Búzios
Laura
Antes de sair do shopping, resolvi que iria passar na casa da Didi. Ela mora em um condomínio próximo de onde eu estava.
Passei em uma loja de chocolates e comprei vários exemplares para fazer um agrado pra toda a família. Didi sempre cuidou tão bem de mim que tudo que eu possa fazer e proporcionar ainda é pouco.
Meu dia não foi nada parecido com o que planejei para minha folga. Apesar de tudo ter se resolvido e eu estar me achando linda, devido os cuidados que me permiti ter, meu psicológico está em frangalhos. Estou carente de um abraço quentinho e cuidado de mãe.
Demorei mais do que o esperado devido o trânsito da hora do rush. Quando cheguei, já era possível ver o céu transformando suas cores, pintando-se em uma mistura de rosa com amarelo que se aquarelava no azul infinito. Estacionei próximo à portaria e anunciei minha presença.
Ainda de dentro do elevador, era possível sentir o cheiro de comida recém temperada. Cheguei a salivar de desejo. Que delícia!!
- Motumbá Didi – a falei em reverência*
- Motumbá Axé, minha menina – abençoou-me carinhosamente* abraçando-me bem forte.
Poderia permanecer dentro do abraço da Didi pelo restante dos meus dias. É o lugar mais gostoso de se estar. É o meu refúgio. Meu amparo. Minha proteção. Meu ontem, hoje e sempre. Didi é a pessoa mais importante da minha vida, em vida. Me acolheu como sua filha, cuidou de mim, me educou, direcionou meus passos para o caminho do bem, esteve ao meu lado em todos os momentos. Foi meu anjo protetor, meu guia, minha referência. Acompanhou e vibrou com cada mínima conquista. Desde minha menarca, primeiro beijo, paixonites, me tornar adolescente, me formar, primeiro emprego, primeira empresa, começo de carreira e até a entrevista para a Forbes como a mais nova milionária do país. É ela que sempre esteve e está comigo. Seu abraço é o meu sustento.
E envolvida nesse abraço, me desmontei!! Não consegui mais manter a pose de durona e me desaguei. Só me fiz chorar. Um choro embargado, doído. Um choro com soluço, que chega a faltar o ar e vamos nos abaixando até o chão. Um choro ancestral, que carrega as marcas de um sofrimento sem tamanho, de injustiças, de preconceitos. Um choro de alma. De espírito. De carma e aura. De toda a nossa composição, material, espiritual, divina e sobrenatural.
Didi me apertava e nada dizia. Apenas envolvia seus braços sobre meu corpo, me sustentando e me acalentando.
Quando fui me acalmando, consegui falar, ainda entre soluços:
- Não aguento mais isso, Didi! Não aguento!
- Aguenta sim! Você é forte! Você é poderosa! Você é a minha menina – falou isso, segurando meu rosto entre suas mãos me olhando nos olhos – Agora me conta o que foi?
- É todo dia uma coisa, Didi. Um dia é preconceito no trabalho, no outro no lazer, no trânsito. Em todos os lugares. Por onde vá tem pessoas que olham torto, que duvidam, que desconfiam. Isso é cansativo demais – falei enquanto enxugava as lágrimas
- Ah minha menina. Sei muito bem o que está dizendo. Fazem setenta e dois anos que sei o que é isso. Mas olha aqui pra Didi – levantou meu queixo – Nada me derrubou! E a cada tentativa, sempre me levantei mais forte.
- Você é demais! Meu orgulho! – a abracei novamente e fui retribuída com muito carinho
- Venha comer e todos os problemas estarão resolvidos!! – me falou abrindo aquele lindo sorriso alvo – Não sabia que você vinha, mas fiz sua comida preferida. Venha!!
O cheiro daquela comida me fazia delirar. Arroz, feijão, frango a passarinho, salada. Tudo fresquinho, feito na hora.
- Se seu pai estivesse aqui, falaria que não existe problema que não se resolva depois de uma boa pratada – me falou, lançando uma piscada – então vou te servir e depois falamos dos problemas da vida.
- Está bem! Você sempre sabe o que fazer e eu apenas confio – sorri em resposta – Está sozinha?
- Sim. Jorge saiu caminhar – e revirou os olhos ao dizer
- Nossa!! Como estamos modernos!! – sorri pra concordar com os olhos revirados. Didi tem ciúmes de seu esposo que gosta de se manter sempre jovem e ela se retorce de ciúmes de seu "negão" lindíssimo.
- Onde esteve o dia todo? Fui até sua casa levar frutas frescas e não te encontrei – perguntou-me colocando as mãos na cintura e arqueando a sobrancelha
- Fui ao shopping. Veja como estão lindos meus cabelos – falei mostrando meus cabelos – e fiz tudo que tinha direito.
