Sexta-feira
Laura
Amanheci com uma enxaqueca que está me tirando a vontade viver. Tenho a impressão que dentro do meu crânio existe um meteorito. E pra completar, hoje a Didi não vem pra casa e logo mais tenho leilão pra ir. Os leilões de sexta são de empresas menores e quase sem valor de mercado, mas eu gosto de ir para estudar as possibilidades de parcerias ou incorporações. Acredito que a Márcia já chegou, pois o barulho que está vindo da sala não é normal para uma manhã só comigo em casa. Preciso encontrar forças para me levantar, mas não as encontro – refletia isso enquanto ainda estava de olhos fechados, sem a menor vontade de abrí-los.
Ouço buzinas e vozes. Certamente é o segurança recebendo o pessoal da manutenção da piscina. Que falta a Didi faz. Tudo isso é ela que organiza e presta atenção nos mínimos detalhes. Respiro fundo, abro os olhos e permaneço imóvel em meu leito, apenas olhando para o teto enquanto tateio a cama na tentativa de encontrar o controle remoto para abrir as cortinas.
A lembrança da Didi me olhando nos olhos e dizendo: - Seu amor está mais próximo do que você imagina! Você até já encontrou, só não ouviu seu coração – é o que me vem em mente.
Como é possível eu já ter encontrado meu amor e ainda estar aqui? Assim? Dormindo e acordando todos os dias sozinha, apenas com o propósito de trabalhar? – reviro os olhos e isso me causa grande arrependimento pois a dor se eleva em um grau difícil de aguentar.
Com muita dificuldade me levanto, mas fico sentada com as pernas dobradas em meio à cama, e massageio as têmporas na tentativa de aliviar essa dor que está me causando náuseas.
Ouço o som de aspirador de pó. Esse simples barulho, está potencializado. A Márcia deve ter instalado um motor turbo nesse equipamento – consegui sorrir em meio a esse sofrimento que estou passando hoje.
Me levanto e vou direto para o banho. Abro o chuveiro e apenas deixo a água escorrer por todo o meu corpo. Nem forças para me banhar eu tenho. O dia vai ser longo, e isso me causa ainda mais desânimo. Preciso reagir! Não sou essa gelatina em forma humana que estou demonstrando ser. O que é uma enxaqueca para alguém que já passou por tanta coisa como eu? – tento refletir isso e me respondo – Nesse momento, essa enxaqueca é muita coisa.
Com muito esforço, concluo meu banho. Me sento sobre o aparador para passar o creme hidratante corporal e desejo mais uma vez ter alguém que me ame a ponto de cuidar de mim quando eu não estou podendo fazer. Quem dera ter o luxo de acordar com uma linda mulher ao meu lado que se preocupe por eu não amanhecer bem. Providenciar um banho na banheira, passar o creme em mim, desmarcar todos os meus compromissos e apenas ficar comigo o dia todo, me dengando. Ah! Quem me dera – suspiro em desejos enquanto me distraio apenas passando as mãos pelas pernas e o pensamento longe – Seria ainda mais feliz se essa mulher fosse protetora como a Alice. Que mulher!! Foi tão corajosa ontem, me defendendo naquela situação sem ao menos saber quem eu sou, sem vínculo algum. Imagine tendo alguma proximidade então? Deve ser daquelas mulheres atenta a todos os detalhes, que cuida e é carinhosa. Será que isso é querer demais? – fiz uma expressão de dúvida com meus próprios pensamentos – Pelo menos nos meus desejos eu posso ter alguém como ela ao meu lado – sorri – Aqueles olhos verde claro que me olharam tão de perto enquanto me falava que tudo iria ficar bem e que estaria ali, me dando todo apoio – continuo a alisar as pernas com o restante de creme que ainda tem – E que pegada! Uau! – suspiro com a lembrança e o arrepio que isso me causa - Estava disposta a encarar aquele segurança que dava dois de nós e ainda assim, me protegeu com seu próprio corpo. Incrível como corpo dela é todo perfeito. Parece que foi feito sob medida. Tem bunda, cintura, peito. Tudo na medida. Nem mais nem menos. E seu cheiro! – revirei os olhos – Que cheiro inebriante – o creme hidratante já estava seco e começou arder minhas mãos em contato com a perna. Saí dos meus pensamentos e meneei a cabeça em negação a mim. Como é possível eu estar pensando em uma vida com uma pessoa que eu vi apenas uma vez e ainda em situação adversa. Estou realmente carente. Devo estar entrando em tpm.
