Capítulo 8

No outro dia pela manhã Marlene entrou no quarto de Manoela e encontrou Nicole e ela dormindo. O cômodo estava uma bagunça, parecia que um vendaval tinha passado pelo local e podia imaginar que o banheiro estaria em pior estado.

Assim que chamou Manoela, Nicole acordou:

-Bom dia, tia. Desculpe a bagunça mas nos excedemos ontem... - falou com um olhar envergonhado enquanto beijava a senhora.

-Não tem problema minha filha, já vi isso aqui muito pior. Que bom que você estava aqui para cuidar da minha menina. Agora vá se vestir enquanto eu tento acordar a Maria Soneca ali.

Nicole se dirigiu para o banheiro, parando apenas para pegar algumas roupas da amiga que tomaria emprestado. Suas roupas estavam todas sujas de socorrer Manoela dos efeitos de toda a bebida da noite anterior. Dormira com uma camiseta da amiga e pegara uma calça e uma camisa para poder ir para casa.

Depois de tomar banho, estava escovando os dentes quando Manoela entrou no banheiro, tirando a roupa e entrando embaixo do chuveiro sem nem olhar pra ela.

-Hey, bem educada! Não vai dar bom dia? Tenho certeza que tia Marlene e tia Isabel te educaram melhor que isso! - falou com a boca cheia de pasta de dentes.

-Não me incomoda, Nick. Estou com uma dor de cabeça daquelas e com um gosto de chinelo velho na boca. - resmungou a outra.

-Nossa, por que será, não é?

-Você me anima tanto... - estirou a língua para a amiga, para em seguida assumir um olhar triste - Depois de ontem acho que perdi minhas chances com o Bruno...

-Não diga isso, minha linda! Vá se vestir, as coisas se resolvem com o tempo. Agora não adianta chorar sobre o leite derramado... Se bem que eu acho que era tequila. - riu, mas calou-se quando viu a amiga sair do banheiro com um semblante abatido.

"As pessoas pensam que ela é muito forte, mas não passa de fachada, ela é apenas uma garotinha solitária" - pensou.

*******

Lianna chegou ao escritório e cumprimentou a secretária com um sorriso.

-Bom dia, Graça. Teve uma boa noite?

-Tive sim, Lianna, obrigada. E você?

-Muito boa, o dia de ontem foi cansativo, mas muito proveitoso. - disse, parando com a mão na maçaneta. - Hoje teremos muito trabalho novamente!

Quando virou-se para a abrir a porta, sentiu um puxão para frente, pois alguém a abrira ao mesmo tempo por dentro. No susto, Lianna caiu por cima de Manoela que a amparou nos braços para em seguida jogá-la longe como se fosse um animal peçonhento.

-Você tem algum problema de visão garota ou simplesmente gosta de atropelar as pessoas?- inquiriu Manoela aumentando o tom de voz, visivelmente muito irritada.

Lianna viu seu bom humor matinal acabar naquele momento. Seus olhos faiscaram e ela respirou fundo uma vez antes de responder entre-dentes:

-Você abriu a porta quando eu também estava abrindo, Manoela. É tanto sua culpa quanto minha! Agora pare de dar show e me deixe entrar para trabalhar.

A filha da dona do hotel a ignorou, passando por ela e dirigindo-se à secretária.

-Graça, traga-me um analgésico! Estou com a cabeça explodindo e ser atingida pelo estouro da manada não ajudou em nada.

Lianna ouviu isso e bateu a porta do escritório com toda a força fazendo Manoela se encolher de dor ante o barulho.

Graça segurou-se para não sorrir, a administradora parecia muito calma, mas a filha de sua chefe conseguia irritá-la a ponto de tirá-la do sério. Na verdade, a secretária achava que Lianna até que aguentava bem demais os maus tratos da outra. Qualquer garota em seu lugar já teria partido para a ignorância ou se demitido. Lianna era uma moça de fibra e Graça não seria capaz de apostar quem disistiria antes: Manoela ou sua jovem preceptora.

A manhã passou rapidamente. Lianna tinha começado a refazer os cálculos das últimas amostragens de dados deixadas pelo último administrador. Já havia encontrado várias discrepâncias e seu trabalho parecia estar sendo bem aplicado.

Algumas vezes lançava olhares para Manoela no outro lado da sala. Havia lhe incumbido a tarefa de marcar os valores de entrada e saída nos balancetes do último ano. A outra não reclamara e Lianna tampouco lhe dispensara qualquer palavra além do necessário. Pode perceber que a morena parecia abatida. Apresentava uma tristeza no olhar que antes era apenas prepotente e frio.

"Então a grande Srta. Manoela Alcântara tem sentimentos..." - pensou, no entanto não se sentia feliz com a tristeza dela. Não era o tipo de pessoa que se sentia satisfeita com o sofrer alheio.