- Ah isso é muito bom, Laurinha. Mas qual o motivo do choro, se teve um lindo dia? – me perguntou seriamente
- Ah Didi!! Aconteceu uma coisa muito chata. E foi cansativo passar por isso.
Então contei o ocorrido enquanto me deliciava naquela comida maravilhosa, muito bem temperada e feita com tanto amor. Ela me ouvia atenta.
- Nossa, que honra! – ouvi quando a voz de homem surgiu logo na porta – Nossa menina de ouro em minha casa!!
- Tio Jorge – levantei e o abracei – Que saudade!! O senhor nunca vai em casa. Poxa! – fiz biquinho de manha – Até parece que não tem amor na sua sobrifilha?! – falei sorrindo.
Tio Jorge é um dos caras mais legais que conheço. Completamente apaixonado pela família. Desde que ficaram com a minha guarda, cuidou muito bem de mim. Não digo que substituiu a figura paterna, pois meu paizinho é insubstituível, mas não me deixou faltar nada. Ele inventou esse nome "sobrifilha", para quando perguntavam o que eu era dele.Eu sempre amei esse parentesco ímpar.
- Pior que você tem razão. Eu vivo aqui, preso nessa casa, impedido de sair pois minha linda esposa me quer só pra ela! – sorriu e deu um beijo na bochecha da Didi
- Ah, mas comigo ela aceita dividir um pouquinho, não é, Didi?! – perguntei a ela que fez careta.
- E aquela máquina lá embaixo? Lindão hein – arqueou as sobrancelhas ao falar
- Nossa tio, máquina mesmo! Delícia de andar. Pega a chave, vai dar um rolê enquanto eu converso com a Didi – e apontei onde estava a bolsa
- Nem pense, Senhor Jorge!! – interrompeu a Didi – Não saia daqui sem a minha presença.
- Aí, "tá" vendo? – apontou ele pra ela e olhando pra mim – Eu falo que eu sofro e ninguém acredita em mim.
- Pare com isso Didi – falei pra ela – É só uma voltinha! Nem vai chamar atenção. Meu carro é super discreto – rimos com o que falei
- Nada em você ou de você é discreto, Laura Veigas – me respondeu Didi franzindo a testa
- Nasci para brilhar! Meu pai sempre me disse isso – sorri – Pega logo a chave e vai passear, tio. Não ligue para o que sua ciumentinha diz – falei pra ele.
- Eu vou mesmo!! – e já foi logo pegando a chave dentro da bolsa e abrindo uma sacola com os chocolates – Isso aqui é pra nós né?! – apontou a mão cheia de bombons
- É sim!! Tudo para vocês!!! – sorri carinhosamente
Ele veio até mim, me deu um beijo carinhoso, agradeceu e saiu rapidamente para sua aventura no meu carro novo. Didi me olhava furiosa, porém com um sorriso nos lábios.
- Deixa de ser possessiva Didi. Tio Jorge te ama por essa e outras vidas.
- Eu sei! Também o amo demais. Mas tenho que manter a pose de durona né?! – me falou fazendo careta – Se não, perco o controle – e rimos.
- Didi, posso te pedir uma coisa? – perguntei seriamente
- Lógico, meu amor. Diga!
- Joga búzios pra mim? – pedi humildemente
- Jogo sim! Mas o que quer saber? – me perguntou franzindo o cenho
- Se um dia vou ter um amor pra chamar de meu. Quer dizer, se um dia terei uma amora pra chamar de minha – sorri
- Opa!! Vamos terminar o jantar e já preparo tudo – me respondeu com uma piscadela.
Terminamos de comer, limpamos a cozinha e organizamos as coisas para jogar. Tio Jorge ainda estava passeando por São Paulo. Eu ria em pensamento imaginando a pompa que ele estava ao passar pelas ruas movimentadas com a capota do carro aberta. Exibido que é, deveria estar amando a sensação. E eu amava ainda mais por saber que podia proporcionar essas pequenas alegrias pra ele que tanto me amou desde pequena.
- Laurinha, antes de ir me preparar para jogar búzios, queria te pedir um favor também – falou a Didi.
- Pois não! O que precisa?
- Amanhã, não vou poder estar com você pois tenho um exame médico a fazer – me respondeu
- Qual exame Didi? Está doente? O que aconteceu? – preocupei-me.
- Nada disso! Exames de mulher após os quarenta – me falou sorrindo – Ultrassom, mamografia, raio-x, hemograma, essas coisas.
