Capitulo 10
Capítulo 10 – Discórdia
Yasmin
Não contive minha ansiedade e fui na casa de Paula contar pessoalmente a novidade. Ela avisou que sua mãe aceitara que eu estivesse presente no jantar, mas pude notar pela voz da minha namorada que Dona Magali o fizera a muito contragosto.
Paula queria saber de todos os detalhes, e eu tive de fazer um esforço tremendo para não adiantar tudo.
Depois da refeição, ficamos na sala e esperei até que Dona Magali voltasse da cozinha para começar a contar. Ela não se sentou conosco, mas ficava passando de um lado para o outro, como se nos vigiasse.
– Bem, tudo começou quando meus pais começaram a planejar uma viagem para Roma – introduzi.
– Ahn? – indagou Paula.
Ri por um segundo. E então, com calma, contei sobre a conversa com meus pais, observando o sorriso de Paula ficar maior a cada segundo. Como eu, ela percebeu que Dona Magali apenas fingia não ter ouvido tudo.
– E foi isso, amor – encerrei, com um sorriso enorme.
– Nossa! – Paula me abraçou. – Meu amor, isso é maravilhoso!
– Não é? – sorri mais uma vez e roubei um beijo tímido de Paula. – Ops, desculpe, Dona Magali, não vi a senhora aí.
Ela me fuzilava com o olhar.
– Mãe, você ouviu isso? Agora os pais da Ya também sabem, não é perfeito?
Calmamente ela conferiu o esmalte das unhas.
– Ô se é! – disse, olhando para o nada. – Fico feliz que seus pais não sejam mais enganados, Yasmin.
– Ah, é. Eu não me sentia nada bem com a situação – disse.
Mas o que queria ter dito, de verdade, era: “agora você não pode mais me chantagear, vaca”.
Através do seu olhar, percebi que ela pensava o mesmo que eu.
– Vou deixar as namoradinhas em paz – ela se levantou. – Estou com uma dorzinha de cabeça, vou deitar pra ver se passa.
– Ta tudo bem, mãe? – como sempre, Paula se preocupou.
– Sim, uma aspirina deve resolver. Boa noite.
– Boa noite, Dona Magali. Melhoras...
Ela não agradeceu nem disse mais nada. Paula me contou que mais um pai havia ligado, dessa vez para a casa delas, por conta do incidente no ginásio.
Nas semanas seguintes fomos assombradas por aquilo, sempre esperando que o assunto enfim morresse.
Luisa, a professora de teatro da Paula, era quem nos informava sobre os passos do Conselho Escolar, que já estava sabendo do descontentamento de um grupo de pais... Um grupo muito idiota, mas que parecia numeroso e barulhento.
Mais do que nunca, notei Paula evitando qualquer tipo de proximidade entre nós na escola e, depois de alguns dias, também fora dela, temendo que algum daqueles pais insatisfeitos estivesse a espreita.
Com a ciência de que meus pais nada tinham contra o nosso namoro, a saída que encontrei foi levar Paula sempre para a minha casa, mas quando um novo período de provas na escola chegou, ficou cada vez mais difícil namorar.
Eu sabia que todos aqueles problemas faziam parte do nosso amadurecimento, mas intimamente, sofria. Queria ter Paula nos meus braços cada segundo. Fazia planos! Planos que embora ela partilhasse, eram ainda tão somente sonhos de duas adolescentes apaixonadas.
– x –
Paula
Mais do que qualquer outra idade, acho que todo mundo sonha em fazer dezoito anos. Tem um significado especial que transcende o fato de nos tornamos maiores de idade.
Passei meu aniversário dividida entre Yasmin e minha mãe. Da minha namorada, além de milhares de beijos e declarações, ganhei uma carta linda e um buquê de rosas. Dona Magali fez suspense sobre o seu presente e alegou que só poderia entregá-lo duas semanas depois da data certa.
Yasmin e eu fizemos uma porção de teorias sobre o que poderia ser! Mas nada do que eu pudesse ter imaginado ou sonhado se comparava ao que minha mãe tinha conseguido.
