Ilha Verde, 12 de junho de 2021

.

"Hoje o tempo voa, amor

Escorre pelas mãos

Mesmo sem se sentir que

Não há tempo que volte, amor

Vamos viver tudo que há pra viver

Vamos nos permitir"

.

"Tempos Modernos" enchia a sala com seus acordes, enquanto Alvinho e as gêmeas brincavam no quarto, Kayra e Anna cuidavam dos últimos detalhes para o jantar de noivado de Nicolle e Júlia.

.

- Amor, pensei que Nicolle nunca fosse conseguir essa separação, apesar de consensual, Álvaro relutou muito em assinar, adiou várias vezes. Sinceramente, estava esperando que tivessem que apelar para o litigioso.

- Pra ser sincera, acho que ele aceitou foi com muita tranquilidade, tenho medo que ele apareça no casamento para o último susto.

- Não adianta sofrer por antecedência. Bom, mudando de assunto, acho que devíamos ter encomendado a comida, que invenção foi essa de fazer logo no dia das namoradas?.

- Aí amor, coisa de madrinha, não reclama e me ajuda aqui, estamos atrasadas, aliás, pede ajuda a Filó e adianta a mesa de antepastos, decora direitinho vai, com boa vontade Kay, prometo te recompensar mais tarde. - Falou piscando os olhos intensamente negros.

- Se é assim eu vou, você nunca me decepcionou.

.

Foi assim que o nome de Filomena ecoou pela casa, a morena veio cantando Carimbó arrastando os pés no compasso da música, balançando a saia imaginária como se não tivesse pressa alguma, trabalhava com a família há poucos meses, no entanto, conhecera Kayra e Anna há mais de dois anos, desde que chegara em Ilha Verde para trabalhar em um restaurante que faliu. Sem ter como voltar para Belém, foi acolhida pelo casal.

.

"Vai dançando, Sinhá Pureza

Rebolando, pode requebrar

Carimbó, sirimbó é gostoso

É gostoso em Belém do Pará

Ô lêlê, ô lalá

Misturei carimbó e siriá

Carimbó, sirimbó é gostoso

É gostoso em Belém do Pará"

.

 Kayra sorria e tentava imitar sem sucesso a dança da paraense de coração enorme, assim como suas reclamações. Cessada a música, Filomena colocou a mão na cintura para falar.

.

- Não sei porque inventaram de fazer tanta coisa, magrelas do jeito que as noivas são, vai sobrar comida para mais de mês.

- Vamos logo é arrumar a mesa do antepasto, enquanto Anna termina de ajeitar o prato principal, essa é a nossa missão para hoje.

- Tá certa...ei menina, aqueles garçons que participaram da festa das gêmeas também vem?.

- Só aquele que gostou, não tem necessidade de muitos, o jantar é apenas para 12 pessoas.

- Égua, gostei nada, achei um entrão, eu hein?, aquele parapaná, estou muito bem sozinha. De rocha mesmo, depois lá quero um homem chamado Genivaldo, sinceramente. Pense ai no convite de casamento, "Filomena e Genivaldo"?, horrível.

- Pra você, ele é o Gegê, esqueceu?.

- Que Gegê o que?, invenção daquele doido, pavulagem, se acha aquele cara.

.

Enquanto conversavam, iam arrumando a mesa de antepastos, que logo ficou pronta, a toalha de renda rosa clarinha, dava um quê romântico, embelezando ainda mais a organização da comida, que formava uma mandala tão bonita, que dava até pena de comer, para compor o cenário mini pães, torradas, lâminas de presunto Parma e salame italiano, além de docinhos, patês, queijos variados, frutas da estação e Caponata de berinjela.

.

- É, parece que a oficina de mandalas serviu para alguma coisa.

- Com comida eu nunca vi, parabéns, está de muito bom gosto Kay.

- Obrigada...

.

Anna terminou de arrumar o último coco, enchendo a fruta com os camarões a catupiry, enquanto o filé ao molho madeira repousava na bandeja de prata. Sorriu abertamente, sentindo a doce sensação de dever cumprido, estava tudo gostoso e de muito bom gosto, inclusive o Crème brûlée, que seria maçaricado apenas na hora de servir a sobremesa. A ruiva estacionada na porta da cozinha, achou a mulher ainda mais radiante junto aos pratos decorado em conjunto, não conseguiu esperar o depois para enroscar seu corpo de forma delicada ao da morena que sorriu ainda mais.

