Capítulo 20

Após a reunião, que além de surpreendente fora excepcionalmente produtiva, Lianna juntava seus pertences enquanto os outros se retiravam da sala de reuniões.

Quando Manoela passou perto dela, a caminho da porta, a administradora deteve-a com um toque sutil segurando seu braço. Manoela baixou o olhar e observou a mão que envolvia seu pulso para de seguida encarar a mulher menor.

Lianna percebeu e levemente envergonhada, soltou-a.

-Éér, Manoela, eu gostaria de lhe agradecer novamente pela ajuda com o computador mais cedo... – a morena pôde notar um leve rubor no pescoço e nas faces da outra. – A reunião de hoje era muito importante, como bem sabes e, apesar de não ter conseguido usar o arquivo que precisava, foi muito importante para mim a atitude que você tomou em me ajudar, e ao hotel também...

Manoela não sabia o que dizer. Ao mesmo tempo em que uma resposta curta e ácida ameaçava sair por sua boca, ela percebeu que isso poderia ser a sua chance. Lianna realmente acreditava que ela tinha lhe ajudado de bom coração. Sequer cogitava a possibilidade de ter sido sabotada. A filha da dona do hotel não conseguia acreditar que houvesse alguém tão ingênuo no mundo. No entanto, isso poderia vir bem a calhar aos seus planos. Como era mesmo o ditado? Mantenha seus inimigos por perto, ou algo do gênero.

Forçando um sorriso que ela torcia para que parecesse amistoso, dirigiu-se a outra mulher de forma jovial:

-Não há o que agradecer, Lianna. Com disse foi um bem ao hotel, que eu herdarei um dia... Então nada mais inteligente eu querer que ele funcione perfeitamente. Apesar do que minha mãe possa pensar ou ter lhe dito, eu não sou uma garota mimada e relapsa.

Manoela viu um sorriso enorme despontar no rosto da administradora. Em seguida ela suspirou e tomou-lhe as mãos entre as suas.

-Que bom ouvir isso, Manoela. Vai ser muito mais fácil se trabalharmos em harmonia. Podemos fazer coisas grandiosas. Sua apresentação estava ótima. Você mal me conhece, mas eu não costumo fazer elogios vazios. Com certeza isso constará no relatório que a Sra. Maria Isabel recebe semanalmente e ela ficará muito orgulhosa!

Lianna pôde perceber quando Manoela arrepiou-se às suas palavras quanto ao relatório que seria enviado à mãe. Ela retraiu-se, puxando as mãos que Lianna ainda segurava e um brilho frio tomou conta do olhar negro. Entretanto, esse movimento durou apenas um segundo. Logo ela já aparentava uma aparência mais jovial – comedida - mas bem mais leve do que a que normalmente a encarava todos os dias, nos quase 30 dias em que a conhecia. Ela despediu-se brevemente e foi embora.

A administradora ficou por algum tempo pensando em como a vida era engraçada. Manoela parecia finalmente ter entendido que ela não era sua inimiga. Logo ela, Lianna, que jamais fora inimiga de alguém. Aos poucos elas se dariam bem. Lianna notara mais de uma vez que Manoela era extremamente inteligente, mesmo se esforçando para aparentar desinteresse pelas tarefas, quando as concluía, raramente precisavam de correção. Obviamente herdara o tino para os negócios da mãe.

“A Sra. Maria Isabel ficará muito satisfeita ao saber disso!”. Pensou, sorrindo para si mesma e agradecendo pelo dia que se avizinhava caótico ter se desdobrado tão bem.

Assim que se retirava da sala de reuniões e ligou o celular, percebeu que havia mensagens a esperando. Seu coração deu pequenos saltos, quando deslizou a tela para baixo e verificou que o remetente era Nicole.

“Olá, linda! Como estás?” – dizia primeira mensagem.

“Eu sei que você deve estar ocupada, mas acabei de sair de uma reunião e você não saía da minha cabeça...” – era o teor da segunda.

A terceira era uma foto tirada de uma janela, que Lianna acreditava que fosse do hotel onde a loira estava hospedada. Pela vidraça era possível ver uma praça de terra batida, com uma árvore enorme bem no meio. Ao redor dela várias crianças brincavam. O sol, se pondo, deixava tudo com um brilho avermelhado magnífico. Na legenda, uma frase simples: “Queria que você estivesse aqui.”

