Capitulo 4
Capítulo 04 – Sangue do Meu Sangue
Yasmin
Olhei para a tela do computador, completamente sem vontade de fazer qualquer coisa. Conectei o bate-papo e fiquei passeando pelos contatos... De repente ninguém me pareceu interessante, nenhum assunto me pareceu urgente. A não ser, claro, contar para a Joana o que havia acontecido entre Paula e eu. Eu mal conseguia me segurar! E aquela praga, que passava o dia de bobeira na internet, justo nesse momento tinha saído. Saco!
Não lembro de ter sentido essa angústia antes, assim, com essa magnitude. É claro que tudo que me acontecia me fazia pensar em contá-lo para a minha melhor amiga, mas aquele beijo... Ah, aquele beijo era diferente de tudo, era mais importante, era maior.
O que eu estava sentindo, era medo? Parecia que se eu não contasse logo, com todos os detalhes, eles desapareceriam para sempre. Desci para a sala e meu pai havia acabado de chegar do trabalho. Aquele novo emprego dele parecia estar dando mais certo que os outros.
Penso que herdei dele alguma coisa nesse sentido... Se ele mudava era porque não estava completamente feliz, era ansioso... Muitas vezes tomou os pés pelas mãos, mas foi sempre buscando mais. Dessa vez ele tinha acertado, então acho que tudo valeu a pena.
Como ele estava ocupado conversando com a minha mãe, preferi não interromper e pensei em dar uma volta na quadra, apenas para matar o tempo, mas estava na porta quando ouvi a voz dele às minhas costas:
– Yasmin?
– Sim?
– Que está fazendo?
– Aaam... Eu ia dar uma volta.
– Está tudo bem?
Pensei por um instante.
– Uhum.
Ele ficou me olhando com seus orbes analíticos. Típico dele, mas mais do que isso, eu fiquei me perguntando se estava assim tão na cara que a minha vida tinha mudado completamente depois daquela tarde. Saí para dar a minha volta, olhando para o céu ou para a rua, não importava, em qualquer direção eu via apenas o sorriso da Paula e isso só aumentava a minha angústia por não poder extravasar tudo, falando com a Joana.
Levara meu celular comigo e quando minha amiga me deu um toque, fui correndo de volta para casa e quase tropecei nas escadas tamanha a pressa de chegar ao meu quarto.
“Conta tudo, ruivinha, e não ouse me poupar dos detalhes sórdidos!”
Olhei para a tela e vi que Joana já me chamara cinco vezes.
– Oi – digitei.
– Oi. Agora contaaaaaa!
– Calma. Me fala de ti. O que fez hoje?
De um modo estranho, mesmo que estivesse esperando demais por aquele momento, eu queria retardá-lo... Queria curtir um pouco mais daquele gostinho de ter uma história incrível para dividir com alguém que amava.
– Fiz muitas coisas legais que não vem ao caso. Agora me diz, vocês trans*ram?
– Para com isso, boba. Você não tinha saído? Onde foi?
– Fui catar coquinho, ruivinha. A Paula foi mesmo na sua casa? Você agarrou ela?
– Ela veio.
– Vocês trans*ram?
– Joana...
– Conta, mulher, pelo amor de Deus!
– Jo, da um tempo. Tinha trabalho de matemática pra fazer.
– O trabalho que se foda, Yasmin. Você levou ela pra cama?
Comecei a rir e não parei mais. Joana só pensava literalmente “naquilo” e por mais acostumada com ela que eu estivesse, parecia simplesmente ser incapaz de parar de rir. Como no dia que me transferiram para a turma da Paula...
– Não, Joana, eu não levei ela para a cama. Ainda...
– Hahahaha, essa é a minha ruivinha falando! Mas... Por que não levou? Ela te deu o fora?
– Não.
– Então como?????
– Nem todo mundo é ninfomaníaca como você.
– Nem vem. Nega que é isso que você quer, nega... Quis trans*r com ela no dia que a viu de novo, que eu sei.
– Quis, sim, e ainda quero. Mas por enquanto, existem coisas melhores do que sex* para Paula e eu aproveitarmos.
