidades.
– Paulinha, eu sei que você já está cheia de problemas, mas descobri uma coisa e não posso escondê-la de você.
Fiquei assustada. Pelo tom de Daniela, era mais sério do que eu pensava.
– Você está roxa de saber que eu não confio na Yasmin, nunca confiei.
– Dani, eu já sei o que você vai dizer, mas eu pensei bem, ok? Eu quero ficar com ela... Eu quero arriscar.
– Não, você não sabe o que eu vou dizer. Se soubesse... – ela fez uma pausa longa. – Se você apenas desconfiasse... Seu namoro com ela nunca teria acontecido.
– O quê?
– Eu sinto muito mesmo, Paulinha... Eu daria um pedaço de mim pra não lhe fazer sofrer, mas não posso ficar calada, vendo você ser enganada de maneira tão infantil.
– Do que você está falando?
– A Yasmin e a sua mãe estão do mesmo lado. Desde que você contou para a Magali que gosta de meninas, elas armaram um plano pra lhe fazer desistir disso. Pra decepcionar você.
– Ahn? – senti as paredes do quarto de Daniela se movendo na minha direção, me sufocando.
– Lembra daquela conversa que elas tiveram a sós? Depois que a sua mãe descobriu que o seu namoro com o Nicholas era de fachada?
– Lembro sim... E você não vai me convencer que a Yasmin estava armando alguma coisa, Daniela. É melhor pararmos já com essa conversa.
Ela baixou os olhos e ficou em silêncio. Eu conhecia Daniela muito bem. Acreditava nas palavras dela. Acreditava que ela não estava tentando inventar alguma coisa porque ela sabia que eu já estava sofrendo demais. Não precisava de uma calúnia gratuita para me derrubar ainda mais.
Por saber que ela não iria tão longe, tive de admitir que queria saber o que ela tinha a dizer. Por mais medo que tivesse de ouvir a história até o final...
– Lembra que achamos muito estranho a sua mãe ter aceitado o seu namoro com a Yasmin de uma hora para a outra?
Confirmei com um gesto.
– Era tudo um plano pra você se apaixonar ainda mais, e se decepcionar depois. E, na cabeça doente daquelas duas, você desistiria de ser lésbica.
– Mas que absurdo! A Yasmin nunca faria uma coisa dessas!
– A Yasmin não ama você. Ela fez isso pra retaliar a sua mãe e provar que a filha dela não é hétero. Foi tudo por orgulho, Paula.
– Daniela, desculpe, mas eu não acredito nisso. Ninguém finge tão bem. Eu sei que a Yasmin me ama.
– Então me explica essa insistência dela em fazer você desistir da bolsa de estudos? – revidou Daniela. – Essa teimosia em dizer que vocês não podem namorar a distância, que não vai dar certo?
– Ela me quer por perto, eu entendo isso. Também não sei se daria certo se eu me mudasse. A distância complica tudo.
– Paula, se ela amasse você de verdade, ia ser a primeira a lhe incentivar. Ia fazer de tudo para você aceitar essa bolsa, porque todos sabemos que é a chance da sua vida! Quem ama quer ver a outra pessoa bem.
– Você foi longe demais, Dani. Acusar a minha namorada e a minha mãe de armar uma sujeira dessas não é como ficar comentando displicentemente que não vai com a cara da Yasmin... Pensa bem no que você está fazendo. Eu esperava mais da sua amizade!
Enjoada e tonta, levantei bruscamente. Daniela imediatamente apanhou meu braço e me obrigou a olhar pra ela.
– Peguei a Yasmin conversando ao telefone com alguém. Não sei quem era, mas provavelmente era alguma garota, a julgar pelo charme que ela empregava na voz.
– Eu não acredito, Dani. E agora me solta.
– Eu sinto muito mesmo, Paula. Não estou inventando nada... Mas você deveria ir atrás dessa história. Se for mentira, se for tudo uma loucura da minha cabeça, eu vou ficar muito feliz. Não me importo de estar enlouquecendo, se isso provar que a melhor amiga que eu tenho no mundo não está sendo usada pelas duas pessoas que mais deveriam defendê-la.
Saí da casa dela intempestivamente. Dona Thereza ficou me olhando quando eu bati a porta e nem me despedi. Chamei um táxi porque queria chegar em casa de uma vez. Não suportaria esperar mais.
– Mãe! Mãe! – entrei em casa chamando por ela.
Esperei alguns segundos e subi as escadas.
– Mãe, cadê você!?
– Paula...? – Joaquim deixou o quarto dela, assustado com os meus gritos.
– Minha mãe ta aí? – apontei pra porta.
– Está descansando...
– Ótimo, eu cuido dela agora. Você pode ir.
Ela apareceu na porta em seguida. Tinha o rosto inchado. Claramente havia chorado um bocado enquanto eu estava na casa da Daniela.
– O que está acontecendo, filha?