Uma quarta mensagem indagava se ela já tinha almoçado.

Uma quinta, pedia desculpas por estar mandando tantas mensagens.

Lianna riu com vontade, o coração leve como sempre acontecia quando tratava com Nicole. A garota era como uma lufada de ar fresco após o dia estressante.

*******

Uma semana havia se passado. Nicole recém conseguira voltar à cidade, pois havia precisado de mais tempo do que imaginara para cumprir suas incumbências. Falava com Lianna todos os dias, sempre que o tempo escasso das duas permitia.

Nicole entrou em seu apartamento, agradecendo internamente por finalmente estar em casa, poderia descansar por uns dias. Tudo correra bem, as fundações tinham um novo benfeitor, o que era ótimo, pois sempre havia muito a ser feito.

Olhou o relógio em seu pulso e imaginou se Lianna já teria saído do hotel. Estava com o peito alvoroçado de saudades. Nunca sentira isso antes. Uma semana apenas conversando, trocando fotos do dia a dia. Uma semana desde que a beijara e ela não saía do seu pensamento. Sorriu, logo ela que nunca gostara de se prender em alguém. Em outro momento, os 7 dias em que estivera fora seria mais que o suficiente para a conquista perder a graça. Teria saído todas as noites e encerrado cada uma com alguém diferente. Suspirou. Manoela diria que ela enlouquecera. Suspirou novamente. Manoela. Mal falara com ela naquela semana. Também sentia saudades da sua amiga. Havia ficado, sim, chateada com o mal entendido na festa, mas teria de resolver, se fosse esperar pela morena jamais tocariam no assunto.

Pegou as chaves do carro e rapidamente saiu em direção ao hotel. Se Lianna não estivesse mais por lá, falaria com Manoela.

Assim que entrou no grande saguão, perguntou para o porteiro se Lianna já havia saído ao que recebeu como resposta que ela havia ido embora já há 40 minutos. Assim, decidiu subir e falar com a amiga. Alguns poucos minutos depois estava batendo à porta da suíte 2017. Marlene abriu a porta e recebeu um beijo e um abraço da loira.

-Nicole, andava sumida, menina. Entra, Manoela está no banho. Vou avisar que você está aqui.

-Boa tarde, tia. Estava viajando a trabalho, sabe como é?! – sorriu para a senhora – Pode deixar que eu vou lá atrás da Manu.

Entrando no quarto da amiga, pôde escutar uma música vindo do banheiro. Uma mania que Manoela tinha desde criança. Para relaxar, segundo ela. Abriu a porta e a viu recostada na banheira, com dois pepinos cobrindo os olhos e uma espuma rosada cobrindo a água que envolvia seu corpo.

-Mas que folga, hein madame?

Manoela deu um salto, sentou-se rapidamente tirando os pepinos dos olhos e a olhando assustada.

-Nicole?

-Não! A rainha da Inglaterra! Cadê minha reverência? – e riu.

Manoela respirou profundamente observando a amiga. Sentira a falta dela. Elas raramente discutiam e, quando acontecia, geralmente Nicole a procurava em algumas horas e tudo acabava bem. No entanto, isso parecia não se aplicar quando Lianna estava envolvida. Algum sentimento que não foi capaz de nomear a corroeu por dentro. Voltou à posição que estava e pediu para a loira se sentar.

-Não sabia que já estava na cidade, Nick.

-Cheguei a pouco. Ainda estou com a roupa da viagem... Precisamos conversar, mas eu espero você terminar seu momento spa. – riu, dando um gritinho, quando a amiga lhe jogou um punhado de espuma.

Conversaram amenidades por algum tempo, até que Marlene bateu à porta chamando-as para comer alguma coisa.

Após jantarem, ambas estavam sentadas à varanda, degustando uma taça de vinho. Pareciam relutar em tocar no assunto que precisavam. Por fim, Nicole, pousou a taça sobre uma mesinha de apoio, encarou Manoela e disparou:

-Manu, não gosto de ficar nesse clima ruim com você!