Minha cabeça me lembrou que eu ainda não estava nesse mundo encantado onde existem apenas eu e a moça do shopping. O jeito é ir à luta da vida, apenas com o que se pode ter: eu, meus funcionários, amigos e um complexo empresarial pra presidir. Quem sabe um dia, quem sabe, a felicidade de se ter um amor chegue até mim. Querer um amor, tudo bem! Mas ainda querer escolher e idealizar que esse amor seja alguém parecido com uma pessoa que mal conheço, daí já é demais – ri dos meus próprios pensamentos e desacreditei ser possível pensar isso.
Escolhi um conjunto de calça e blazer amarelo. Amo esse conjunto. O blazer tem um decote até um pouco abaixo do meio dos seios onde se fendem dois botões dourados. Ele proporciona um decote sensual que é como vou tentar me sentir hoje para espantar essa dor que me incomoda. Optei pelo sapato, igualmente amarelo, de salto agulha e bico fino. Vesti uma lace longa, bem longa que chega na altura da bunda. Brincos de pérolas e maquiagem básica. A roupa já chama atenção demais para carregar na make. Perfume? Hoje é melhor não exagerar para não aumentar a dor de cabeça. Apenas um pouquinho de Good Girl. Um borrifo na nuca e outro no meio dos seios. Já está ótimo. Desci as escadas já prontíssima para minha sexta-feira, que está só começando!
- Bom dia Márcia! Como está? – me dirigi à empregada que limpava o tapete da sala com o aspirador.
- Bom dia, senhorita Laura – me respondeu enquanto desligava o eletrodoméstico – Estou bem e a senhorita? Está linda demais hoje! – ela me olhava como se olhasse uma deusa
- Ah! Obrigada! Estou bem. Apenas com muita enxaqueca – a respondi sorrindo gentilmente
- Ai! Isso é horrível! Mas já preparei seu café e vou providenciar um remedinho para que alivie um pouco sua dor – me falou dirigindo-se à cozinha e deixando o serviço por fazer.
- Obrigada, Márcia! Não vou dispensar seus cuidados. Estou realmente precisando – baixei os olhos ao falar
- Logo, logo vai estar ótima!!! A Didi me avisou que não vem hoje, então vim mais cedo para organizar tudo. Espero não ter te acordado – justificou-se e continuou – O pessoal da limpeza da piscina já está trabalhando e o senhor Pedro ligou avisando que já está a caminho.
- Obrigada. Não sei o que seria de mim sem vocês – falei gentilmente enquanto sentava para me alimentar – Tenho certeza que fará tudo da melhor maneira.
O café estava servido deliciosamente. Ela preparara uma belíssima salada de frutas, pães de queijo, café forte e sem açúcar do jeito que eu gosto. Até uma garrafa de água mineral Voss deixara separada para que eu pudesse levar. Me alimentei e antes que eu concluísse a alimentação, Márcia me entregou um comprimido para aniquilar aquela dor que me afrontava.
- Sr Pedro chegou, senhorita – me avisou
- Já estou pronta e saindo. Obrigada Márcia. Tenha um ótimo dia e não precisa me esperar. Hoje chego tarde – despedi-me dela já em direção ao hall onde o senhor Pedro me aguardava ao lado da porta traseira do Volvo S90 preto.
- Bom dia, senhorita Laura – me falou sr Pedro
- Bom dia, sr Pedro. Como está? – o respondi gentilmente
- Tudo bem graças a Deus. E a senhorita?
- Bem também, obrigada – o respondi enquanto entrava no carro.
Ele deu a volta pela traseira do carro e entrou se apossando do banco do motorista.
- Me atrasei um pouco pois ainda estou me habituando a carregar esse carro – e sorriu – sou do tempo que passava no posto de gasolina. Agora esse negócio de carregar carro na tomada é muito novo.