– Preciso conversar com você – olhei pro Joaquim. – A sós.
– Vou preparar um chá. Para as duas... – disse ele, antes de descer as escadas.
– Paula, o que deu em você?
Não disse nada, apenas entrei no quarto dela, que me seguiu.
– Fecha a porta – pedi, autoritária.
– Pronto – ela se virou na minha direção.
– Eu vou perguntar uma vez só. E se você me ama de verdade, mãe, se você for capaz de honrar esse laço que temos, você vai me responder com sinceridade e não vai tentar me enrolar.
Ela arregalou os olhos e finalmente teve noção do quão séria seria aquela conversa.
– Diga.
– Você foi capaz de transformar a minha sexualidade num acordo besta entre Yasmin e você?
O olhar dela vacilou e eu senti meu coração parar de bater. Até aquele maldito segundo eu não tinha permitido que a possibilidade pudesse existir na minha mente. Claro que eu tinha me recusado a isso, porque doía demais.
– Filha...
– Sim ou não? – exigi, com a voz presa.
– Paula, o que aconteceu foi que...
– Responda sim ou não. Não quero ouvir explicações.
Ela apertou os olhos e deixou seus braços antes cruzados penderem ao longo do corpo.
– Eu sinto muito, minha filha.
Olhei pra ela, e através da densa cortina de lágrimas, pude ver seu semblante arrependido.
– Eu te odeio!
Quando Joaquim tentou me segurar, nos últimos degraus da escada, não medi minha força e o empurrei, derrubando o chá que ele fora preparar. Não me detive em pedir desculpas. Não enxergava nem ouvia nada quando ganhei a rua. Precisava de ar. Precisava fugir dali. Tinha vontade de arrancar minha pele, abandonar o meu corpo, simplesmente explodir e morrer.
– x –
Yasmin
Não me surpreendi quando Paula entrou na minha casa. Seu rosto deformado pelo ódio me fez vacilar por um segundo, mas assim que lembrei da minha decisão, encontrei ali alguma força para seguir interpretando.
– Meu amor, o que aconteceu?
– Como você tem coragem de me chamar de “meu amor”?
Fingi não entender nada. Pelo menos a preocupação era genuína. Paula parecia muito mais arrasada do que eu conseguira imaginar que ela ficaria. Foi muito mais difícil de suportar do que eu havia calculado.
– A sua sócia acabou de me confirmar tudo!
– Sócia?
Ela riu com escárnio.
– Todo esse tempo fingindo que odiava a minha mãe... E no fim, vocês são bem amiguinhas, não?
Encarei o chão.
– Eu teria desistido de tudo por você – ela disse, enquanto chorava. – Eu te amava de verdade, Yasmin. Mas é claro que isso não faz diferença, não é? Foi só um joguinho entre vocês...
Continuei em silêncio, sentindo meu coração sangrar.
– Se você tivesse me dado uma chance, eu teria colocado o mundo aos seus pés, Yasmin!
Tive de respirar profundamente várias vezes até conseguir falar sem vacilar:
– Eu não poderia deixar que a sua mãe contasse a verdade para os meus pais. Você lembra o quanto eu temia isso, não?
– Você foi longe demais com o seu egoísmo. Você é doente! Ficou me torturando esse tempo todo...
– Eu me apaixonei por você! Eu ia lhe contar sobre o acordo, juro que ia.
– Não me venha com essa conversa. A sua voz me dá náuseas. Estava mentindo pra mim desde o começo!
– Não! Confesso que o acordo existiu, mas... Paula, eu te amo! Eu te amo de verdade!
Depois de muito refletir, eu havia concluído que fingir frieza extrema poderia fazer com que Paula desconfiasse de alguma coisa. Dizer que tinha me apaixonado por ela durante a execução do plano disfarçaria que eu a amava desde sempre. Disfarçaria a dor que eu sentia, e que era incapaz de esconder.
– Eu sinto muito, mas você descobriu isso tarde demais. Agora quem não ama mais sou eu – disse ela, olhando nos meus olhos.
Todas as dúvidas que eu tinha visto com tanta clareza nos olhos dela nas últimas semanas tinham desaparecido. Paula estava mais segura do que nunca.
O plano havia dado certo. O que significava que eu a tinha perdido.
Depois que ela bateu a porta, saindo da minha casa pela última vez, meus pais se aproximaram. Embora ciente da presença deles ali perto, sabia que eles não interviriam na discussão, por isso nem procurei levar Paula para outro lugar.
– Filha, o que foi que você fez? – minha mãe perguntou, antes de me abraçar.
Fiquei olhando para a porta fechada. Meu pai me deu um beijo no topo da cabeça e afagou meus ombros.
– Se eu era mesmo a única amarra, agora ela vai pra Califórnia – disse eu.
Não permiti que a conversa se estendesse, e passei o resto da semana trancada no meu quarto.