-Pois então não fique. Esperei por bastante tempo você vir falar comigo, mas só recebi mensagens breves no celular. Você nem mesmo me avisou que ia viajar! –a morena mantinha uma expressão taciturna no rosto.

Nicole a conhecia como ninguém. Seus olhos demonstravam que ela realmente acreditava estar certa e estava até um pouco magoada. Lidar com Manoela era sempre algo delicado. 

-Eu estava esperando você se desculpar! Eu não fiz nada errado, Manoela!

-Ah, você ficou mesmo chateada por algumas palavras mais ácidas com a sua conquista da vez? Por favor, né Nicole.

-Por favor, digo eu, Manoela. – ela exasperou-se e falou mais alto do que pretendia. Levantou-se e andou alguns passos, passando a mão pela nuca, massageando, tentando manter a calma.

-Manu, você não pode mesmo achar que está certa! Você não pode tratar as pessoas do jeito que bem entender! Por besteiras, ainda!

-Você me conheceu assim!

-Sim, mas você era pouco mais que uma criança! Agora é uma mulher! Eu continuo esperando que você amadureça... – ela sentou-se frente a amiga – Manu, eu odeio brigar com você, mas... eu gosto de Lianna, realmente gosto. Será que você não pode ficar feliz por mim e trata-la bem assim como eu trato todos os seus crushes?

-Eu não me importo com a forma como você trata os meus “crushes”, como você mesma falou! Se você me disser que não gosta da pessoa, eu jamais vou ficar com ela! Eu lhe falei tudo que ela me fez e você, ainda assim, resolveu arrastar asas pra ela...

-Mas ela não é um “crush”, Manu. Eu gosto dela. De verdade.

-Você, Nick, gostando de alguém? Desde quando isso acontece com você?

-Desde que Lianna entrou na minha vida...

-Ah, sim, há umas duas ou três semanas atrás! Não faz nem um mês e você fica fazendo esse estardalhaço todo!

-Não importa o tempo, Manu! Você não entende! – levantou-se e voltou a andar de um lado para outro. – Olha só, nem eu mesma entendo. Mas a verdade é que, no restaurante eu realmente me interessei pela aparência dela, como sempre aconteceu comigo! Mas quando eu a vi, quando ouvi a voz dela, quando a energia dela encontrou com a minha... O som da risada dela...

Manoela olhou a amiga estarrecida. Os olhos sonhadores, o sorriso bobo. Ela estava enfeitiçada. Era a única explicação.

-Não me venha falar em amor...

-Ninguém está falando de amor, Manu... Ainda não. Mas estou vivendo e aproveitando o que a vida me apresentou. Algo diferente de tudo que já senti... Não quero ter que escolher entre minha amiga e alguém que estou conhecendo e gostando mais a cada dia.

Nicole estava diferente e Manoela podia sentir isso. Ponderou que aquela não era uma batalha para lutar naquele momento. A guerra era muito maior que o encantamento da amiga por Lianna. 

-Olha só, Nick, você sabe que eu não gosto dela...

-E eu não estou pedindo para gostar! Só que não a ofenda de forma gratuita como tem feito tão persistentemente! Respeito, só isso. 

Manoela sorriu e Nicole ficou confusa sobre o que isso significava.

-Ok, Nick. Por você eu vou tentar aturar a administradorazinha. - ao olhar firme da amiga, fez sinal de rendição - Tá, tá, Lianna. Na verdade, você vai gostar de saber que eu até a ajudei esses dias no trabalho...

Os olhos da loira pareciam que iriam saltar das órbitas a qualquer momento. Depois ela foi diminuindo-os até terminar em uma expressão desconfiada.

-Você ajudou Lianna? Você?

-Ah, dona Nicole que bom saber que você pensa tão bem da sua melhor amiga?! - Manoela cruzou os braços e fez um bico com os lábios.

Nicole riu e descruzou os braços da amiga. Gostava muito de Manoela, era horrível e extremamente difícil ficar sem falar com ela.

-É que ajudar, Lianna e Manoela não combinam muito bem em uma frase...

-Pois ajudei, diria até que salvei o dia. Pergunte a ela se duvida de mim...