– Paula? – ela chamou, notando a porta do meu quarto entreaberta.
– Entra, mãe.
– Estudando?
– Argh. Física – fiz cara feia.
Ela se sentou na minha cama e assim que fechei meu livro, sentei ao lado dela.
– Estou te devendo um presente, não?
Só então notei que havia um envelope pardo nas mãos dela.
– Aaam... Sim – sorri, ansiosa.
Minha mãe se limitou a me entregar o envelope e me observar enquanto eu lia os documentos – em inglês.
– Juro que pensei em te dar um carro – comentou ela.
– Mãe... – eu não conseguia acreditar no que estava lendo.
– A partir do momento que descobri que estava esperando você, Paula, eu jurei pra mim mesma que viveria para realizar os seus sonhos.
Fechei os olhos, atônita. Nada do que eu dissesse faria jus ao meu estado de espírito. Na verdade eu queria sair gritando e pulando pelo quarto, mas não conseguia me mexer!
– Uma bolsa de estudos!?
– Uhum.
– Na Califórnia!?
– Isso mesmo – ela sorriu, vendo que ainda estava em choque – Tenho certeza de que você vai ser uma grande cineasta, filha. Melhor começar de cima, né?
– Caraca!
Levei as mãos à cabeça, incrédula.
– Feliz aniversário. Atrasado.
Abracei-a com força repetindo “obrigada” um milhão de vezes.
– Como... Como você conseguiu?
– Ah, um contato aqui e ali. Pelo menos serviu de alguma coisa tantos congressos de educação que fazem a gente ir... – ela respondeu, orgulhosa por ver o meu sorriso sem tamanho.
– Ca-ra-ca! – repeti.
– Paula, olha o linguajar.
– Foda-se! – sorri. – Eu vou pra Califórnia! Eu vou pra Califórnia! Caaaara, eu vou pra Califórnia!!!!
– Uhum – disse Dona Magali depois que a larguei, pois rodopiara com ela no ar.
Sentei na cama, desfazendo o sorriso.
– Eu não vou pra Califórnia.
– Como assim, Paula?
– Mãe, como é que eu vou me virar lá? – perguntei, apavorada. – Tipo, eu vou precisar de um lugar pra morar, fazer minhas próprias compras... Eu não sei fazer nada disso!
– Ninguém nasce sabendo, Paulinha. E quanto a um lugar para morar, eu vou com você, te ajudo, e fico o tempo que você precisar.
– Sério!?
– Lógico! Ou você acha que eu pretendia deixar a minha filhota assim tão solta no mundo, hum? Magali Vasconcelos tirando os olhos da cria? Nunca!
Acabei rindo dela. Queria dizer o quanto estava feliz, mas não encontrava palavras. Afinal de contas ela realmente me conhecia muito bem. Aquilo era o melhor presente que alguém poderia ter me dado. Era o meu maior sonho. E eu estava perto de realizar, enfim.
Mas enquanto comemorávamos, comecei a pensar em Yasmin. Primeiro, na euforia de ligar pra ela e contar a novidade. Depois, só depois, foi que me dei conta do que aquilo significava.
Distância.
Eu já conhecia bastante aquela ruivinha. Ela ficaria exultante com a notícia, porque sabia ser esse o meu maior sonho. Mas no fundo sofreria como eu estava sofrendo ali, na dúvida entre contar de uma vez ou não.
Sobre todas as coisas, decepcionar Yasmin estava fora dos meus planos. Ela me fazia feliz como eu nem imaginava que poderia ser. Era a mulher da minha vida.
Depois que minha mãe deixou o quarto, fiquei pensando em tudo aquilo. Pesando os prós e os contras. Yasmin era a mulher dos meus sonhos. Estudar fora era o sonho da minha carreira.
E por mais que eu confiasse em Yasmin, não acreditava que pudesse ter os dois. Seria pelo menos meia década vivendo em um lugar no qual minha namorada só poderia me visitar uma ou duas vezes por ano. E olhe lá!
Fiquei pensando em maneiras de juntar dinheiro para poder voltar ao Brasil em todos os feriados, mas certamente minha mãe não teria como bancar isso. Nem os pais de Yasmin.