Pensou o que poderia fazer. Com certeza ela não aceitaria qualquer ajuda que lhe oferecesse. Lianna era empática, como sua tia dizia, costumava sentir os sentimentos alheios e se preocupava mesmo com aqueles que não conhecia.

Depois de algum tempo pensando que atitude tomaria, olhou o relógio. Faltava pouco para o horário do almoço. Decidiu o que faria.

-Manoela - a outra levantou o olhar - Vou sair para almoçar, você pode fazer o mesmo. Graça avisou que haverá uma reunião às 17h com alguns chefes de setores do hotel, como você ainda não está por dentro de todas as nuances, se quiser pode tirar a tarde de folga. Amanhã lhe passo os pontos principais da reunião e lhe explico tudo.

Manoela olhou a garota interrogativamente. "O que essa coisinha está tramando?" -perguntou-se. Com certeza era algum plano para prejudicar-lhe, só podia ser. Por outro lado, seria bom livrar-se de uma reunião chata, com um monte de gente sem importância discutindo coisas para as quais ela não ligava a mínima. Ponderou suas opções e então lembrou-se das palavras da mãe.

-Estarei lá. Tenho certeza que gostaria muito que eu faltasse e você tivesse alguma coisa para informar a minha querida mãe. Mas não vou dar esse mole. 17h estarei na reunião.- disse isso e levantou-se saindo da sala.

Lianna suspirou. Só tentara ajudar e, como sempre acontecia com Manoela, acabara sendo recompensada com palavras duras. Não guardava rancor, mas não podia negar que aquilo a estava cansando.

Quando saiu do hotel para ir até a estação de trem -iria para casa e se prepararia para a reunião - viu Manoela conversando com uma mulher para, em seguida, entrar em seu carro.

Lianna tinha certeza que a conhecia, mas não conseguia se lembrar de onde. Após alguns segundos, percebeu quem era. Era a garota do restaurante. Perguntou-se qual sua relação com Manoela e se sua atitude amigável no restaurante teria alguma coisa a ver com a morena. Não identificou porquê, mas sentiu uma inquietação apertar-lhe o peito. Tentou ignorar a sensação e foi para casa, Milena deveria estar colocando fogo na casa. Sorriu ao lembrar da prima.

******

Manoela e Nicole almoçaram juntas e a loira tentou de todos os modos melhorar o humor da amiga. A morena, no entanto, parecia distante, com o olhar vago e triste. Só pareceu despertar quando Nicole tocou no nome de Lianna:

-E então, como vai a sua linda professorinha de administração...Lianna? - perguntou sorrindo e com um olhar safado

-Nem me fale naquela lá, Nick. - passou as mãos pelos cabelos nervosamente. - Ela tentou me pegar hoje...

-Pegar?! - Nicole arregalou os olhos.

-Não nesse sentido, sua tarada! - disse atirando um talo de aipo na amiga e arriscando um pequeno sorriso. - Uma pegadinha. Tipo glu-glu-ieié, entendeu! Disse que vai haver uma reunião hoje à tarde e que eu não precisava ir, que estava liberada. Com certeza ela queria que eu não fosse para que tivesse algo para colocar no relatório que enviará à minha mãe. Eu estou dizendo, ela é falsa e dissimulada, quer me ferrar.

-E o que ela ganharia fazendo isso?

-Sei lá! Talvez algum benefício, um aumento de salário ou tenha medo que minha mãe esteja me preparando para ficar no lugar dela.

-Ela não parece esse tipo de pessoa, Manu! - falou Nicole pensativa. -Acho mais provável ela ter notado essa sua cara de campo de concentração nazista e ter te liberado como um favor, algo assim.

-Vê lá se eu preciso que aquela lá sinta pena de mim. Ela é menos que a poeira em meus sapatos, não preciso de nada dela. E ela nem me conhece para saber como eu estou ou deixo de estar.

Nicole se encolheu ante as palavras duras e más da amiga. Não podia dizer que conhecia Lianna, mas sempre se considerara uma boa juíza de caráter e era capaz de jurar que a administradora era uma boa pessoa. Preferiu não tocar mais no assunto, para não se estressar com os preconceitos de Manoela e também para não deixá-la ainda mais nervosa.

Passaram o resto da tarde no shopping, em uma tarde de meninas como Nicole definira.

******

Lianna chegou em casa e foi recebida por Fernanda que beijou-lhe a face e perguntou de seu dia.

-Olá minha amiga, como está? Nem te vi ontem... - disse Lianna abraçando-a.

-Fui logo que vocês chegaram, não queria arriscar em deixar Luana e Laura sozinhas em casa por muito tempo. - sorriu. - Sabe como são aquelas duas!

