Capitulo 1
CAPÍTULO 01
Já passava de dezenove horas quando, enfim, terminei todos os deveres do colégio. Meus dedos já estavam com câimbras de tanto escrever e minha cabeça dando voltas e mais voltas. Parecia uma roda gigante se comparado o tamanho da volta.
Fechei todos os livros e cadernos sentindo dores nas costas da posição de estar sentada torta na cadeira, quase caindo em cima dos cadernos. Espreguicei o corpo inteiro, esticando os músculos. Estava puxado esse final de ano, nem mesmo os pontos que ganhei com as tarefas da semana cultural me isentavam de tantas tarefas. Que droga.
Ainda tinha os trabalhos acumulados por ser monitora da turma e dar aulas de reforço na parte da manhã para os alunos do primeiro ano do segundo grau.
Estiquei meu corpo ao máximo, ouvindo alguns ossos estalando, juntei todo o material e joguei de qualquer jeito dentro da mochila, colocando-a no chão mesmo, perto da minha cama para caso eu acordasse em cima da hora como era de se esperar. Ela estaria bem debaixo, no local onde ponho os pés no chão quando acordo. Assim, ao pisar no assoalho, eu pisaria nela, pois eu, inconscientemente, levanto-me do mesmo lado. É sagrado! Sempre do mesmo lado, faça chuva ou faça sol.
― Marina, já terminou, minha florzinha? ― minha mãe gritou lá de baixo.
― Estou terminando, mamãe. Desço já ― respondi também gritando para que ela pudesse ouvir.
Estava na última semana de provas finais do colégio. Em breve todo o pesadelo do ano acabaria e eu teria dois meses de folga merecidos. Digo dois messes porque, devido a minhas notas estarem fechadas na média anual no terceiro bimestre, eu já tinha acumulado 30 pontos e a média era 6. Pela lógica, eu já tinha passado, mas tinha que cumprir a carga horária estabelecida pela lei. Eu já estava acostumada. Todo ano era assim, meu ano letivo encerrava-se uma semana antes dos outros.
Quando iniciava dezembro, eu já estava de férias e só retornava no início de fevereiro.
Estava terminando o primeiro ano do segundo grau e minhas notas eram suficientes para passar por média, mas minha professora achou melhor que eu fizesse as provas mesmo assim.
Na minha sala, eu era uma das mais novas ao mesmo tempo em que era uma das mais altas em estatura. Daqui a seis meses, eu completaria 16 anos e estava adiantada para a idade.
A minha vida colegial era tranquila, tinha amigas e colegas, tirava boas notas e era muito comportada dentro da normalidade. Já minha vida em sociedade não era lá essas coisas. Por eu ser alta e ter corpo de uma mulher adulta, recebia muitas cantadas abusivas, às vezes até indecentes, dos homens na rua. Na escola, era tranquilo, ignorava sempre, mas meu irmão e gêmeo não era tão mente fria assim. Se alguém dizia uma gracinha para mim, ele queria logo partir para a ignorância.
Marcos era o contrário de mim, era boêmio, namorador, fumava e só pensava em festas. Já tinha repetido de ano duas vezes, além de ser metido a valentão.
― Qual o seu problema, meu chapa? Nunca viu uma princesa andando por essas bandas? ― ele sempre falava quando eu recebia uma cantada na rua. ― Essa gatinha já tem namorado, seu perdedor.
Eu acabava puxando-o e afastando para evitar o pior.
― Para com isso, Marcos! Um dia eles batem em você por ser metido a valentão. ― Tentava arrastá-lo para longe de confusão.
― Se eles vierem pra cima da gente, corremos. É muito simples ― ele sempre dizia isso enquanto procurava nos bolsos da calça o masso de cigarros que tirou do bolso de trás, todo amassado.
Puxou um cigarro, acendeu e deu uma tragada, prendendo a fumaça e soltando para cima, desenhando círculos perfeitos no ar. Quando me viu olhando, sorriu com aquele brilho no olhar muito parecido com o meu e disse, sério:
―Você é a cópia colorida da mamãe. Por vocês duas, eu morro de apanhar tentando defender, nunca duvide disso.
― Pois então não me defenda se for para apanhar. Faça de conta que eles não existem. É isso que eu faço desde que tinha dez anos, já que sempre fui grandona ― confessei, começando a andar para a pracinha onde nossas bikes estavam. Eu sabia que ele falava sério.
O que meu irmão não sabia e eu não falei era que essas coisas me constrangiam. Eu ficava, às vezes, travada e saía logo. Confesso que tenho muito medo, sei lá. A gente vê nos noticiários da televisão e dos jornais meninas como eu que foram abusadas, seja com palavras ou toque, que foram assediadas mesmo dizendo não. As agressões que sofrem, os estupros. Por isso minha mãe não gostava que eu andasse só, sempre tinha um irmão comigo. O único lugar para o qual eu saía só era a quadra que tinha perto da minha casa. Era onde todos os adolescentes se encontravam, lá eu podia passear com minhas amigas tranquilamente.
Sou a quinta filha. Antes de mim, vieram quatro homens até Marcos, que é meu gêmeo, nasceu 1 minuto antes de mim. Em seguida, veio outra dupla de gêmeos e minha irmã Virgínia. Somos as únicas mulheres, o resto, seis homens.
Meus três irmãos mais velhos trabalham nas quatros lojas de autopeças do meu pai, que não deu a eles o direito de escolher uma profissão. Todos estavam cursando faculdades de acordo com os cargos nas lojas.