Nem eu, porque nesse caso teria de trabalhar, e se trabalhasse, não teria tempo para viajar. Yasmin idem.
E então foi batendo, antecipadamente, uma saudade de tudo e todos que em busca do meu sonho eu acabaria deixando para trás. Minha mãe ficaria sozinha naquela casa enorme. Talvez finalmente fosse morar com o Quincas...
Enterrei a cabeça no travesseiro, angustiada, e me assustei ao ouvir o celular tocando.
Yasmin percebeu de cara que eu não estava bem, mas consegui me livrar de contar tudo por telefone mesmo. Prometi uma boa explicação no dia seguinte e desliguei, começando a chorar imediatamente depois.
– x –
Yasmin
O que eu senti quando Paula me contou que havia conseguido uma bolsa para estudar nos Estados Unidos? Senti a coisa mais estranha do mundo. Fiquei feliz porque sabia que era o sonho dela, mas imediatamente lembrei do que aquilo significava: que iríamos nos separar.
Eu tinha uma inveja sadia por minha namorada saber tão bem o que queria da sua vida, ter seus sonhos tão bem delineados. E eu sabia que Cinema era o maior deles, e sofria porque, como ela, estava ciente que aquilo era, no mínimo, improvável.
Mas lá estava ela, sentada a minha frente num banco do pátio do colégio, dando-me a notícia.
Observei seu rosto, Paula estava tensa. A abracei com força, muita força. E então, como uma bala perdida, a realidade me abateu de surpresa.
– Você vai morar em outro país – disse eu.
Paula fugiu do nosso olhar.
– Passei a noite toda tentando encontrar uma saída. Sei que vai ser muito difícil nos encontrarmos.
Só então percebi que ela tinha olheiras profundas.
– Vai ser meio impossível... – disse o óbvio.
– Mas sei que vamos encontrar um jeito, amor – ela falou. – Eu não quero ficar longe de você.
Esfreguei meu rosto com as mãos, confusa. Eu não queria, mas sabia que tinha de fazer uma pergunta simples. E fui em frente:
– E se você fizesse a faculdade aqui e depois uma especialização na Califórnia? Até lá eu dou um jeito de poder ir com você...
– Aaam...
O silêncio de Paula foi a resposta mais exata que eu poderia ter esperado. E também a pior delas.
Que espécie de mundo era aquele no qual a minha namorada tinha de escolher entre o nosso amor e a sua carreira, a realização de um grande sonho?
Eu andava tão feliz por conta das descobertas a respeito dos meus pais, porque o namoro andava bem, estávamos crescendo juntas... Paula e eu. Mas as coisas tinham saído de controle.
– Bem, sejamos práticas, né? Uma namorada você pode encontrar em qualquer lugar, quando quiser. Uma bolsa de estudos dessa... Não é bem assim – disse, escondendo a minha dor em pronunciar aquelas palavras.
– Yasmin, não fale desse jeito. Não precisamos terminar só por causa da distância.
– E você acha que daria certo? Seja sincera, Paula, você acha que merecemos passar por isso? A gente nem agüenta ficar uma noite separadas. Que dirá meses! Quem sabe quase um ano. Cinco anos vivendo de migalhas.
Enquanto as duas pensavam sobre aquilo, o sinal tocou, e demos o assunto por encerrado, naquele momento. Não conseguia deixar de me sentir mal, mas também me sentia traída.
Nos dias que se seguiram, combinamos de não tocar mais no assunto, enquanto ela continuava pensando no que fazer. Quando conseguíamos falar de outra coisa, tudo ficava bem. Mas vez ou outra, notava Paula distante. Normalmente depois que fazíamos amor.
Não quis forçá-la a nada, sabia que ela estava em uma encruzilhada tortuosa demais para uma garota da sua idade.
Quem saberia o que fazer numa hora dessas?
Agüentaríamos a distância? Eu não sabia dizer. Tinha medo que Paula ficasse tão abalada a ponto de terminar comigo. Mesmo que ela me deixasse de fora disso, para não precisarmos discutir o assunto, eu sabia que ela estava acertando todos os detalhes para a partida.