– Impossível. Nada é melhor do que sex*.
– Muitas coisas são melhores do que sex*.
– Cite uma.
– Taquicardia.
– Sexo da taquicardia e é muito melhor.
– Ficar ouvindo a voz da Paula falando qualquer coisa... Falando de cones, de apótemas... Só ficar ouvindo a voz dela...
– Você pode ouvir a voz dela enquanto fazem sex* e vai ser melhor ainda, porque ela estará gem*ndo!
Gargalhei. Qualquer coisa que eu escrevesse seria deturpada pela mente pervertida da Joana então achei que era hora de mudar o rumo da conversa ou ficaríamos eternas numa discussão que jamais chegaria a algum lugar, porque ela estava falando de sex* e achava que eu também. Mas não... Eu estava falando da única coisa no mundo que é melhor do que uma boa trans*: amor.
– Vai querer que eu conte o que aconteceu, mesmo sabendo que não foi sex*?
– Conta aí.
Mal conseguia digitar. Atropelava meus próprios dedos, que apesar de viciados no teclado, não eram rápidos o suficiente para acompanhar o ritmo das sensações que me invadiam ao lembrar de cada detalhe, e que eu queria transmitir para a minha melhor amiga.
Não adiantava... Isso seria impossível... Nenhum idioma no mundo tinha léxico suficiente para materializar o momento que vivi.
– E então a sogrinha chegou e ela teve de ir embora – encerrei, exausta, como se tivesse acabado de cruzar a linha de chegada de uma maratona.
– Sogrinha? A diretora do colégio, é?
– Nem me lembre disso.
– Que encrenca você foi se meter, hein, ruivinha? No meu tempo você era bem menos complicada.
– Nem.
– E era mais rápida também. Uma tarde inteira trancada com a garota no quarto e vocês nem tiraram a roupa?
– Eu não queria precipitar as coisas, Jo.
– Precipitar o quê? Você quer, ela quer, pronto!
– Não tenho certeza se ela quer.
– Ô sua doente mental, ela se arriscou pacas para conseguir ficar sozinha contigo e você acha que ela quer o quê? Colar de você em matemática é que não é!
– Não é isso. Sinto que ela gosta de mim, mas...
– Ela correspondeu o beijo?
– Sim.
– Tentou te beijar depois?
– Sim.
– Querida, ela quer sex*.
– Tá, Joana, eu sei que ela quer. Eu também quero, isso é lógico, a gente se gosta.
– Ah, Yasmin, você ficou muito pamonha desde que se mudou.
– Obrigada.
– É sério.
– Porr*.
– Primeiro palavrão de hoje.
– Outros virão se você continuar chata.
– Só to sendo sincera. Na boa, não vejo motivo para você ter segurado a onda. Ta insegura, ruivinha?
Olhei para a tela. Eu estava insegura? Estava quase digitando “sim” quando a palavra simplesmente não quis sair. Não, eu não estava insegura, era isso! Se estivesse, teria forçado a barra, teria agarrado a Paula assim que a minha mãe saiu do quarto depois de interromper o nosso beijo.
Mas não... Eu estava, pelo contrário, segura. Eu sabia que outros beijos aconteceriam, mais cedo ou mais tarde, e quis esperar por eles porque era uma espera boa.
– Me chame de maluca, Jo, mas eu só vou trans*r com a Paula quando a gente estiver em algum lugar, sei lá eu qual, nos beijando, e de repente nos olharmos e vermos que a hora chegou.
– Você não é maluca por pensar assim, ruivinha.
Joana tinha digitado mesmo aquilo?
– Sério?
– Sério. Concordo com tudo. Sabe como é, dizem que quando uma pessoa sofre de insanidade mental, a gente não pode ficar contrariando!
– Vai a merd*, Joana.
– Cara, quem é você e o que você fez com a minha melhor amiga?
– Ninguém fez nada e sou eu mesma, Jo.
