Insônia
Alice
O que é pior? Acostumar com uma condição que não se pode mudar, ou mudar uma condição que não precisava ser mudada?
Ter a presença das outras pessoas que amo subitamente no hospital foi algo completamente inesperado e muito gostoso, porém, ver a Laura se ausentar, sem poder fazer nada para que isso não acontecesse, me tirou do eixo.
Por tanto tempo a desejei em minha vida, e quando tive a chance de aproveitá-la, coloquei tudo a perder. Minha atual condição não é das melhores e me sinto péssima por isso, mas prefiro não poder ser a melhor pessoa para ela do que não tê-la mais comigo.
Minha mãe, dona Chica, Didi e Carol chegaram cheias de alegria e entusiasmo, decididas a me fazerem rir e conversarem dos assuntos mais diversos. Tentei o tempo todo transparecer estar ótima, apesar da preocupação constante com a ausência da Laura que saiu assim que elas chegaram, sem dizer nada. Nem pra onde ia, ou adeus. Seu olhar na porta a me observar é o que não me sai da cabeça.
O dia passou super rápido e assim que a noite começara a cair, Carol se prontificou em passar a noite para as "senhoras" irem descansar da viagem. De pronto recebeu as respostas:
- Que senhoras? Onde estão? - falou Didi olhando em volta e sorrindo.
Dona Chica aproveitou o embalo e soltou:
- Senhoras? - fez um bico, revirando os olhos - Nunca nem vi! Eu sou uma jovem em plena flor da idade.
Todas sorriram. Minha mãe, segurando minha mão me perguntou:
- Se a mãe for com elas, você não vai ficar chateada?
- Lógico que não, mãe! - acariciei sua mão - Estou imensamente feliz por terem vindo, mas a Carol está certa. Vocês precisam descansar da viagem.
- Não estou cansada, filha - me respondeu com sorriso faceiro - O avião da Laurinha é super confortável.
Didi levantou do sofá e veio perto da cama.
- Nós vamos jantar em algum lugar legal e vou levar as meninas para conhecerem a cidade. Não vamos descansar pois não estamos cansadas - sorriu - Vou atrás da Laurinha que sumiu o dia todo. Nem celular atende.
Ouvir isso foi como uma facada no peito. Já a perdi uma vez e não suportarei a ideia de perdê-la uma outra vez.
- Peça para ela me ligar quando falar com ela, Didi, por favor - pedi.
- Fica tranquila - falou e me beijou o rosto - Agora vamos e vocês duas, se comportem.
Minha mãe e dona Chica também me beijaram, abraçaram rapidamente a Carol e saíram as três juntas, conversando e sorrindo. O retrato de três jovens senhoras, como preferem ser chamadas, indo se aventurarem pelas ruas de Paris. Nem nos meus sonhos mais loucos imaginei isso um dia. Me tranquilizei por saber que o segurança da Laura estava a postos para elas e que estariam bem acompanhadas.
Assim que nos encontramos completamente sós, Carol puxou o sofá para perto da cama, sentou de frente a mim, com os pés cruzados embaixo da bunda, e, me olhando fixamente perguntou:
- Agora somos só nós! Me conta o que "tá" pegando.
Não consegui responder. Seu olhar me atravessou a alma e ali me desmanchei. Toda a pose de durona e forte, construída para enfrentar a situação, se desfez como algodão doce na água. Sem conseguir segurar o choro, fechei os olhos e deixei que as lágrimas lavassem meu rosto e alma. Ela permaneceu na mesma posição e falava:
- Muito bem! É isso aí! Põe pra fora! Estou aqui te ouvindo! Chore o quanto precisar!
Chorei o tempo suficiente para não ter mais lágrimas. Apenas a intenção do choro se fazia presente, em meio a soluços. Só então, consegui expressar:
- Eu não me reconheço mais! Não sei quem sou agora.
- Pra mim você continua sendo a Alice, minha alma gêmea, um pouco mais magra e pálida, mas a minha Ali.
- Você não entende Carol? - perguntei indignada - Será que nem você vai me entender?
- O quê?
- Eu não ando mais, perdi minha independência, não posso mais me mover sozinha, não sou mais útil para nada. De repente, sou um peso morto a dar trabalho para as pessoas que amo. Fazem quarenta dias que estou aqui, a Laura parou a vida dela para estar comigo, e o que eu posso oferecer? Apenas uma companhia sem graça, com direito a trocas de fraldas, comidas na boca e esforços para me virar na cama, a fim de que essa porcaria de corpo não crie feridas.
- Uau!! - arregalou os olhos - Tudo isso? Tem mais?
- Ah! Carol! Para de ser idiota. Eu estou falando sério.
- Eu sei! Estou perguntando o que tem mais a dizer?