Quanto a mim, naquele final de ano, fiz inscrição em alguns vestibulares, mas não estava estudando realmente. Não conseguia.
– Filha?
Olhei para a porta do meu quarto e vi meus pais, juntos, olhando pra mim.
– Sim?
– Podemos conversar?
Eles entraram, ambos se sentando sobre a minha cama, muito sérios. Eu me acomodei na cadeira que ficava diante da escrivaninha.
– Notamos que alguma coisa não anda bem contigo...
Apenas baixei os olhos.
– Nós dois já passamos por isso. Ainda que faça bastante tempo – meu pai riu – lembramos de como é. Se você está indecisa, não precisa escolher uma carreira agora.
– Nossa situação está bem melhor agora, filha – comentou minha mãe. – Podemos pagar um cursinho pra você, e com isso você ganha um ano a mais para pensar.
– Eu já vou fazer dezenove anos, mãe. Não quero depender de vocês pra sempre. Quanto a isso, acho que já me decidi. Depois que as aulas acabarem, vou procurar um emprego.
– Filha, não precisa fazer isso.
– Mas eu quero – disse com firmeza.
– Vamos respeitar qualquer decisão que você tomar, Yasmin, e ficar do seu lado.
Sorri timidamente para os dois. Como poderia ter pais tão perfeitos? Senti uma vontade enorme de abraçá-los com força, de dizer o quanto os amava e era grata por ter os melhores pais do mundo, mas não consegui.
– E a Paula? – minha mãe arriscou.
Mordi os lábios, fugindo do olhar deles.
– A Paula ganhou uma bolsa de estudos. Vai pra a Califórnia.
– Estados Unidos?
– Pois é.
– Vocês brigaram? – meu pai adivinhou, pela forma como eu comentei o assunto.
– Mais ou menos. Ela acha que é possível namorar a um milhão de quilômetros de distância... – rolei os olhos.
– E é – disse mamãe.
Balancei a cabeça negativamente, ainda mais chateada.
– Ela vai para um lugar completamente novo, vai conhecer uma porção de gente, vai estudar como nunca... Não vai levar nem uma semana para me esquecer aqui.
– É disso que você está com medo? – perguntou papai.
– Ah, e era para estar numa boa depois disso? É tudo culpa daquela... – medi as palavras. – Da mãe dela. Foi ela quem arranjou a bolsa.
– A Magali nunca aceitou vocês de verdade, não é?
Confirmei com um gesto. E num impulso, contei sobre a chantagem dela, e o nosso acordo.
– Achei que estava poupando vocês... E vocês sabiam o tempo todo. Eu nem precisava ter caído na armadilha da diretora... – lamentei.
– Filha, isso é muito grave!
– Eu sei.
– Sabe por que isso aconteceu? – perguntou papai.
– Por quê?
– Porque você não confiou que o nosso amor por você é incondicional. Talvez tenhamos parte da culpa nisso. Poderíamos ter comentado que sabíamos muito antes. De qualquer forma, o que está feito, está feito.
– É – disse qualquer coisa para não ficar em silêncio.
– Filha, você vai repetir o erro se não confiar no amor da Paula.
– São coisas diferentes – argumentei.
– Amor é uma coisa só. Até pode se manifestar de maneiras diferentes, mas é o mesmo sentimento.
Fiquei pensando sobre aquilo. Enquanto isso, meus pais me encaravam com carinho, percebendo o quanto eu estava sufocada.
– Que merd*, estava tudo tão bem antes dessa maldita bolsa de estudos!
– É o sonho profissional da mulher que você ama, filha. Não o chame de maldito...
– Mas isso vai nos separar!
– Só se você quiser.
– Mãe, pai, eu já pensei em tudo... Não tem como...
– Então você prefere que ela abra mão de um sonho? Você vai aguantar a pressão que existe nisso, Yasmin? Acha que vocês duas vão conseguir esquecer isso uma semana depois?
– Eu não sei! Não quero parecer egoísta, mas eu tenho certeza que posso fazer a Paula muito feliz... Mais feliz que qualquer carreira, que qualquer faculdade, que qualquer coisa!