- Certamente que sim, senhor Pedro. Por isso deixo essa tarefa para o senhor. Os meus carros de uso pessoal, ainda são todos de passar no posto – sorri em resposta
- Espertinha a senhorita – me olhava pelo retrovisor – Com todo o respeito, está muito linda hoje – me falou timidamente
- Obrigada!! – o respondi – Isso é para tentar esconder a enxaqueca que está me judiando.
- Chegando à casa de leilões, te faço um favor que vai passar rapidinho essa dor. Eu sofro disso também e aprendi uma técnica chinesa que passa em minutos – me falou seriamente
- Preciso muito sr Pedro. Hoje meu dia é longo e devido a dor, estou com dificuldades de me concentrar. – o respondi olhando para fora, observando o trânsito carregado da manhã.
- Descansa a mente senhorita Laura. Deixa a preocupação do trânsito comigo e descansa. Quando chegar ao nosso destino te chamo – me falou carinhosamente
- Obrigada! O senhor é um dos meus anjos da guarda – o respondi e fechei os olhos encostando a cabeça no apoio do banco.
Me lembrei que nessa mesma semana, no leilão da terça eu encontrei a Alice e nem sabia que de fato, era ela. Desejei que no de hoje, ela estivesse também – sorri de canto de boca dos meus pensamentos. É gostosa essa sensação de ter alguém para olhar, mesmo sendo um desejo impossível de se concretizar. Uma mulher linda daquelas, ser lésbica, seria como ganhar na loteria. E sorte, é algo que não tenho.
Alice
Acordei animada!! Ir ver minha mãe e encontrar a dona Chica ontem, me fizeram um bem danado. Nem sabia que estava precisando tanto disso. Foi como uma injeção de ânimo e renovo.
Meu coração está otimista. Tenho a sensação de que alguma coisa boa está por acontecer. Dei um pulo da cama e abri a janela para sentir o frescor da manhã. Amo essas manhãs de final de verão onde o clima começa ficar um pouco menos quente.
Liguei uma playlist de mpb para que embale meu café da manhã. Preparei a cafeteira e enquanto o café ficava pronto, fui tomar um banho rápido.
Saí do banho e coloquei apenas lingerie e uma longuete branca com decote em V. Sinto o aroma do café que invade meu pequeno apartamento e essa sensação é bem confortável.
Deitei o café em uma xícara e antes de tomar, sinto o cheiro que a fumaça causada pela alta temperatura faz invadir meu olfato. Dou um gole e me sinto flutuar! Consegui fazer o café perfeito: forte e sem açúcar. Até hoje encontrei pouquíssimas pessoas que entendam esse meu gosto – dei de ombros e sorri com meu pensamento. Concluí meu café, encostada na pia ouvindo atentamente uma canção que diz: "Se você não se distrai, o amor não chega, a sua música não toca, o acaso vira espera e sufoca. A alegria vira ansiedade e quebra o encanto doce, de te surpreender de verdade.." – e tocava na sequência da playlist que escolhi. Refleti sobre isso e me lembrei do dia anterior. Encontrar Laura Veigas no shopping, em um completo acaso da vida foi surpreendente.
Desde a primeira que vi aquela mulher, a seis anos atrás, entrando no salão de leilão, falando ao celular como se não soubesse nem o que estava fazendo ali, e em arrematou três das principais empresas que estavam em disputa, fiquei encantada. Acompanhar de longe a ascensão dela no mercado financeiro foi e tem sido maravilhoso. Para mim, inteligência é afrodisíaco. E isso a senhorita Veigas – revirei os olhos ao pensar nesse termo que ela gosta de ser chamada – tem de sobra. Para além de sua beleza externa que é a mais perfeita obra prima esculpida pelo eterno, o poder e a imponência que aquela mulher emana me deixam completamente vidrada. A única resposta possível de se encontrar para uma obra de arte daquelas ainda estar sozinha, é a que os homens não suportam a ideia de terem ao lado uma mulher mais poderosa do que eles. Infelizmente essa sociedade machista e doente que vivemos, cria homens frágeis que não conseguem lidar com a presença de mulheres fortes, inteligentes e sagazes. Eu vejo pela minha prática profissional. Não sou nem dez por cento do que a Laura é e já encontro inúmeros percalços nas negociações. Minha palavra, por mais embasada que esteja em fatos e dados, sempre é desacreditada. Até as roupas que uso, são pensadas em cada detalhe para evitar de receber olhares que me levam acreditar que sou um pedaço de picanha prestes a ir à churrasqueira. É uma sensação horrível. Consigo sentir essa mesma dificuldade que a Laura tem – suspirei continuando minha xícara de café e percebendo que a música também já tinha acabado.