Meu pai é osso duro, tudo tem que ser do jeito dele, ninguém pode dizer nada, por isso meus irmãos acabaram concordando e fazendo o que ele escolheu para cada um. Marcelo fazia Administração, Mateus fazia Economia e Matias fazia Direito; se fosse pelo gosto do nosso pai, ele faria direito empresarial, mas o ouvi confidenciar a nossa mãe que iria se especializar em direitos humanos voltados para as mulheres que sofrem abusos. Admirava meu irmão por isso.
Na minha opinião, papai era um ditador. Como os rapazes faziam faculdade e estudavam em locais diferentes, um dia ele chegou e jogou três chaves de carro na mesa e mandou que cada um pegasse uma chave.
Ninguém pôde escolher a cor ou a marca, sobre isso eles até ficaram calados, mas, quando descobriram que os carros não eram deles, mas sim das lojas, foi preciso minha mãe gastar muita saliva para convencê-los a não devolver as chaves.
Outra coisa, meu pai não queria pagar um salário. Foi preciso Marcelo procurar um advogado e fazer valer seus direitos. Depois disso, meu pai ficou sem falar com Marcelo.
O discurso pronto era que tudo aquilo seria nosso um dia e tínhamos a obrigação de estar lá dentro. Eu não iria, disso eu tinha certeza. Não me via trabalhando com eles, mas por enquanto não iria dar opinião. Não sou louca de comprar uma briga e passar dois anos ouvindo meu pai querer escolher minha profissão no meu lugar.
Nasci nessa casa, todos nascemos, na casa onde um dia meu pai nasceu e que foi construída por seu pai. Todas as casas dessa quadra foram construídas pelos empregados da estrada de ferro em 1900 e bolinhas. Hoje, toda a área é um condomínio fechado de luxo, uma cidade projetada dentro de outra cidade, feito exclusivamente para a classe média alta. Dentro do condomínio, tem quatro mil casas distribuídas em sessenta ruas, todas com nomes engraçados. A Rua Alameda dos Pássaros é uma rua velha e todas as casas são parecidas no tamanho e na quantidade de compartimentos.
Mesmo assim, minha rua é encantadora. Ao todo, cada uma tinha quatrocentas residências divididas em dois lados, todas com calçada larga. No centro das ruas, havia uma pracinha de ponta a ponta, com bancos de cimentos e canteiros com rosas, playgrounds para as crianças e aparelhos para ginásticas espalhados por todo o comprimento da praça. Era um tamanho padrão em todas as sessenta ruas daquele condomínio, todas com a mesma medida e o mesmo desenho, a mesma quantidade de casas e a mesma pracinha. Fiquei sabendo disso tudo após uma gincana do colégio em que uma das tarefas era conhecer sua rua e descrever suas medidas para a outra sala da sétima série.
Na época da gincana, visitamos todas as casas do condomínio para medir, falar das semelhanças e mudanças feitas pelo proprietário. A maioria das casas tinha piscina devido ao terreno lateral ser bem grande. Era um condomínio de luxo, classe alta, com duas portarias e um sistema integrado de câmeras na entrada e na saída de cada rua para evitar assaltos. Nunca houve, não que eu me lembre.
Dentro do condomínio tinha um espaço ocupado por lojas, sorveteria, pizzaria, bares, churrascaria e uma quadra onde todo mundo se reunia aos finais de semana. Quase não havia necessidade de sair, só quem trabalhava fora ou quem estudava, pois não havia ainda colégios ou faculdades ali dentro, mas rolava um boato de que os administradores do condomínio tinham comprado um terreno ao lado e estavam construindo um imenso colégio. Eu acreditava, desse povo eu não duvidava nada.
― Venha logo, minha flor, seu pai já está quase chegando e, se não estiverem todos à mesa, já viu o drama, né? ― mamãe gritou outra vez, arrancando-me do devaneio. Meu pai era daqueles que fazia questão de todos à mesa na hora das refeições e, se não fosse do jeito que ele ditava, quem ouvia era minha mãe. Enfim, nós só fazíamos pela minha mãe. Se fosse por ele, a mesa ficaria vazia ou então com os gêmeos, que eram os menores.
― Já estou descendo, mamãe. ― Encostei a porta do quarto, corri, sentei-me na ponta do corrimão e deslizei até o último degrau. Que maravilha! Quem me ensinou foi o meu gêmeo, Marcos, que aprendeu com os mais velhos, e eu ensinei a Vivi, minha irmã. Era tradição de irmãos descer daquela forma. Levei uns dois tombos, mas peguei a manha. Claro que meu pai não sabia dessas proezas.
― Marinaaa, que negócio é esse de descer como um moleque? Suba e desça como uma moça educada. Você não vê isso, não, Fabiana? Nem para educar seus filhos você presta. Vamos, suba logo. ― Meu pai olhava com ódio, não para mim, mas para minha mãe, coitada, que ficava sempre calada, acho que com medo de revidar.
Subi com nojo. Os degraus que me pagaram, além de subir pisando com força, desci bem devagarinho, com raiva da humanidade. Quando cheguei lá embaixo, ainda tive que pedir benção e beijar a mão do meu pai.
Fim do capítulo
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Lea
Em: 01/05/2022
Posso ver claramente as mudanças da primeira versão.
Resposta do autor:
Que bom duas vezes.
primeiro ter voce de volta lendo a historia das meninas, segundo amei sua opiniao sobre a nova versão.
toda semana tera capitulos novos, espero que agrade.
obrigado por ler e comentar
Bel Nobre
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