– Essa é uma escolha dela e não sua.
– Eu não posso abandoná-la!
A resposta dos dois veio em uníssono:
– Você não pode prendê-la.
Baixei a cabeça, com uma imensa vontade de chorar. Pedi aos meus pais que me deixassem sozinha, e pelo resto da noite fiquei pensando em suas palavras.
No dia em que Paula e eu comemoramos cinco meses de namoro, sem que eu esperasse, veio a decisão:
– Ya, precisamos conversar – Paula me chamou assim que o sinal do intervalo tocou.
– Fala.
– Eu... Eu quero que você entenda que, aconteça o que acontecer, eu amo você.
– Eu sei, amor – contive meu impulso de tocar seu rosto, pois estávamos no meio do pátio.
– Quero que saiba que a decisão que eu tomei não me torna uma pessoa covarde.
– Eu jamais pensaria isso de você – disse, angustiada.
– A Califórnia é um grande sonho e eu gostaria muito de estudar lá. Muito mesmo.
Fechei os olhos instintivamente.
– Mas não posso ir pra lá se o meu coração está aqui.
As lágrimas imediatamente molharam o meu rosto. Talvez apenas naquele momento eu tive noção do quanto o medo de perder Paula me machucava.
Abracei-a com força, e mesmo sabendo que não poderia, que não deveria, que aquilo definitivamente extrapolava todas as regras da escola, beijei seus lábios, com todo o meu amor.
E Paula correspondeu, enlaçando o meu pescoço. Pude ouvir seu coração batendo rápido e forte. Vivo. E aliviado com a dúvida que se fora.
Abri meus olhos, toquei seu rosto, afaguei sua nuca. E quando estava prestes a dizer o que sentia, a frase sumiu, morreu na garganta.
Parado quase ao nosso lado estava um homem que eu já vira pelo colégio algumas vezes. Não sabia o seu nome, mas conhecia o seu cargo: era o Presidente do Conselho mantenedor da escola.
– x –
Paula
Entrei em casa logo depois de minha mãe. Ela fechou a porta e caminhou com dificuldades até o sofá. Como eu, ou pior do que eu, deveria se sentir tonta. Tinha sido um dia muito duro para nós duas, porém uma parte de mim estava feliz. Fazia muito tempo que eu não me sentia tão próxima de Dona Magali.
– Quer que eu apanhe alguma coisa? – ofereci.
Ela fez um gesto negativo, suspirando longamente.
– Considerando a pior alternativa, já consigo ver um lado bom no que aconteceu – disse ela, forçando um sorriso. – Aposentada, terei mais tempo para cuidar da sua mudança.
Senti meu coração apertado e fui incapaz de encarar minha mãe. Ela tinha acabado de ser demitida do cargo de diretora da escola, depois de uma discussão horrível com o Conselho. Eu não pude estar presente em tudo, mas Luisa contou alguns detalhes, rapidamente.
Yasmin e eu só não fomos expulsas do colégio porque estávamos quase nos formando, mas cada uma pegou uma semana de suspensão.
Naquele momento, eu só pensava em procurar um bom advogado e processar o Conselho, mas como sabiamente disse minha mãe, só causaria mais escândalos. Ela já tinha acumulado o tempo de serviço necessário para se aposentar e tudo foi arranjado de modo que ela não saísse tão lesada daquilo, mas fora uma despedida bem ruim para alguém que passara a vida toda se dedicando àquele trabalho.
Minha consciência doía mais que a minha cabeça, e para isso, uma aspirina não resolveria nada.
– Afinal de contas, depois de todos os meus avisos e pedidos, o que deu em vocês duas? – ela perguntou.
O motivo, logicamente, tinha sido o beijo que minha namorada e eu trocamos no meio do pátio.
– Foi um descuido imperdoável, eu sei – baixei a cabeça.
– Ah, eu estou tão cansada dos seus descuidos, filha...