Peguei uma maçã e fui ao quarto comendo-a enquanto terminava de me arrumar. Escolhi uma calça social de linho, azul grisáceo juntamente com um colete que faz conjunto e coloquei por cima da longuete branca que já vestira. Calcei um oxford bege e soltei uns borrifos do perfume de sempre: Dolce Gabbana Light Blue. Me olhei no espelho, e gostei! Só faltava o blazer do mesmo conjunto e assim, completei o visual.
Hoje é dia de leilão e vou representar os meus próprios interesses! Estou muito feliz. Tenho feito uma reserva para que consiga adentrar nesse mercado e meu maior desejo no momento é conseguir arrematar a minha primeira empresa. Certamente, terá alguma de pequeno porte que ninguém aposte, e então será o meu momento. Posso investir até duzentos mil. Estou confiante – cruzei os dedos, beijei e elevei aos céus de olhos fechados – Que seja feita a sua vontade! Amém!
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Não sei se é a ansiedade por pela primeira vez estar indo a um leilão com a possibilidade de me tornar empresária, ou se é realmente esse trânsito que hoje está carregado para além do normal. Até de moto está difícil. Mas como diz Charlie Brown Jr: Hoje ninguém vai estragar meu dia.. – Sorri ao dar seta e conseguir entrar no estacionamento da Casa de Leilões.
Parei próximo a entrada principal. Deixei o capacete preso na moto. Arrumei o cabelo me olhando no retrovisor e pelo espelho vi quando parou um Volvo S90 preto, maravilhoso, novíssimo e desceu uma mais bela das criaturas já inventadas na terra. Me virei rapidamente para poder contemplar aquela cena na sua integralidade.
Laura Veigas estava absurdamente linda! – a olhava atônita – Nem de longe parecia aquela mulher assustada e envergonhada com o ocorrido do shopping no dia anterior. Com um conjunto de blazer e calça social amarelo, era o próprio Sol que iluminava aquele local. Adentrou o salão, numa elegância de cair o queixo de qualquer cidadão – Meu Deus!! Que mulher é essa?! – pensava com os olhos arregalados pela visão que contemplara.
Me recompus do puro êxtase que aquela mulher me causa e me dirigi até a entrada quando sinto alguém me puxar pelos braços. Virei-me rapidamente e o susto foi grande:
- Joseph?! – franzi o cenho, o olhando de cima até embaixo - O que faz aqui?
Ele segurava um enorme bouquet de rosas. Lindíssimo, mas um tanto exagerado e estampava um sorriso tão exagerado quanto as rosas, nos lábios. Estava vestindo um conjunto de smoking branco, com gravata borboleta preta.
- Oi Alice. Tudo bem? – cumprimentou-me gentilmente
- T- Tudo bem! – o respondi segurando o riso – O que é isso? – perguntei apontando as flores
- Resolvi seguir sua dica – e sorria como se tivesse o dobro de dentes na boca – Trouxe flores para dar à senhorita Veigas.
- Mas aqui? – não contive o riso – Joseph! Aqui é um leilão! Deveria ter mandado pelo menos ao escritório da Complexo Veigas.
- Mandei pra lá também – me falava com tanta euforia que fiquei até com pena – Mas preferi entregar esse em mãos. Liguei no escritório e me confirmaram que ela estaria aqui agora pela manhã, então me arrumei e vim.
- Ah! Entendi – percebi que ele estava realmente decidido a passar aquela vergonha em público – Então.. – procurava palavras para dizer a ele – Boa sorte! Tomare que ela goste! – esbocei um sorriso sem mostrar os dentes.