- Ah que susto!! Isso nem é favor né?! – respondi brava – Você não é minha empregada, tia.
- Não me chama de tia, menina! Eu te criei e sou sua protetora. Você me respeita – me respondeu brava
Sorri e apertei suas bochechas – Minha tia, mãe, amiga. Minha Didi! – a beijei carinhosamente
Ela sorria.
- Eu sei que não sou sua empregada. Mas sei que você fica mais tranquila quando eu estou por perto pra deixar as coisas em ordem. A sua empregada requer que prestemos atenção nela – e sorrimos.
- Fica tranquila, Didi. Amanhã é o dia que quase nem paro em casa. Só acordo e volto pra dormir – revirei os olhos – e sábado tenho compromisso.
- E eu posso saber qual é?! – interrogou-me arqueando a sobrancelha
- Vou saltar de paraquedas!! – respondi animada
- É o quê? Depois de velha resolveu dar trabalho? Você não vai, nem que eu tenha que te amarrar! Nem por decreto!! – falava tudo tão rápido e afoita
Eu gargalhava da reação dela
- Que isso Didi?! Quem vai sou eu! Não precisa ficar assim – continuava a rir da reação dela
- Ah! Mas isso eu tenho certeza. Porque eu jamais que faço um negócio desses. Uui! – e mostrou o braço – Me arrepio só de pensar.
Estava me divertindo
- Eu também tenho medo, mas vou ir passear com o Gil.
- Só podia ser ideia do desmiolado do Gil. Lógico! Como não pensei nele antes – respondeu ela franzindo o cenho – Deixa aquele moleque comigo! Vou dar uns tapas na bunda dele.
- É uma amiga dele quem o chamou e ele estendeu o convite a mim. Vamos juntos – falei e estranhei quando ela ficou séria – Que foi Didi?
- Nada não. Só um arrepio na espinha, quando você falou dessa amiga. Fica tranquila. Coisas da Didi – me respondeu, mas estava séria, de repente.
Eu estranhei, mas sabia que nada que eu falasse ia fazer com que ela continuasse esse assunto.
-- x --
Nos preparamos para o jogo. Eu só aguardava a resposta dela, permanecendo em silêncio enquanto a observava jogar e analisar as conchas.
- Quer saber a parte boa ou a ruim primeiro?
- A boa né! – a respondi ansiosa
- Seu amor está mais próximo do que você imagina! Você até já encontrou, só não ouviu seu coração.
- Nossa!! Preciso ficar mais atenta então – falei
- Na verdade, aqui pelos búzios, consta que você a encontrou ainda em tenra idade. Muito nova. E que seus caminhos sempre estiveram ligados – apontava para os búzios na mesa – Veja, estão sempre perto.
- Didi, isso é serio?! – a perguntei encantada
- Muito sério, minha filha. Os búzios não mentem – me olhou fixamente nos olhos e continuou – Você já encontrou o seu amor. Só não ouviu seu coração. E esse encontro já aconteceu a muito tempo.
- "Tá", mas e como vou saber ouvir meu coração?! Como sei que encontro foi esse? – a perguntava ansiosa
- Você saberá através da alma. Os olhos refletem a alma da gente. Você verá! – me respondeu seriamente
- E a parte ruim, Didi? – perguntei com medo da resposta
- Veja! – me apontando os búzios – Tem dois búzios virados impedindo o encontro. Cada um próximo a outro. Tem impedimentos, minha filha – me respondeu olhando em meus olhos
- Impedimentos como? – não entendia o que ela dizia – Será que meu grande amor está vivendo outra vida? Está casada? Tem filhos?
- Não são impedimentos da vida. São impedimentos de encontros. Esteja atenta e sempre se lembre: Não existe nada mais forte que o Amor. O Amor é mais forte que a morte. É o poder supremo que nos rege. Você verá e sentirá a força do Amor – me disse tudo tranquilamente
- Obrigada, Didi. Estarei atenta – respondi reflexiva
Terminamos o jogo.
Estava ajudando-a guardar as coisa quando o Jorge chegou. Estava radiante de felicidade. Falava sem parar. Eufórico. Meu coração se encheu de amor por tanta alegria.
Me despedi e parti rumo ao meu lar, refletindo as palavras de Didi.
(*) Motumbá é um pedido de bênçãos entre os nagôs (língua Yorubá). A resposta ao pedido é Motumbá Axé. Na cultura ocidental cristã, é como pedir a Benção. E a resposta é Seja Abençoado (a). A protagonista foi criada reverenciando a cultura Afrodescendente, portanto, a saudação se dá nesse modo.
Fim do capítulo
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