Apertei os olhos, começando a chorar. Mamãe estava certa em muitas coisas, e uma delas era que o mundo ainda não estava preparado para encarar o meu amor por Yasmin como algo natural. Como toda adolescente, até ali, eu considerava os avisos de minha mãe inoportunos e chatos.
Pagamos um preço muito alto por isso.
– Mãe, eu ainda preciso contar mais uma coisa – ela me olhou, aflita. – Vai doer... – avisei.
O silêncio dela foi uma espécie de consentimento para que eu fosse em frente:
– Eu jamais imaginei receber um presente como o que você me deu. Jamais... – repeti. – Nunca, nem que eu viva duzentos anos, eu vou esquecer disso.
Ela fez um gesto com a mão, impedindo que eu continuasse.
– E agora você vai dizer que não quer ir para Califórnia para não se separar da Yasmin.
Arregalei os olhos e não disse nada. A expressão dela, ao contrário do que eu esperava, não estava mais arrasada do que antes.
– Paula... – suspirou. – Eu entendo você. Na sua idade o amor é uma coisa completamente nova e parece tão forte... Parece que cada dia é o último e que você nunca mais vai viver as coisas que vive agora.
Era exatamente o que eu sentia.
– Todo mundo passa por isso – ela completou.
– Mas com a Yasmin é-
– E todo mundo pensa que é diferente dos outros – ela adivinhou o que eu iria dizer. – Todo mundo pensa que encontrou o grande amor da sua vida no primeiro namoro.
Olhei pra ela, encarando seus olhos tristes.
– Com você e o papai foi assim, lembra? Pode ser genético... – usei palavras dela.
Ela negou, balançando a cabeça.
– Estive esse tempo todo tentando proteger você, Paula. Ainda que eu saiba que é impossível impedir que você sofra, como era impossível evitar que você caísse da bicicleta quando era uma criança, eu fico tentando... Eu faço tudo o que posso.
– Eu sei, mãe. E eu a amo muito por isso – confessei.
Ela se emocionou, claramente, mas continuou falando:
– Já aprendi que proibir você de fazer algo não dá certo. É natural na sua idade tomar os pés pelas mãos, mesmo, então... – suspirou de novo. – Mas eu não conseguiria mais me olhar no espelho se não lhe dissesse umas coisas, filha.
Sentei na outra poltrona, sem deixar de encará-la.
– Abrir mão de um plano que é tão caro pra você, por conta de outra pessoa, é muito perigoso.
– Mãe, eu já disse que eu amo demais a Yasmin... Ela não é simplesmente “outra pessoa” pra mim.
– Eu sei... Mas mesmo assim, Paula. Pense no futuro. Pense em quantas vezes você vai se perguntar como teria sido, se fizesse uma escolha diferente... Você pode se arrepender e não vai ter como voltar no tempo.
– Eu pensei nisso antes de escolher – disse, corajosa. – Pensei inclusive na sua reação. Sei que está decepcionada, e me sinto muito mal por isso, porque sei que não foi fácil me dar esse presente. Doeu demais fechar essa porta, mãe. Mas se mesmo assim eu escolhi ficar, é porque estou certa disso. É porque é exatamente isso que eu quero, e terei de saber lidar com as conseqüências, sejam elas quais forem.
– Você vai jogar isso na cara da Yasmin todas as vezes que vocês brigarem.
Abri a boca, assustada, mas não disse nada.
– E não pense que uma relação pode durar sem pequenas brigas. Não estou nem falando do que eu acho óbvio, que vocês vão terminar um dia...
Protestei, mas ela me cortou:
– Mesmo que fiquem juntas pra sempre, filha... Todo casal precisa de crises para evoluir. E quando você se questionar sobre ela, sobre isso que você chama de amor, vai lembrar que deixou seu maior sonho pra trás, por conta de uma garota que inevitavelmente vai lhe magoar algum dia. Por mais que você guarde isso, um dia essa mágoa explodirá. Não gosto de defender a Yasmin, mas vai ser muito duro para ela ser culpada de uma coisa dessas.
– Eu nunca vou culpá-la.
– Não mesmo? Então me diga qual é a principal razão de você não querer viajar?
Não respondi. Não vi necessidade.