- Obrigada!! Não tem como não gostar, não é?! – me respondeu confiante
- Com certeza. Não tem como não gostar de um lindo gesto – o respondi ironicamente – Vou entrar pois estou à trabalho.
- Tudo bem! Vou aguardar um pouco para entregar no momento certo.
Eu segurava o riso na frente daquele moço que brincava de ser homem maduro. Ele realmente não fazia ideia de como conquistar uma mulher. Menos ainda, uma mulher tipo Laura Veigas, de gosto refinado e extremamente discreta. Levar flores ao leilão, e aquela quantidade, com aquela roupa, estava no mínimo ridículo. No entanto, me sentia aliviada por tê-lo ajudado, conforme prometido.
Fiz minha inscrição e me sentei três carreiras atrás da Laura. Estava fácil encontrá-la em meio a um mar de homens vestido de ternos em tons escuros. Realmente ela destacava-se como um Sol. E como eu desejava que fosse o meu Sol particular. Desejar não custa nada, não é?!
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O leilão corria tudo dentro dos conformes, mas até então não tinha aparecido nenhuma empresa que me agradasse o score e preço. Um certo desânimo foi me batendo. Estava tão esperançosa, mas comecei a pensar que de certo, ainda não era o meu dia.
- Iremos agora ter um pequeno intervalo para elencar os próximos arremates. Voltaremos em dez minutos – pronunciou o leiloeiro
As pessoas começaram a se levantar de seus lugares para se ausentarem da sala no período do intervalo, o que é comum acontecer.
- Pessoal, atenção!! – ouvi uma voz familiar no microfone – Aqui na frente!!
Quando me concentro em olhar para frente, contemplo o próprio Joseph, tomando conta da tribuna principal, segurando aquele ramalhete imenso de rosas vermelhas e esperando as pessoas prestarem atenção em sua presença. Fechei os olhos e ruborizei de vergonha por ele.
- Para quem não me conhece, eu sou Joseph Gordon – continuou a falar empolgado – Sou empresário, dono da Gordon Cia e hoje vim aqui prestar uma homenagem à mulher mais encantadora que já vi.
Um grande burburinho, seguido de gargalhadas se ouvia pelo salão. Eu apertava os olhos e fazia caretas a cada palavra proferida por ele, sem conseguir entender ao certo o que ele dizia.
- Fiquei sabendo, por fontes seguras, que ontem essa linda mulher foi acusada de roubar uma roupa do shopping – fechei os olhos na tentativa de fechar também meus ouvidos - E me solidarizei ao seu sofrimento – continuava ele - Então vim pessoalmente entregar essa singela lembrança!
Se eu estava com a impressão de estar em um pesadelo, posso imaginar a sensação da Laura, ao perceber que ele estava falando dela, em meio a centenas de acionistas e investidores. O burburinho tinha aumentado depois da infeliz fala de Gordon. Queriam saber quem era a pessoa acusada de roubo. Quem poderia ser? Os participantes se olhavam e dirigiam seus olhares para a meia dúzia de mulheres que ali estavam, incluindo eu.
- Laura Veigas! – disse Gordon – Receba as flores que lhe dou, junto ao meu coração a inteiro dispor – e levantou as flores em sua direção
Todo o salão a olhou! Ela se manteve imóvel! Gordon vinha em sua direção trazendo aquele montante botânico, com um enorme sorriso nos lábios e os olhos vibrantes. Era a mais pura expressão do fim de carreira de um conquistador barato. Eu queria me tornar uma heroína com super poderes e tirá-la daquela situação extremamente constrangedora. Culpei-me por ter sido eu, a fonte segura que ele outrora citara.
Meu coração batia descompassado e meu rosto ruborizou. Estava em um misto de querer ir embora para não contemplar tal atrocidade, com querer ficar para saber o que ainda estava por vir.
Veigas, elegantemente levantou-se. Recebeu as flores. Sorriu gentilmente para todo o salão que a aplaudia. Agradeceu Joseph. Deixou as flores na cadeira e dirigiu-se ao microfone.