– Não pode! Primeiro diz que existe algo melhor do que sex* no mundo, o que por si só já é uma blasfêmia imperdoável. Depois diz que gosta da Paula, mas que ainda não vai trans*r com ela. Você enlouqueceu.
– Eu me apaixonei, Jo.
– Não é isso. Você se apaixonou por uma garota por semana no ano passado e não ficou desse jeito.
– Agora é diferente.
– Quando você vem pra cá?
– Nas férias.
– Cara, eu vou dar um jeito em você. Vamos sair, só nós duas, beber alguma coisa forte e dar em cima de algumas garotas frágeis e tudo ficará bem novamente.
– Não quero dar em cima de ninguém.
– Tudo bem, eu faço o seu lado com uma garota nota dez. Conheci a amiga dela no sábado, daríamos um quarteto perfeito! Logo pensei em você quando a vi...
– Ela se chama Paula?
– Não.
– Então não é o meu tipo.
– Saco.
– Que foi?
– Apaixonou mesmo, né, ruivinha?
– Total.
– Perdi minha companheira de gandaia.
– Pô. Desculpa.
Paramos de conversar por algum tempo. Odiava quando o assunto morria e eu não tinha idéia de como ressuscitá-lo. De repente Joana voltou a falar e mais uma vez eu não sabia o que dizer, mas não pelo mesmo motivo.
– Hei, ela é virgem?
Fiquei olhando para a tela. Não tinha pensado naquilo e de repente não conseguia pensar em outra coisa! E se a Paula era mesmo virgem? Apanhei meu telefone, fiquei vagando pela agenda até lembrar que Paula não tinha celular. Confiscado pela mãe! Droga! Depois pensei melhor... Não ia perguntar uma coisa daquelas por mensagem.
Joana chamou a minha atenção de novo.
– Oi.
– Ela é virgem?
– Não sei... – digitei, pausadamente.
– Como não sabe?
– Que merd*, Jo, eu não sei!
– Mas você não perguntou?
– Claro que não.
– O namorado de mentira dela não te disse?
– Bom, com o Nicholas não foi, mas... Que merd*. Eu não sei. Eu não faço idéia. E se ela for?
– Qual o problema? Você muda isso rapidinho, Yasmin!
– Não é bem assim.
– Tudo bem, então manda ela pra cá que eu dou jeito!
– Vá à merd*, Joana.
– Você ficou irritada mesmo. Não tinha pensado nisso?
– Não.
– Hmm.
De repente não consegui mais conversar mesmo. Dei uma desculpa qualquer à Joana e saí da frente do computador. Olhei para a minha mesa e vi o que restara dos biscoitos e do suco. E ao lado destes, o caderno aberto e um trabalho imenso de matemática que não tínhamos conseguido terminar. Voltei para a escrivaninha e com alguma ajuda do acaso, quem sabe a Geometria me faria pensar em outra coisa que não aquela dúvida que martelava a minha mente e o meu coração.
Terminei o trabalho em tempo recorde. Estudar para esfriar a cabeça era realmente uma coisa boa. Pena que eu só estudava de verdade quando estava com a cabeça cheia demais! Apanhei o telefone e mais uma vez fui percorrendo a agenda, mas dessa vez tinha as idéias mais claras.
– Chris?
– Oi, Ruiva! – respondeu ela, do outro lado da linha.
– Escuta, que horas é o treino de vôlei, quinta-feira?
Percebi que a capitã hesitou, do outro lado da linha.
– Às quatorze horas, exatamente como todos os treinos de todas as quintas-feiras. E também na mesma hora que todos os treinos de terça-feira!
Ri por alguns segundos.
– Tá.
– Que foi?
– Am... Nada.
– Ruiva, você não me ligou pra perguntar isso. Fale de uma vez que eu to aqui correndo com o trabalho de Matemática.
– Certo – tomei fôlego. – A Paula é virgem?
Chris não me respondeu de imediato.
– Olha, Ruiva, não é pra mim que você tem de perguntar isso.
– Eu to com vergonha de perguntar pra ela. E bem, nem tenho muitas oportunidades para isso. Você pelo menos sabe?