- Eu nem sei! Tenho raiva! - falei entre os dentes - Raiva de estar assim, de não conseguir me mover. Todos os dias, desde que abro o olho até a hora que durmo novamente, tento com todas as minhas forças mexer um dedo pelo menos e é em vão. Tenho raiva de ouvir que estou melhorando. Tenho raiva quando não sinto que vou fazer xixi nem cocô. Tenho muita raiva. Não sei te explicar o tanto.
- Entendi! E o que mais?
- Mais? Quer mais? Tenho vergonha de ser quem sou! Você me conhece. Sabe como sempre fui independente. Nunca precisei de ninguém para nada. Sempre quis e fui eu por eu mesma. Agora o que sou? O resto do que sobrou de um acidente.
- Me conta do acidente - pediu, cruzando os braços em frente do seu corpo.
- Eu não lembro! A última coisa que lembro foi de abraçar a Mirela e falar que ia dar tudo certo. Depois disso, eu fui acordada aqui no hospital e a Laura entrou no quarto, toda emocionada e me falou para ser bem vinda de volta.
- E essa mansão? Como era?
- Horrível Carol. O Joseph é doentio. Ele é louco. E eu o odeio mais que tudo nessa vida.
- Então já encontramos alguém para odiar mais do que a você?
- Sim! Eu o odeio mais que a mim.
- Um problema resolvido! - sorriu - Agora me diz uma coisa boa.
- Coisa boa de quê?
- De você!
- Ah! Você já me conhece o suficiente para saber tudo o que tenho de bom.
- Tanto tempo longe de você, posso ter esquecido. Quero ouvir você me falar.
- Sou teimosa! - sorri sem vontade e dei de ombros.
- E isso é bom? - sorriu franzindo o cenho.
- Sim! Se não fosse por minha teimosia, já teria morrido lá na mansão mesmo.
- E o que te impede de usar essa teimosia agora?
- Usar como?
- Teimando com você! Falou tudo o que odeia e tem raiva. Agora teime com você que não vai entregar os pontos e vai lutar.
- Carol, eu perdi a Laura - dei de ombros - Nada mais faz sentido.
- Que baboseira é essa? - sorriu alto - A Laura é fissurada em você.
- Eu a perdi! Falei que ela me sufoca e desde então não nos falamos mais.
Carol gargalhou e se levantou. Sentou no colchão ao meu lado, segurando minhas mãos.
- Alice, vou te falar o que eu acho, ok?!
- Ok! - revirei os olhos - Já sei que não vai pegar leve.
- Que bom que sabe - sorriu mais uma vez - Sabe o que eu vejo quando te olho? Uma mulher foda pra caralh*! Você sobreviveu a uma explosão que destruiu uma casa inteira. Está temporariamente sem movimentos nas pernas, mas isso é temporário. A Laura contou tudo o que aconteceu com você, dia após dia, e ela vibrou com cada mínimo décimo de plaquetas que subia em seus exames diários. Você foi a responsável por quebrar um esquema muito grande de tráfico humano e corrupção. Sua atitude colocou mais de vinte pessoas em liberdade novamente. Isso é motivo para você se orgulhar e se achar foda.
- Mas eu.. - a interrompi.
- Eu não acabei! - falou brava - Entendo você estar se sentindo mal por não sentir as pernas e tal, mas isso é passageiro. A médica que te operou, aquela Tati - revirou os olhos - Ela fez um trabalho e tanto aí nessa sua cabeçona e é só questão de tempo. Você vai voltar a andar, miga - seus olhos marejaram - Eu te entendo! Entenda isso! Eu sinto sua dor e frustração! Você é minha irmã de alma, mas tudo isso vai passar.
- Carol - as lágrimas já rolavam mais uma vez - E a Laura? Ela não me merece assim.
- Alice - limpou as lágrimas e suspirou - Você não faz ideia do que essa mulher tem feito por você, não é?
Meneei a cabeça em negação.
- Ela poderia ter ido para qualquer lugar do mundo, e você sabe disso, mas ela preferiu ficar aqui, todos os dias, ao seu lado. Esse hospital, não tinha tudo o que você precisava, ela deu um jeito e conseguiu tudo. Dia após dia, mandava um relatório para nós no Brasil com toda sua evolução. Amparou sua mãe, nos trouxe pra cá e até uma casa - ela parou e mordeu os lábios - Quer dizer, é, vamos continuar falando da Laura - sorriu sem graça.
- Conta! O que tem essa casa? - perguntei sorrindo
- Nada! É surpresa! - sorriu mais uma vez.
- Surpresa mas você já sabe.
- Sou namorada do advogado dela né?! Se ele não me contar, faço greve - revirou os olhos e sorriu.
- Que tem a casa? Aliás, que casa?