– Foi uma escolha minha – disse, depois de muito tempo.
– Só quero que pense nessas coisas, filha. Estou muito cansada, preciso deitar...
Fui até ela e lhe dei um beijo na testa. Choramos baixinho por algum tempo, até ela finalmente se levantar e subir para o seu quarto. Eu fiquei na sala, zapeando os canais da televisão, sem achar qualquer coisa interessante. Olhei para a foto do meu pai, que decorava um dos móveis, e num rompante de insanidade, o odiei por ter partido, por não ter sobrevivido ao acidente, por não estar mais ao nosso lado, por ter abandonado nós duas.
– x –
Yasmin
Depois da demissão de Dona Magali, meus pais compraram a nossa briga com o Conselho Escolar. Com ameaças de todo tipo, que eu sabia que eles levariam adiante se fosse necessário, conseguiram revogar a minha suspensão de uma semana, mas mesmo assim, não fui ao colégio.
Paula e eu ficamos três longos dias sem nos ver, e ainda que ela tivesse tentado me esconder os detalhes, eu sabia que a ex-diretora não estava nada bem. Sabia que parte da culpa era minha, mas isso não me fez odiá-la menos.
A conversa séria que tive com meus pais sobre a bolsa de estudos da minha namorada ficou martelando meus pensamentos por muito tempo. Apesar da decisão de Paula de não se mudar para os Estados Unidos, o que fez com que aparentemente o assunto morresse pra ela, eu ainda sentia a presença daquela ameaça afetando a nossa relação.
Joana fez jus ao seu “cargo” de minha confidente e agüentou muitas tardes e noites de conversa infrutífera sobre aquilo.
– Ruivinha, não estamos fazendo nenhum progresso... Nem você acredita que a Paula está mesmo decidida a ficar. E não venha me dizer que acha que a tristeza dela é por causa da mãe...
– Eu simplesmente não sei o que fazer!
– Não sabe mesmo?
– Jô, eu já disse a ela pra pensar melhor, e ela não quis.
– Ah, Yasmin! Conheço você. Deve ter escolhido muito bem o momento de pedir isso. Um momento em que a Paula não diria outra coisa que não isso.
Fiquei em silêncio, admitindo minha culpa. Joana foi paciente e aguardou do outro lado da linha até que eu voltasse a falar.
– Parece que mesmo que ela não tenha aceitado, essa bolsa de estudos nos separou. Não está mais sendo como era...
– Claro que não. As duas estão cheias de dúvidas!
– Ta bom, Jô, já que você é uma expert em relacionamentos, diga o que eu devo fazer.
– Longe de mim ser uma especialista... E, bem, nem quero ser. Você sabe que vou morrer solteira, mas...
Ri dela.
– Você está esquecendo de um ponto bem simples, ruivinha – ela continuou. – E se estivessem em papéis trocados?
– Como assim?
– Se você tivesse a chance da sua vida... Sei lá, um mega curso de alguma coisa que você gosta, em algum lugar incrível, com um super fodão da área...
– Hum...
– E tivesse de decidir entre aceitar, e partir, ou ficar aqui com a Paula – completou ela.
– É claro que eu iria ficar – disse sem nem pensar.
– Ok, não vou discutir essa parte. Mas pense na Paula... Se os papéis fossem invertidos, o que você esperaria que a sua namorada dissesse?
– Que me ama, oras! Queria que ela pedisse pra eu ficar com ela, pra lutar pelo nosso amor.
– Ah, ta bom, ruivinha... – o tom dela era de pouco caso. – Estou encerrando nossa conversa, senhorita cabeça dura.
– Hei, Jô, espera!
– Yasmin, eu não vou ficar pendurada nesse telefone discutindo com uma porta.
– Eu estou falando sério, poxa!
– Mesmo? Desculpa, mas eu não consigo acreditar. Você nunca foi egoísta a esse ponto.
– O que você chama de egoísmo, eu chamo de amor.
– O que você chama de amor, eu chamo de cegueira – devolveu ela. – Quem ama quer o melhor para a outra pessoa.
– Eu vou fazê-la muito feliz, Jô. Eu sei disso!