– Não posso te dizer. Não seria justo. Mas por que você quer saber? Você é?
– Aaam... Não. É que... Pelo visto nossos encontros serão estranhos por muito tempo ainda, rápidos, secretos. Eu queria preparar alguma coisa legal e... Sei lá.
– Ta, e se ela não for virgem você não vai fazer nada especial, é isso?
Percebi rapidamente onde ela queria chegar e fiquei com ainda mais vergonha daquela conversa. Chris estava certa. De que importava? A minha primeira vez com a Paula tinha de ser especial de qualquer forma, fosse aquela a primeira trans* da vida dela ou não.
– Eu to pirando com isso, não to?
– Está sim. Vai tomar um banho gelado.
Rimos. Fiquei algum tempo sem saber o que dizer e quase me assustei quando Chris voltou a falar:
– Faria muita diferença para você?
– Ficaria lisonjeada, mas não, não faço questão – respondi com sinceridade.
– Bom... A melhor amiga dela é a Daniela, que deve saber de mais detalhes do que eu. Mas... Fica tranqüila, Ruiva – ouvi Chris rir maliciosamente. – Nem perto disso...
Senti um peso enorme sair das minhas costas depois de desligar o telefone.
Não que eu não fosse achar especial ser a primeira mulher na vida de Paula, mas juntas já tínhamos o primeiro beijo. E eu não conseguiria me sentir bem sabendo que ela nunca se entregara a ninguém, enquanto eu... Bom... Digamos que eu tenha começado cedo... E nunca mais parado...
“É melhor assim” repeti para mim mesma.
E aí o ser de vermelho que carrega um tridente e habita um dos nossos ombros em oposição ao anjo que ocupa o outro, começou a me fazer lembrar de como Chris tinha contado aquilo: “nem perto disso”.
O que eu estava sentindo? Ciúmes? Do passado dela?
– x –
Paula
Entrei no carro da minha mãe e coloquei o cinto de segurança. Ela perguntou do trabalho e eu me limitei a dizer que tinha ido tudo bem. Ficou satisfeita ao ver Nicholas. Mesmo sem descer do carro, pode vê-lo me beijando e lhe abanando a mão de longe de modo que não fez mais perguntas. Fiquei sabendo de pronto que íamos jantar na casa do Joaquim de novo e só disse: “legal”.
Eu gostava dele. Claro que o namorado da minha mãe jamais sequer se aproximou do papel de um padrasto para mim, mas eu sabia que ela gostava dele e que era correspondida.
Ficava triste quando eles brigavam, porque a via sofrer. Mas felizmente, depois do primeiro ano de namoro, as coisas se acalmaram entre os dois, e tudo parecia um mar de rosas. Acho que era melhor ainda porque eles nunca tinham pensado em dividir o mesmo teto. Meu único contragosto era saber que Fernando também estaria lá e eu teria de suportá-lo a noite toda.
Pelo menos com o plano maluco de Yasmin eu tinha a desculpa de dizer que meu namorado bateria no Fernando se ele continuasse com gracinhas e aquilo vinha funcionando. Fernando morria de medo do Nicholas, mesmo que ele fosse dois anos mais novo.
– Você estava tão alegrinha hoje. É bom te ver sorrir de novo, filha.
Olhei para minha mãe enquanto largávamos as nossas coisas, depois de voltar para casa.
Joaquim só apareceria mais tarde, para dormir lá, e os dois achavam que como eu estava no quarto, nem sabia que andavam dormindo juntos todas as noites. Não entendia a razão de esconder aquilo de mim, eu tinha dezessete anos, poxa vida! Não tinha mais qualquer ilusão de que a vida sexual da minha mãe se encerrara quando meu pai faleceu. Sentia-me uma criança por não poder conversar sobre aquilo com ela.
– Ah, é – disse simplesmente.
Ela ficou me olhando. Foi ao banheiro rapidamente e depois se sentou no sofá, ligando a televisão. Percebi que os olhos dela me chamavam e me sentei ao seu lado, no sofá.
– Acho que nos afastamos nos últimos tempos, não foi?