- Ah! Eu vou te contar mas você vai ter que fingir surpresa - deu de ombros - Ela comprou uma casa maravihosaaaaaaa em um condomínio maravilhoosoooo e mandou adaptar tudo para quando você voltar pro Brasil morar lá. Tudo com rampa de acesso, tudo, absolutamente tudo adaptado para que você se locomova por tudo usando cadeira de rodas. Até a piscina e banheira ela mandou adaptar. O povo teve que fazer tudo em tempo recorde porque não sabia quando você teria alta e queria tudo prontíssimo.
Ouvi com os olhos arregalados e sem saber o que sentir. Carol continuou:
- Você acha mesmo que essa mulher não quer ficar com você? Briguinha assim todo mundo tem. Vocês estão cansadas.
- Carol, eu nem sei o que sentir com tudo o que me contou agora. Me sinto ainda pior por ter falado o que falei. Ela ficou muito magoada.
- Então, quando ela voltar aqui, vocês se acertam. E outra, ela está cansada e você também. Entenda isso.
- Obrigada! - abri os braços para um abraço e ela me abraçou.
- Hm! - Carol falou ao sair do abraço - Sabe quem me ligou e perguntou de você?
- Quem? - franzi o cenho e dei de ombros.
- O Gil. Lembra dele?
- Lembro sim! O carinha que foi no bar com nós, no dia que conheci a Bia.
- Sim. Estranhei ele me ligar, já que é amigo da Bia. Mas foi todo fofo. Falou que ficou sabendo que você tinha se acidentado e queria saber notícias.
- E o que você falou?
- Ué! Falei a verdade! Que você foi sequestrada e conseguiu escapar, só que nessa, teve um acidente e daí você precisou passar por cirurgia mas que estava se recuperando super bem e que logo estaria com nós novamente.
- Hum - franzi o cenho.
- E falei que a Laura estava aqui com você, cuidando bem de pertinho - sorriu e me apertou as bochechas.
- Estranho ter pessoas que nem sou próxima querendo saber de mim. Mas acho que estou assustada com tudo, por isso a estranheza.
- Sim miga. A gente fica mesmo. Mas foi só o Gil - revirou os olhos e sorriu - Uma bicha poc que queria saber de você. Relaxa!
A conversa ainda continuou noite adentro. Após a janta e chá da noite, o sono começou a falar mais alto. Ela então se acomodou no sofá que a Laura todos os dias dormiu e rapidamente adormeceu.
Eu me peguei observando-a dormir e a mente saiu em busca da minha amada. Onde estaria minha Laura que se ausentou cedo e não mais deu notícias?!
Queria falar com ela, nem que fosse por mensagem igual fazíamos no comecinho da paquera. Aqui, presa nessa cama, com pouquíssimos recursos, não me vejo capaz de conseguir saber se ela está bem. Só sei que a saudade já se faz presente. Mesmo esses dois últimos dias que quase não nos falamos, ela estava aqui junto de mim e a sua presença é o suficiente para me fazer feliz.
A noite demorou para passar. Quem me visitou foi a insônia. Ouvi o silêncio ensurdecedor da noite hospitalar até o amanhecer quando começa ser possível ouvir o movimento das pessoas pelos corredores, os utensílios de cozinha serem usados, as falas serem frequentes. Pela janela, já via a luz do dia, pouco ensolarado. Carol acordou com a entrada da equipe de enfermagem que chegou para fazer minha higiene matinal com toda a parte que não gosto: banho de leito, troca de fralda. Diferente de todos os outros dias, solicitaram uma troca de roupa completa. Estranhei o pedido. Carol prontamente já ligou para a Didi e informou.
A manhã, diferente da noite, passou bem rápida. Antes do almoço, chegaram todas novamente, exceto minha Laura que tive apenas a resposta sucinta da Didi:
- Ela foi para algum hotel descansar e não nos informou qual. O telefone também está desligado. Logo ela aparece aqui.
Para elas, que não passaram pelo que nós passamos, isso é algo normal. Meu dia foi péssimo depois disso. Em nenhum instante consegui parar de pensar na Laura. Para além da saudade, a preocupação gritava dentro de mim. Me reservei o direito de permanecer quieta. Sorria de vez em quando, fingi dormir um pouco na tentativa de não ter que conversar. Minha vontade era sair pelas ruas à sua procura. Como assim, ela está de celular desligado? A lembrança dos dias sórdidos que passei na mansão do Gordon me assolaram a ponto da pressão subir. Após a enfermeira me medicar, devido a pressão, dormi com o efeito do remédio.
Acordei com o médico, Dr Luigh tocando minhas mãos e, ao abrir os olhos, contemplei seu sorriso, seguido de uma fala animada:
- Que tal ir para casa, senhorita Alice?
Fim do capítulo
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