Ela suspirou longamente.
– Ya... Eu lhe conheço muito bem, não é?
– Sim.
– Você consegue acreditar quando eu digo que você é uma garota incrível, de verdade?
– Sim... – admiti, sem jeito.
– Não é nada contra você... Mas para qualquer ser humano, é muita pretensão achar que sua presença basta para satisfazer completamente alguém. Não duvido que a Paula lhe corresponda plenamente, mas isso não é só o que importa.
Fiquei algum tempo pensando.
– Agora sou eu quem não quer mais conversar – reclamei, depois que absorvi a frase dela.
– Tudo bem... Mas pensa sobre isso, ruivinha.
Desligamos depois das despedidas de praxe. Minha cabeça estava fervendo e meus pais perceberam isso quando eu desci para apanhar um copo de suco. Supostamente eu deveria estar estudando para os exames finais, mas logicamente, não tinha capacidade pra isso.
Eu me sentia vigiada e sufocada o tempo inteiro. Repassava cada coisa que meus pais ou Joana haviam dito, e nunca conseguia encontrar uma ligação entre aqueles conselhos e o que eu sentia por Paula. Já não dormia direito, não sentia fome, não tinha vontade de sorrir.
Numa coisa, eu tinha de dar razão a eles: o assunto estava longe de ter se encerrado. O pior de todos os sinais disso foi o afastamento entre Paula e eu. Como desculpa, ela usava os exames do colégio... E eu fingia que acreditava porque pior do que não tê-la por perto, era sentir que a mente dela estava distante quando nos encontrávamos.
Dia e noite eu amaldiçoava sua mãe por ter arranjado aquela bolsa de estudos. Dona Magali tinha conseguido, afinal de contas! Tinha colocado uma pedra enorme entre a filha dela e eu. Fiquei pensando naquele maldito acordo durante toda a semana que precedeu nossa formatura. Minhas notas foram péssimas, mas o suficiente para que eu fosse aprovada em todas as matérias. As notas de Paula, ao que eu soube, também ficaram bem longe do que se esperava.
Eu havia fracassado e sabia disso. Tinha me prometido fazer de Paula a garota mais feliz do mundo, o que não combinava nem um pouco com o semblante abatido que dominava a face dela desde a demissão da mãe. E isso me fez pensar, pela primeira vez, que talvez eu não tivesse mesmo tanto poder quanto julgava ter. Como dissera Joana, era muita pretensão da minha parte achar que o meu amor por Paula, por maior que fosse, bastava.
Num impulso, apanhei meu celular e disquei um número para o qual nunca havia ligado.
– Daniela? Oi... É a Yasmin.
– A Novata Petulante! – ela brincou. – A que devo a honra? A Paula não ta comigo não, se é isso que...
– Não, não. É com você mesma que eu preciso falar.
– Olha, se você quer saber o que a Paula está achando disso tudo, eu...
– Eu acho que sei o que ela está pensando, Daniela. Ou posso imaginar. Também não é isso.
– Hum. Fale.
– Bem, a gente nunca foi muito com a cara da outra, né?
Ela riu, e não negou. Eu continuei:
– Mas se sempre conseguimos passar por cima disso, sabemos o motivo.
– A Paula.
– É. Se tem uma coisa em você que eu não posso desmerecer, é a sua amizade com ela. Sei que é sincera, que é verdadeira.
– Ok, Novata, você já encheu a minha bola, agora pode falar.
Rimos de novo, apesar de eu estar muito nervosa.
– Eu vou precisar de um favor. Não é simples, nem vai ser fácil, mas eu não posso pedir isso para outra pessoa. Tem que ser você.
– Yasmin, nem em mil anos eu aceito me encontrar com o Nicholas de novo, está bem? Podemos parar por aqui, porque nada vai me convencer.
– Não é isso, Daniela. Antes fosse...
– Ta, então pare com esse mistério todo, pelo amor!
Respirei fundo e fiz o pedido de olhos fechados:
– Você seria capaz de contar uma grande mentira para a Paula, se fosse para o bem dela?
Fim do capítulo
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