.

- Arrasamos amor, vamos logo tomar nosso banho?, daqui a uma hora as noivas e os convidados devem chegar, ainda precisamos empurrar as três crianças para o banho.

.

- Morena, você pode fazer isso sem mim?, preciso dormir uma meia horinha, não estou muito bem...

- Claro amor, descansa, eu sei quando está precisando, os teus olhos...eles mudam de cor.

- Obrigada por me entender.

.

Miraflor, 12 de abril de 1850

.

- Já chegaram senhora?.

- Sim Bá, foi rápido, pode parecer incrível, mas, teve enterro, com direito a missa e tudo mais, isso só porque a família é influente, Jane se atirou porque o pai quis dar um corretivo, e mesmo assim fizeram enterro de uma suicida. Estamos vivendo tempos difíceis como repetia tanto meu Afonso, que Deus o tenha.

- Dona Cora, eu ouvi esse caso, Jane foi afastada da pessoa que mais amava na vida, e esta morreu longe dela, assassinada, não aguentou, deu cabo a vida de tanta dor.

- Que amor?, Jane se deitou com uma mulher, o pai lhe mandou para um convento e ela se joga porque a outra foi assassinada por um acaso, você acha isso certo?. Bom, isso não me interessa, graças a Deus minha filha é moça direita, aliás, temos que voltar a organizar o casamento. - Cora estava tão cheia do seu orgulho de senhora da sociedade que não reparou o olhar de medo da filha, ladeada a Dália, igualmente assustada.

.

- Ora, ainda estão ai?, Elisa e Dália, vão tomar banho e trocar de roupa, não é bom ficar do jeito que voltamos do cemitério, estou indo em seguida, só preciso de um bom gole do meu licor. Bá, traga um pouco do licor de jenipapo, estou precisando, antes busque aqueles biscoitos feitos pela vizinha, vá compra-los pra mim que estou desejando, diga que depois passo para pagar.

- A senhora não prefere um chá?, estava reclamando a pouco de dor de cabeça.

- Traga o que pedi e não o que imagina que preciso.

- Sim senhora, estou indo buscar.

.

Enquanto as duas subiam, Cora sentou-se na cadeira de balanço que fora de Afonso, desfazendo as tranças negras, deixando os cabelos soltos, de repente o enjoo veio com tudo, seguido de um jato de vômito.

.

- Ai meu Deus, minhas regras atrasaram, agora esses vômitos. Senhor, não permita que esteja grávida nessa altura da vida. O pior que é quase certo, conheço meu corpo, igualzinho quando estava esperando Elisa...

.

Lucrécia fingiu não ter ouvido a fala de Cora, aproximando apenas quando escutou o som do silêncio.

.

- Tadinha da Dona Cora, acho que o calor do cemitério lhe fez mal.

- Tem razão menina, limpe a sujeira que fiz, por favor. Não diga nada a Bá e nem as meninas.

- Claro Dona Cora, agora temos um segredo nosso, não é verdade?. Agora, cá pra nós, isso não foi calor coisa nenhuma, a senhora está buchuda, e é um menino, eu sinto essas coisas, Seu Afonso ia ficar é orgulhoso, sinto que vem o filho varão que ele tanto queria.

- Mas...mas...eu...não estou...

- Está sim senhora, e vai ter um filho do Seu Afonso, vai nascer um bebê prematuro, o mais saudável de Miraflor, entendeu?.

- Mas as contas não fecham...

- E dai?, cada um ouve e acredita no que quer.

.

Lucrécia pediu licença para sair, não sem antes sorrir de forma delicada, depois voltou com dois panos, com um tirou o vômito, com o outro deixou um cheirinho no chão. Sem dizer mais nada saiu levando os vestígios do ocorrido. 

Um sorriso triste nasceu na ponta dos lábios de Cora, primeiro jamais saberia a paternidade do filho, depois sentiu que querendo ou não, era obrigada a ter a menina como aliada, ali declarou o adeus a sua paz.

Fim do capítulo