Deixei que ela fizesse cafuné na minha cabeça quando deitei sobre o colo dela. Meses atrás aquela seria uma cena comum, apanharíamos uma sobremesa e ficaríamos assistindo Friends na televisão até ela me mandar para a cama porque tinha aula no dia seguinte.
– Você também parece bem – eu disse. – O Quincas te pediu em casamento, foi?
Ela riu. Chamar o namorado dela de “Quincas” era uma das formas que eu havia arranjado de tirá-la do sério sem chateá-la realmente. Era sempre divertido.
– Não. Nada disso. Estamos bem demais assim para estragar as coisas. Quem sabe depois que você também for para a faculdade e o Fernando voltar a estudar, mas não agora.
– Já sei... Querem ficar sozinhos, né? – ri maliciosamente.
– Paula!
– Ah mãe, eu não sou mais criança! Mas por outro lado você está certa. Se vocês casassem eu teria de morar com eles dois também e não sei se seria fácil. Não pelo Quincas... Mas pelo Fernando.
– Seu namorado ficaria com ciúmes de você morando com um garoto, é isso?
– O Nicholas nem é ciumento – disse eu.
– Você está toda feliz por causa dele? Eu te deixei sair para fazer um trabalho, Paula. Muito esperto da sua parte fazer grupo com ele!
– Não, não estou feliz assim por causa dele.
– Mas... Por que não, minha filha? É uma fase importante da vida, o seu primeiro namoro! Quem sabe não seja o único! Hum?
– Isso seria impossível.
– Claro que não. O seu pai foi o meu primeiro namorado e o único, até... – notei que ela suspirou. – Bom, só a morte nos separou.
Tocar naquele assunto era sempre difícil. Doía de uma maneira que nenhuma de nós duas conseguia explicar. Quando meu pai se foi a minha mãe e eu nos aproximamos muito, uma teve de cuidar da outra. Ela perdera aquele que chamaria para sempre de “o amor da sua vida” e eu tinha apenas quatorze anos. E por nos aproximarmos tanto, também nos magoamos.
Como eles não tiveram outros filhos eu fui a única coisa que restou a ela. Às vezes dona Magali confundia aquilo com necessidade de superproteção e esse comportamento me sufocava. O medo de magoá-la, sabendo que só eu poderia fazê-lo de maneira definitiva, impedia-me de ser totalmente sincera com ela. De expor os meus defeitos e dúvidas em busca de ajuda.
Se você tem irmãos e pisa na bola, é apenas uma filha mais sensível que os outros. Se é a única, você é um fracasso completo.
– Que foi? Não acredita que pode se apaixonar por alguém e continuar amando a vida inteira? – perguntou ela.
– Acredito.
– Que bom. Porque isso pode acontecer. Quem sabe pode ser genético!
Ri por um instante.
– Às vezes eu nem acredito em quão rápido você cresceu. Parece que um minuto atrás estávamos seu pai e eu na beira do seu berço, olhando você dormir... E agora eu estou conversando com você sobre o seu namorado! E então...? Eu gosto muito do Nicholas, fiquei feliz com a sua escolha. Está apaixonada por ele, Paula?
– Não.
Silêncio.
– Dê tempo ao tempo. Deixa ele conquistar você aos poucos.
– Mãe...
– Ele é um bom namorado? Como andam as coisas? Em que ponto vocês estão? Pode falar comigo, Paula... Sei que é difícil, talvez você sinta vergonha, mas pode confiar em mim. Eu sempre estarei do seu lado.
Fiquei sentindo o afago dela e controlando a minha vontade de chorar. Como eu diria aquilo? Inventaria uma história que parecesse plausível e diria que estávamos até pensando em trans*r, um dia desses?
Como, se eu não sentia absolutamente nada pelo Nicholas e nada quando estava com ele? O que eu iria contar, se ele era apenas um amigo que estava se fazendo passar por meu namorado só para dona Magali me liberar do castigo? Eu contaria isso?