– x –
Paula
Quando sentei na poltrona do avião já não sabia mais se era capaz de sentir alguma coisa. Estudar cinema não era mais um sonho, era apenas um meio de esquecer. Minha mãe se sentou ao meu lado, com um sorriso encorajador. Eu ainda estava magoada com ela, mas precisava da sua ajuda.
Quando o avião começou a taxiar, não pude conter as lágrimas. Abracei com força o casaco que tinha nas mãos.
– Vai ficar tudo bem – disse minha mãe, esticando o braço para tocar meu rosto.
Afastei-me do carinho dela.
– Paula, tanto quanto você, achei o acordo proposto por Yasmin ridículo. E eu só aceitei porque conheço muito bem a filha que tenho. Nunca acreditei nele de verdade. E sabia que você precisava viver isso, realizar esse namoro, ou ficaria para sempre pensando que seria algo bom.
Solucei.
– Nada me machuca mais do que a dor da minha filha única. Mas vai passar.
Olhei para ela, contendo o choro por um instante.
– Não, essa dor que eu estou sentindo não vai passar nunca.
Enfim deixei que ela acariciasse meu queixo.
– Vamos deixar o tempo correr, hum? A partir de agora, começa uma nova vida para você, tudo vai ser diferente, e melhor!
O avião decolou e fiquei olhando pela janela. Abaixo de mim, ficava enterrado o passado.
– x –
Yasmin
Fiquei escondida entre a multidão enquanto olhava para a sala de embarque. Meus pais foram se despedir de Paula, mas exigi deles que não comentassem nada e também que não revelassem que eu fora junto.
Depois da decolagem, voltar para o estacionamento foi como atravessar um portal para outra dimensão. Uma outra realidade, que era exatamente igual a anterior, mas sem Paula na minha vida, o que tornava absolutamente tudo diferente.
Daniela ainda olhava para a pista do aeroporto, respeitando meu silêncio. Depois de algum tempo, inclinei minha cabeça sobre o ombro dela. Não importava mais que nunca tivéssemos engolido a presença uma da outra. A partir daquele dia, partilhávamos um segredo eterno, e isso nos unia.
– Ainda não sei se fiz a coisa certa... – disse a garota, emocionada pela despedida da melhor amiga.
Suspirei tristemente.
– Nem eu.
Nossos olhos se encontraram por um segundo, enquanto ela se afastava depois de acenar para os meus pais. A dúvida queimava meu peito e me impedia de respirar.
– Eu estava enganada sobre você – disse Daniela.
A frase me pegou de surpresa.
– Não sei se outra pessoa teria conseguido deixar ela ir – Daniela completou. – Até mais, Ruiva... Me liga se precisar de alguma coisa.
Acenei afirmativamente e parti. No carro, nem a presença dos meus pais foi capaz de impedir que eu chorasse aos soluços.
– Fica calma, filha. Vai passar... – disse minha mãe.
– Por que é que dói tanto? Por que o mundo tem de ser tão injusto?
– Você vai crescer muito com isso, Yasmin – disse meu pai, sem tirar os olhos do trânsito. – Temos muito orgulho de você. Fez a coisa certa, não tenha a menor dúvida. Quer dizer... Teria sido mais fácil se você a tivesse encorajado desde o começo...
– Eu não conseguia pensar em deixá-la ir... Nem consigo acreditar que fiz isso.
– Porque você a ama de verdade. E você só soube disso realmente, quando foi capaz de abrir mão dela.
– Sabe, filha... – meu pai chamou minha atenção com o seu tom de contador de histórias. – O amor tem duas metades. Uma delas é a mais óbvia, ela faz com que você queira estar perto da pessoa amada a todo custo. Ela faz com que você lute, conquiste, mantenha.
– E a outra?
– A outra metade do amor é aquela altruísta. Aquela que deseja o bem da pessoa amada acima da sua própria felicidade, acima da consumação desse amor. Ela faz com que você consiga ficar sem a Paula, apesar de querê-la pra si, por saber que isso é o melhor pra ela.
Não queria ter decepcionado a Paula. Por muito tempo tive pesadelos com o olhar transtornado dela, no dia em que veio até a minha casa confirmar a história do meu acordo com sua mãe.
Se por amor não conseguimos resolver aquela dúvida, só havia no mundo uma força tão poderosa quanto o que sentíamos uma pela outra. E era o ódio.
Não fosse a decepção, quem sabe Paula nunca tivesse partido, e estaríamos no mesmo impasse. Ela teria abandonado seu maior sonho e eu me sentiria eternamente culpada.
As pessoas que me amavam aprenderam a não tocar naquele assunto, que de qualquer modo sempre me machucava. No silêncio da minha angústia solitária, eu esperei por uma ligação que nunca veio. Nenhuma carta, nenhum e-mail. Do meu jeito, eu soube que Paula tinha conseguido seguir em frente...
...e que eu deveria fazer o mesmo.
Fim do capítulo
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