-Não duvido, sua chata! -sentou ao lado da amiga e a abraçou de lado, cobrindo seus ombros com os braços. -Vai haver trégua então?

-Sim, Nick, por você vou esconder toda a minha aversão à sua amiguinha colorida...

Nicole gargalhou e deu um beijo estalado na bochecha da morena. Ela sabia que no fundo Manoela tinha um bom coração. Agora era esperar que ela cumprisse a palavra dada!

Manoela se encolheu nos braços da amiga. Nicole era sua melhor amiga, quase uma irmã. Ela estava cega por Lianna, mas ela a salvaria. E tudo seria exatamente como antes.

*******

Ao sair de junto de Manoela, Nicole não resistiu e mandou uma mensagem à Lianna:

-'Oi, Lila! Adivinha onde estou?'

Após alguns segundos recebeu a resposta dela:

-'Espero que nessa cidade!

-'Sim, mais precisamente no hotel onde uma certa administradora linda trabalha...'

Ela respondeu apenas com uma imagem de uma menininha pensativa.

-'Lila, o nome dela... Mas a safada já tinha saído há 40 minutos e perdi a viagem...'

A próxima mensagem que recebeu era a imagem de um gatinho se afogando em lágrimas. 

Riu e ligou para ela.

-Lila!

-Que bom ouvir sua voz, Nick!

-Vamos sair? Por favorzinho?

Lianna riu do outro lado da linha.

-Ai, Nick estou morta hoje! O dia foi péssimo! Toda essa semana foi! Parece que os erros brotam naquele hotel! Nunca tinha visto isso acontecer!

-Eu também estou morta... De saudades...

-Ai, Nick, não faz assim...

-Você me deixou assim, dona Lianna, piegas... Está satisfeita? - fingiu-se brava.

-Estou! Ainda mais que ouvi certas histórias sobre a senhorita...

-Histórias?

-Sim, sua destruidora de corações... - disse rindo.

-EU VOU MATAR A MANOELA SE FOI ELA QUE LHE DISSE ISSO!

Lianna gargalhava. E o som parecia ecoar por todo o corpo de Nicole, fazendo cada pequena célula do seu ser um pouco mais feliz.

-Calma, Batwoman. Estou brincando com você!

-Sei... -Nicole amuou.

-Hey, desmancha essa ruguinha que eu sei que está na sua testa!

-Não tem ruguinha nenhuma...

-Tem sim, eu sei pela sua voz!

-Quer que eu prove?

-Quero! Me manda uma foto!

-Não precisa... Desce aqui na rua e veja por si mesma...

-Nicole! Você não fez isso, você não dirigiu até esse fim de mundo essa hora da noite! E ainda falando ao telefone! É perigoso! - Lianna foi até a janela e pode ver o carro vermelho da loira parado em frente ao seu prédio. Como se soubesse que ela estava na janela, Nicole piscou duas vezes os faróis do carro.

-Sua maluca!

-É clichê se eu disser que sou maluca sim, mas por você?

-É... -sorriu - mas eu gosto dos seus clichês.

-Tá, vem logo! Se me der bolo, vou ter que ir afogar as mágoas no bar do Chicão. Já somos íntimos. -Nicole ouviu a risada de Lianna e em seguida a ligação foi encerrada.

A administradora trocou rapidamente de roupa, pois já estava de pijamas, pronta para dormir e fazendo o mínimo de ruído deixou o apartamento. Fechou a porta o mais silenciosamente que pôde, afinal a tia e a prima já dormiam. E voou escadas abaixo. Quando abriu a porta do prédio, a loira estava encostada no carro a encarando. Seu rosto exibia um sorriso lindo. O coração de Lianna tremulou. Ela abriu os braços e Lianna correu até eles. Quando Nicole a apertou forte contra o peito, ela sentiu seu coração bater forte contra o da outra mulher. Cheirou o pescoço alvo, acariciou a nuca onde os cabelos loiros, agora, se encontravam  mais curtos. Se afastou ligeiramente olhando-a nos olhos. Sorriu ainda mais e a apertou contra si. Seu mundo voltara a entrar na órbita certa.

Fim do capítulo