Não fui capaz de conter as minhas lágrimas e ela acirrou a intensidade do afago. Tudo o que eu queria era que ela continuasse ali me fazendo carinho e eu não precisasse contar nada... Mas ela estava ansiosa... Ela queria saber!
– Paula?
Meu choro se tornou soluçante. Não o pude reprimir. Agarrei-me nas pernas da minha mãe, sobre as quais eu pousava minha cabeça, e a abracei do jeito que deu. Quanto mais pensava em sufocar o choro, mais chorava. Mais doía.
– Filha, o que está acontecendo? Você dormiu com ele, foi isso? Está com medo de me contar?
Chorei mais. E mais...
– Vocês se protegeram, Paula? Pelo amor de Deus me diz que você prestou atenção nas aulas de educação sexual e não fez nenhuma loucura!
– Mãe...
– Eu sou muito nova para ser avó, Paula – notei que ela tentou amenizar o clima com aquela frase, mas não fez efeito sobre mim. – Que houve, hum? Não foi legal?
– Não transei com o Nicholas, mãe. Nem tenho vontade.
Silêncio mais uma vez.
Dona Magali ficou com as costas eretas de novo, depois de ter se curvado sobre o meu rosto em demonstração de carinho. Eu fiquei pensando que qualquer mãe do mundo teria ficado de certa forma aliviada com aquela frase. Mas não ela... Não a minha mãe.
Ela não tinha esquecido aquilo que eu contara na sala dela, na primeira semana de aula. Fingia que o assunto não existia... Mas não esquecia. Nem por um segundo, como eu!
– Claro, eu me precipitei. Vocês são novos ainda.
– Não é isso, mãe. Você sabe que não é isso!
– Você estava confusa com a Daniela, filha. Foi só isso que aconteceu.
– Eu não estou confusa – disse, num rompante de coragem. – Eu sei exatamente o que eu quero, eu sei desde o começo e não importa o quanto você ou outras pessoas possam dizer que isso errado, não é assim que eu sinto. Eu não gosto de homens, não sinto nada por eles!
– Paula... Talvez o Nicholas não seja o cara certo, então... Mas um dia você encontra um e-
– Não! Eu sei o que é gostar de alguém, mãe. Eu já senti isso. Eu estou sentindo agora. Você não pode ignorar isso em mim só porque eu gosto de uma garota e não de um homem.
Como eu tinha erguido meu tronco para dizer aquilo olhando nos olhos dela, minha mãe deixou o sofá. Começou a andar na sala de um lado para o outro, incapaz de dizer qualquer coisa por muito tempo e, como eu, chorando.
– Eu vou expulsar aquela maníaca do colégio! Olha o que ela fez com você.
Temi pela Daniela por um segundo, pensando em todas as cartas que ela tinha me mandado, e depois de todos os problemas que eu tinha causado para ela na escola, ela ainda terminava sempre dizendo “eu te amo, Paulinha”. Minhas lágrimas se tornaram mais espessas e senti falta de ar. Estava sufocada de medo.
– A Daniela não fez nada comigo. Eu a amo, nós nos amamos, mas é só como amigas e é ela quem tem cuidado de mim desde que você resolveu acabar com a minha vida! Você não tem noção do quanto ela é importante pra mim, mas não... Não deste jeito. Nunca a desejei.
– Eu via vocês na escola!
– Mas era brincadeira dela. Nossa. Ela gosta do Nicholas e eu vou ficar muito feliz se um dia eles se acertarem porque os dois estão fazendo muita coisa por mim nos últimos tempos. Desde que eu fui abandonada por você.
– Não ouse repetir isso, Paula!
– Você me abandonou sim! Fechou os olhos para o que eu estava vivendo! Não ficou do meu lado embora adore dar uma de super mãe e dizer que sempre cuida de mim. Eu ouvi você dizendo pro Quincas que eu sou a sua melhor amiga, mas isso não é verdade, mãe. Não somos amigas. Eu queria ser... Nada me faria mais feliz do que se eu conseguisse ser uma grande amiga da minha própria mãe, da minha única família, mas não. Aliás, você é a minha pior inimiga!