Eu cruzei um dos braços sobre a barriga e apoiei o outro, segurando também a minha testa e olhava a movimentação por entre as mãos. Não consigo descrever o que sentia. Meneava a cabeça em negação.
- Bom dia a todas e todos! – falou cordialmente Laura ao microfone, aguardando a resposta do salão – Acredito que aqui, todos me conhecem. Costumo ser uma mulher que não passo desapercebida nos lugares onde frequento – e sorriu lindamente – Agradeço a gentileza a mim oferecida, senhor Joseph Gordon. As flores são lindas! – expressava-se serenamente – Como ouviram algo sobre minha vida pessoal, sinto-me no dever e obviamente no meu direito, de explicar os fatos – dizia calmamente e com firmeza – Como podem ver, eu fui agraciada em habitar uma pele onde sou caracterizada como sendo da raça negra, o que eu amo e tenho imenso orgulho em ser. No entanto, vivemos em uma sociedade racista, escravocrata e misógina, onde o simples fato de alguém ser negra, já é motivo para acreditarem que roubamos, furtamos, matamos, somos incapazes de alcançar o sucesso de forma honesta – continuava e o silêncio imperava entre todos – Quem estuda apenas um pouco, nem precisa ser muito, apenas uma breve leitura nos livros de história, pode constatar que as pessoas da minha raça passaram a ter direitos como cidadãos, a aproximadamente quarenta anos. Carregamos em nossa ancestralidade a dor, o sofrimento e o preconceito de uma sociedade doente e falida – ela falava com propriedade - No dia de ontem, eu fui impedida de comprar uma roupa que desejava, pois, a vendedora se negou a sequer procurar o número que visto, acreditando que eu não teria condições de pagar – ela riu ironicamente – Coitada! Mal sabia ela que eu poderia comprar o próprio shopping – todos riram – E não bastando isso, duas senhoras brancas, furtaram um vestido da loja na qual me encontrava, mas quando o alarme disparou, a vendedora que outrora me negou o direito de compra, acusou-me de ter furtado a referida roupa.
O salão permanecia em silêncio.
- Então, senhor Gordon – dirigiu o olhar a ele com desdém – Se a situação na qual o senhor se referiu foi essa, devo lhe informar que não foi apenas uma acusação de "roubo" – gesticulou com os dedos as aspas – pois para isso eu teria que estar armada – riu ironicamente – O que aconteceu, foi uma situação de crime contra a minha pessoa. Crime de Racismo, injúria, calúnia, falso testemunho e falsidade ideológica. Devo lhe informar também, que todas as devidas providências já foram tomadas. Inclusive, o valor que arrecadado na sentença que certamente será de causa ganha, será devidamente destinado a uma OnG para erradicação da fome nas comunidades de baixa renda.
O salão inteiro, inclusive eu, a aplaudia em pé
- Mais uma vez, agradeço as flores e deixo aqui meu apelo para que antes de proferirem informações que possam afetar a carreira e a vida das pessoas, averiguem os fatos e se inteirem da totalidade do ocorrido. Ótima sexta-feira a todas e todos. Bons negócios!
Eu estava boquiaberta com a inteligência e sagacidade dessa mulher! A aplaudia como se estivesse no final da copa do mundo, comemorando a vitória do Brasil. Queria gritar o quanto ela é linda e arrasou naquele discurso, dentro de um salão lotado de homens brancos, héteros e cheirando a patriarcado. Pra completar meu vislumbre, ao terminar o discurso, lá de cima do púlpito, ela me lançou um olhar – tenho certeza que foi pra mim – e deu uma piscada seguida de um singelo sorriso.
Depois dessa vergonha, Joseph sumiu do salão. Eu já estava esperando uma mensagem me culpabilizando pela derrota. O leilão foi encerrado e a Laura, evaporou. Com a mesma sagacidade que ela discursou lindamente, desapareceu do salão antes mesmo que notassem sua saída.
Com uma certa decepção por não ter sido meu dia de me tornar empresária, mas de alma lavada pelo ocorrido com a Laura, voltei pra casa e comecei a me organizar para o final de semana.
Laura
Assim que cheguei a Casa de Leilões, o sr Pedro fez uma rápida massagem em minhas mãos que aliviaram um pouco a dor. Entrei, procurando a moça loira, mas não a encontrei.