-Sim eu sei, o mais provável era elas começarem a 3a guerra mundial! - riu

-Quase isso! - respondeu Fernanda revirando os olhos. - Acredita que quando eu cheguei havia almofadas por todos os lugares da casa? Laura disse que elas estavam jogando Angry Birds ao vivo. Vê se eu posso com isso?!

Lianna gargalhou imaginando a cena. Laura, apesar de ser apenas um ano mais nova que ela e Fernanda, às vezes parecia ter a mesma idade de Luana e Milena.

-E o meu pinguinho, o que está aprontando? - perguntou.

-Está lá no seu quarto enrolada no seu cobertor e vendo a sua tv. Disse que só sairia de lá quando você chegasse. Ela sente muito a sua falta.

-Eu sei, antes eu só estudava de noite e estagiava a tarde, então ela ficava toda a manhã comigo. Também sinto muita falta dela.

-Vai lá! - disse Fernanda - Quando o almoço estiver pronto eu aviso.

Lianna correu até seu quarto e encontrou Milena enroscada em seu edredon e dormindo agarrada em seu travesseiro. Saltou em cima da cama, pulando e fazendo cócegas na criança que acordou já se contorcento de rir.

-Pala, pala, Li!

-Como se diz, Milena? - perguntou Lianna soprando sua barriga e fazendo um som engraçado.

-Pu favoi...

-Que mais? - disse começando novamente a fazer cócegas.

-Eu me lendo! Voshe é a mesta da cósquinha! - respondeu a garotinha mal conseguindo falar de tanto rir.

Fernanda escutava da cozinha a bagunça das duas e sorria enquanto terminava de arrumar a mesa.

******

Nicole deixou Manoela em seu quarto do hotel próximo às 16h. A amiga convidou-lhe para entrar e tomarem alguma coisa afinal ainda faltava quase 1h para a reunião, mas a loira não aceitou, alegando que tinha um compromisso com a mãe.

-Vamos naquele orfanato que costumamos ajudar. - disse sorrindo. É aniversário de um dos bebês...

Como resposta recebeu um franzir de lábios. Não se surpreendeu, sabia que Manoela não gostava muito de crianças.

Saiu para o corredor e percebeu que o elevador já não estava mais naquele andar. Apertou o botão, mas como este estava demorando, decidiu descer pelas escadas. Estava escolhendo algumas músicas no celular quando sentiu um esbarrão em seu ombro ao virar em uma parte mais estreita da escada. Levantou o olhar para se desculpar e encontrou um par de envergonhados olhos cor de mel a encarando.

-Me desculpe, por favor!- ouviu a outra dizer passando a mão em seu ombro onde havia batido. - Eu subia muito rápido e não consegui desviar nesse espaço tão apertado.

Nicole sentiu um arrepio na espinha ao ver quem estava a sua frente. Quando a outra sorriu, percebeu que não havia dito nada ainda. Só estava lá parada, com a boca entreaberta, as mãos trêmulas, a respiração suspensa.

"O que está acontecendo com você? Perdeu o cérebro?" - pensou. Engoliu em seco. Limpou as mãos úmidas na lateral das calças.

-Imagina! Eu que vinha destraída! - sorriu abobada como resposta ao sorriso sincero da moça. -Pelo visto a descrição que fizeram de você confere!

À expressão confusa da outra, estendeu a mão em um cumprimento:

-Prazer, Nicole Linhares. Sou amiga de Manoela e já ouvi falar que vocês costumam se esbarrar por aí. - gracejou.

-Lianna Gonçalves. O prazer é meu. Mais uma vez, me desculpe Srta. Linhares. -disse a morena, suas bochechas assumindo um tom rosado que Nicole achou encantador.

-Que isso, menina?! Pode me chamar de Nicole ou Nick se preferir. Não precisa se desculpar... Mas como meu braço está quase caindo... - sorriu ao ver o arregalar de olhos da outra - acho que você poderia sair comigo em retribuição ao meu sério machucado. -piscou galante. 

-Desculpe Srta. ... digo, Nicole. Tenho uma reunião daqui a pouco e quero verificar se a sala está pronta...

-Ah, sim Manu me falou da reunião. - Nicole bateu a mão na testa em um gesto engraçado.-Podemos sair mais tarde para tomar alguma coisa então! Quem sabe um dorflex?

Lianna riu alto e Nicole pensou que poderia ouvir aquele som para sempre.

-Falando sério: então um sorvete depois da reunião? Ah, qual é, um sorvete é rapidinho e leve em conta que eu nem sei se estarei viva amanhã...

Lianna riu mais uma vez do modo espevitado da outra e acabou aceitando o convite para o sorvete. Se despediram com um aperto de mãos e quando Nicole já estava virando para descer o próximo lance de escadas ouviu Lianna dizer, antes de fechar a porta.

-Nicole, eu lembro de você do restaurante!

A loira sorriu e balançou a cabeça, suspirando.

Fim do capítulo