Olhei para o braço dela. Ela tinha se segurado para não me dar um tapa no rosto e de repente tudo tinha ficado maluco, fora de controle. Ela me deu as costas, provavelmente para não perder a cabeça de novo.
E por mais estranho que isso possa parecer, eu fiquei querendo aquela bofetada. Decepcionei-me porque ela não veio. E assim, eu não tive um motivo para alegar quando a deixasse para sempre, fosse embora daquela casa, tentasse esquecê-la sem olhar para trás.
– Não percebe que eu faço isso para cuidar de você, Paula? Eu quero que você seja feliz!
– Então permita que eu seja! Não fique me trancando em casa, não me tire do teatro!
– Eu não vou te deixar voltar pro grupo. Foi ali que tudo começou, não é mesmo? Não estamos colocando as cartas na mesa, Paula? Pois bem, não foi a Luisa que te fez ficar assim?
– Não, não foi. Você me entende tão pouco que nem sabe de quem eu gosto, de quem eu já gostei. Ninguém me fez ficar assim, eu nasci lésbica e serei lésbica pelo resto da minha vida. Viva com isso, dona Magali.
Ela deixou todo o ar escapar de seus pulmões e se virou na minha direção, de novo. Fiquei com medo daquele olhar, mas não o evitei. Estávamos as duas tremendo de raiva e de dor.
– Você e a Giana chegaram a namorar?
Deixei meu corpo desabar sobre o sofá, sem entender.
– Você não disse que eu não te conheço, Paula? Estou fazendo uma pergunta... Eu vi o jeito que você chorou na formatura dela, o modo como vocês duas atuavam juntas, acha que eu nunca desconfiei?
Com um olhar muito sério, ela continuou falando:
– Ela no terceiro ano e você no segundo e de repente um milhão de trabalhos e ensaios extras... Que nenhum outro aluno do elenco precisava ir.
Fiquei de boca aberta.
– Am... A gente... Err...
– Quem abandonou quem, Paula, se você foi capaz de me esconder uma coisa dessas por um ano inteiro?
Não encontrei resposta. Talvez sequer houvesse uma. Eu não tinha contado por medo... Mas era por medo, também, que minha mãe vinha me superprotegendo daquela maneira.
– Eu não te abandonei, mãe, eu só... Eu...
– Você tem razão, não somos amigas mesmo. Você não confiou em mim, preferiu me iludir com a esperança de que estava conseguindo gostar de um garoto.
– Mas você não me deixava sair de casa!
– Ia mentir para sempre, Paula? Ia casar com o Nicholas, de mentirinha? Quem sabe ter um filho com ele?? Mas não... Que Deus te livre disso, Paula, porque do jeito que você é como filha, eu só posso prever que nunca conseguirá ser uma boa mãe.
Ela começou a chorar descontroladamente. Apoiou as costas na parede da sala e foi escorregando até o chão. Nem mesmo quando avisaram que o meu pai tinha morrido eu a tinha visto perder as estribeiras daquele jeito, se entregar ao choro... Sofrer assim.
Eu queria abraçá-la, mas não podia. Meus pés pareciam pregados no chão. Meu peito doía de um jeito que me fez pensar que, pelo menos, eu nunca mais passaria por uma provação tão grande.
O tempo, é claro, se encarregaria de provar que eu estava enganada, mas isso só aconteceu muito mais tarde e por outras razões. Na minha cabeça adolescente o que ocorrera ali era o que de mais grave poderia acometer uma mãe e uma filha e então senti que parte de nós havia morrido.
Senti que aquela era a primeira vez que nós duas nos dávamos conta de que estávamos sozinhas no mundo, ainda que corresse em nossas veias o mesmo sangue.
Fim do capítulo
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Lea
Em: 13/07/2022
Joana é amor,meio doidinha mas tem um bom coração.
O Nicholas,até o momento parece ser um garoto legal.
A conversa foi difícil com a dona Magali. Ela "aprisiona" a filha, não consegue conversar com a filha sobre a sexualidade dela. A Paula tem medo .
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