Hoje não são empresas muito relevantes que são postas à arremate. Ela, como exímia consultora que é, certamente não participa dos leilões de sexta-feira. Procurei um lugar mais próximo a saída de emergências, assim posso sair facilmente caso minha enxaqueca me perturbe muito.
Só quero ficar quietinha e observando os arremates para direcionar minhas parcerias. Após o leilão, preciso passar no escritório pois tenho muitos contratos para analisar e desde quarta-feira não sei do andamento da empresa. Gosto de participar de tudo, bem de perto.
O leilão estava morno. Nenhuma grande oportunidade.
O leiloeiro propôs um intervalo e então, me surgiu a ideia de entrar em contato com o Gil, para saber sobre o final de semana.
Estava distraída, mexendo no celular quando aparece aquele moleque mimado do Joseph Gordon, com seus cabelos vermelhos como fogo e o rosto ainda com barba por fazer. Smoking branco e um ramalhete gigante de rosas vermelhas. Por um momento até achei que era alguma brincadeira da Casa, mas não se dariam ao trabalho de tal feitio.
Minha surpresa foi ainda maior, quando ele começou a falar que aquilo que estava fazendo, era uma homenagem a alguém especial.
Caí na gargalhada junto de todo o salão. Era muita vontade de passar vergonha para uma só pessoa. Só quando ele mencionou as palavras: roubo e shopping que pude perceber, que falava de mim. Mas é claro!! Como poderia ter me esquecido. Sr Joseph não é aquele tipo de criança que aceita perder na brincadeira. Eu, ainda essa semana, tirei um brinquedo da mão dele e ele, não se dará por satisfeito enquanto não tiver minha atenção.
- Laura Veigas! – disse Gordon – Receba as flores que lhe dou, junto ao meu coração a inteiro dispor – e levantou as flores em minha direção
Eu desejei que a terra se abrisse e me engolisse viva! Que arrependimento de ter saído de casa, com essa dor insuportável, para me dar o trabalho de vivenciar isso.
O que fazer? Travei! Ir embora? Não dá tempo. Não receber as flores? O povo vai reclamar. Receber? Mas eu não quero, nem gosto de rosas. Fingir um desmaio? Não vai rolar. Sorrir? Chorar? Levantar? Ficar sentada? Minha vontade é apenas me tornar invisível e desaparecer do planeta. Ainda bem que a Alice não está aqui para não assistir a completa decadência do meu ser.
Sorria e acena! Já aprendi a tempos enquanto assisti inúmeras vezes os pinguins de Madagascar. É isso! O sorriso é a nossa melhor arma contra o mal que nos cerca. E se te derem um limão, faça dele uma limonada.
Levantei. Recebi as flores. Agradeci ao Joseph. E jamais perderia essa chance de falar a todos que essa versão de roubo em shopping é uma farsa.
Enquanto me dirigia ao púlpito, sentia meu sangue ferver. Esse moleque me paga. Imagine o que vai sair nos jornais? Laura Veigas é ladra! Pronto! Acabou tudo o que demorei anos para construir. Não posso permitir isso. É meu momento de falar ao mundo o que me aflige e o real motivo do que aconteceu ontem.
- Bom dia a todas e todos! – cumprimentei o salão e comecei um discurso que saiu me lavando a alma. Enquanto eu falava, sentia o furor de meus ancestrais percorrer minhas veias. Jamais permitirei baixar a cabeça para pessoas brancas que subestimam minha raça. Jamais. Minha essência grita por justiça e enquanto eu viver, lutarei por ela.
Quando acabei minha fala, ouvia os aplausos de todo o salão que se encontrara em pé.
Lá no final da sala, um par de olhos verdes. Vestida de azul e com as bochechas rosadas. A mais linda mulher que meus olhos pretos já contemplou. Alice estava ali. Senti um misto de vergonha pelo ocorrido com uma ligação potente, que só eu e ela sentimos dessa situação que vivenciamos e ela foi impagável.
Pisquei a ela e recebi seu sorriso.
Meu dia já pode acabar.
Fim do capítulo
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